Em 2019, com 37 anos, Nayib Bukele reuniu 53% dos votos, tornando-se o presidente mais jovem da América Latina. Como a Constituição de El Salvador proíbe mandatos presidenciais consecutivos, em 2021, a Assembleia Legislativa dominada pelo partido de Bukele substituiu, no seu primeiro ato, cinco juízes do Supremo Tribunal de Justiça e o procurador-geral de El Salvador por elementos fiéis a Bukele. Desta forma, o presidente salvadorenho obteve parecer positivo do Poder Judicial para participar nas eleições presidenciais de 2024, com a condição de se afastar do cargo seis meses antes. E foi isso que fez, após ter obtido luz verde por parte da Assembleia Legislativa. O facto de controlar todos os órgãos de soberania salvadorenhos foi, portanto, fundamental para fazer tábua rasa do texto constitucional e rumar a uma vitória apoteótica.
Na anterior legislatura, o panorama não era o mesmo. Em fevereiro de 2020, ainda com uma Assembleia controlada pela oposição, Bukele chegou ao ponto de invadir o edifício com as forças armadas e uma multidão que o aguardava à porta. O presidente salvadorenho ocupou o lugar do presidente da Assembleia e disse: "Agora penso que é muito claro quem controla a situação". Depois, fechou os olhos, cobriu o rosto com as mãos, e rezou. A ação teve como objetivo intimidar os deputados para que aprovassem um empréstimo para as forças de segurança.
Não ter o controlo da Assembleia Legislativa não impediu Bukele de continuar a utilizar os militares em operações de segurança pública, embora o acordo de paz de 1992 o proíba, ou de, entre março e maio de 2020, deter arbitrariamente indivíduos acusados de violar as medidas da covid-19.
A consolidação de um modelo autoritário de governo
Com 70% dos boletins de voto contados na segunda-feira, Bukele somava 1,6 milhões de votos, oito vezes mais do que os dois partidos seguintes, a Frente para a Libertação Nacional (FMLN) e a Aliança Republicana Nacionalista (ARENA), que, em três décadas, alternaram o comando do país desde o fim da Guerra Civil. O partido de Bukele, Nuevas Ideas, deverá ter 58 dos 60 deputados na Assembleia Legislativa.
Entretanto, o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) de El Salvador interrompeu a contagem eletrónica dos votos, e pediu às assembleias eleitorais de todo o país para registarem manualmente os resultados da votação. O tribunal explicou que tomou a decisão com base no código eleitoral do país, após ações que “dificultaram” a transmissão dos resultados preliminares e “outros fatores fora do controle do TSE”.
El TSE ordena poco antes de las 2 de la mañana que las JRV levanten actas a mano contando los votos y que envíen imágenes.
Esto arroja incertidumbre sobre si habrá resultados preliminares oficiales. O si el camino a seguir será como en 2015: no habrá resultados preliminares. pic.twitter.com/ddJDwJ3msi
— Gabriel Labrador (@glabrador) February 5, 2024
Ainda que se registe um atraso no anúncio dos resultados finais, afigura-se uma nova era no país, com um partido hegemónico e um caudilho todo-poderoso. Trata-se da consolidação do modelo autoritário de governo em El Salvador, ratificado pelo povo, que optou por sacrificar a sua democracia em nome de um "populismo punitivo" e da segurança nas ruas.
Bukele defende que a chave para resolver os problemas de longa data de El Salvador é ignorar o conceito de "falsa democracia" imposto por críticos externos e usar a "super maioria" de seu partido para fazer mudanças no país.
Acabar com os gangues e com os direitos humanos
Em março de 2022, o presidente salvadorenho deu início a uma implacável repressão contra os gangues, consubstanciada com o estado de emergência imposto no país, e que tem vindo a ser transmitida em direto no Twitter, Instagram, Facebook e TikTok.
Neste contexto, as autoridades detiveram, até ao momento, mais de 76.000 pessoas, o equivalente a mais de 1% da população de El Salvador, o que levou a que o país tenha agora a maior taxa de encarceramento do mundo.
Se a estratégia de Bukele reduziu significativamente a taxa de homicídios, pelo caminho, os salvadorenhos deixaram para trás a democracia e o respeito pelos direitos humanos fundamentais.
Inúmeras organizações de direitos humanos acusam o governo de Bukele de levar a cabo detenções arbitrárias, cometer execuções extrajudiciais, agressões sexuais, desaparecimentos forçados e tortura.
Ainda que a pobreza continue enraizada na sociedade, os direitos básicos sejam suprimidos, não exista separação de poderes e a corrupção institucional continue a florescer, El Salvador é visto, por alguns, um exemplo a seguir, e alguns procedimentos têm sido replicados noutros países latino-americana, com os presidentes de Honduras e Equador a pôr em marcha prisões em massa nos seus próprios países para responder à espiral de violência de gangues.
Acresce que, em pelo menos 13 países latino-americanos, a maioria da população “não se importaria que um governo antidemocrático chegasse ao poder se resolvesse os problemas”, de acordo com uma sondagem de 2023 do Latinobarómetro.
O ataque à liberdade de imprensa
O governo Bukele também tem sido acusado de promover um ataque a jornalistas nacionais e estrangeiros, bastante explicito no discurso do presidente salvadorenho durante a campanha eleitoral. A imprensa salvadorenha tem sido alvo de perseguições e ataques legais por parte de Bukele, nomeadamente com recurso ao software de espionagem israelita Pegasus.
"Depois do seu discurso, ficou claro para mim: o próximo inimigo prioritário a ser destruído por Bukele será a imprensa independente", escreveu o jornalista salvadorenho Óscar Martínez numa publicação no X. Martínez é o diretor de notícias da organização de notícias de investigação El Faro, que teve de mudar as suas instalações para a Costa Rica em 2022, face ao assédio contínuo de que era alvo.
A mí me queda claro tras su discurso: el próximo enemigo prioritario a destruir por Bukele será la prensa independiente.
— Óscar Martínez (@CronistaOscar) February 5, 2024
A Associação de Jornalistas de El Salvador (Apes) registou “173 violações contra a imprensa antes e durante o período eleitoral, o que é um número alto", afirmou a presidente da organização, Angélica Cárcamo.
#Comunicado Afectaciones a la prensa durante elecciones presidenciales y legislativas 2024 pic.twitter.com/LQVYARxMNm
— APES (@apeselsalvador) February 5, 2024
As agressões registadas pela Apes desde 2019, quando Bukele chegou ao poder, aumentaram 303%, passando de 77 em 2019 para 311 em 2023.
Amnistia alerta que crise de direitos humanos pode aprofundar-se
Ana Piquer, diretora para as Américas da Amnistia Internacional, defendeu que “a comunidade internacional deve permanecer vigilante e utilizar todos os recursos e mecanismos à sua disposição para deter e reverter os abusos e a violência estatal que colocam em risco os direitos humanos em El Salvador”.
“Estamos profundamente preocupados com a forma como o respeito e a proteção dos direitos humanos diminuíram sob a administração de Nayib Bukele e com a probabilidade de continuarem a deteriorar-se a um ritmo ainda maior durante o seu segundo mandato”, alertou.
Ana Piquer lembrou que, “nos últimos cinco anos, testemunhámos a grave crise precipitada por um modelo de governo que incentivou violações em massa dos direitos humanos e a evasão dos mecanismos de responsabilização nacionais e internacionais”.
A diretora para as Américas da Amnistia Internacional acrescentou que “a sua administração também ocultou e distorceu repetidamente a informação pública, apoiou ações para minar o espaço cívico, militarizou a segurança pública e utilizou detenções e encarceramentos em massa como únicas estratégias para combater a violência no país, com um efeito desproporcional sobre as pessoas que vivem na pobreza”.
“É absolutamente necessário evitar que o uso politizado do processo penal e a política de facto de tortura no sistema prisional se tornem enraizados, uma vez que ambas as tendências têm impulsionado as já alarmantes taxas de violações do devido processo, mortes sob custódia do Estado e precariedade entre pessoas privadas de liberdade. Salvo uma mudança de rumo, uma nova geração de vítimas do Estado estará próxima”, apontou.
Estados Unidos e El Salvador: Uma relação agridoce?
Na segunda-feira, o secretário de Estado Antony Blinken congratulou Bukele pela sua vitória, acrescentando que "os Estados Unidos continuarão a priorizar a boa governança, a prosperidade económica inclusiva, as garantias de julgamento justo e os direitos humanos em El Salvador".
Congratulations to President-elect Nayib Bukele of El Salvador on his electoral victory. We look forward to continuing to prioritize good governance, inclusive economic prosperity, fair trial guarantees, and human rights in El Salvador under the Root Causes Strategy.
— Secretary Antony Blinken (@SecBlinken) February 5, 2024
Bukele tem uma relação ambígua com Washington. O presidente salvadorenho tem-se indignado com os comentários norte-americanos sobre a sua tendência autoritária e tem-se aproximado da China, que financiou a construção da Biblioteca Nacional do país.
Segundo Bukele, as políticas norte-americanas e europeias implementadas para reduzir a violência ao longo dos anos foram um fracasso, e apenas conduziram a um aumento do crime organizado.
Ainda que crítica, a administração Biden não ataca diretamente Bukele, uma vez que o seu governo tem cooperado com os EUA na sua agenda para abrandar os níveis históricos de migração para norte.
UE congratula povo salvadorenho pelo seu "compromisso com a democracia"
Já União Europeia (UE), através de um porta-voz do Serviço de Ação Externa (SEAE), "felicitou" o povo salvadorenho pelo seu "compromisso com a democracia" e afirmou estar "ansiosa para trabalhar nas prioridades compartilhadas" com Bukele.
El Salvador: Sunday's elections yielded a clear result. congratulates the people of for their commitment to democracy & looks forward to working on shared priorities with President Nayib Bukele & his administration. https://t.co/AXkml0ZvtX pic.twitter.com/ExXfXmz5vF
— Peter Stano (@ExtSpoxEU) February 5, 2024
A UE garante continuar empenhada “em apoiar El Salvador no seu caminho de modernização rumo ao desenvolvimento económico sustentável e inclusivo e em consolidar melhorias em termos de segurança, reforçando um bom governo, Estado de direito e inclusão social".