Do que falamos quando falamos de esquerda

01 de dezembro 2024 - 11:50
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Uma e outra vez, os Democratas têm a oportunidade de fazer melhor e traem a vontade do povo. Apenas Bernie Sanders tem sido consistente e direto na forma como comunica com a classe trabalhadora.

Comício de Kamala Harris
Comício de Kamala Harris em Oakland, Michigan. Foto Kit Karzen/Harris for President

Quer queiramos quer não, nós, progressistas, não somos a maioria populacional em lado nenhum e dificilmente o seremos dentro da selva neoliberal em que vivemos, como ficou bem evidente nas eleições de 5 de novembro nos EUA. Quem deu a vitória a Donald Trump não foram progressistas moderados nem de esquerda, com educação superior, politizados, mas sim a classe trabalhadora dos estados rurais dos EUA, sobretudo despolitizada, sem recursos, e sem acesso ou tempo para a cultura.

O que é que isto nos deveria dizer? Que foi fatal para os Democratas terem subestimado o poder eleitoral desta população ao atirar-lhes à cara a sua estupidez por tencionar votar em alguém “estúpido” e “estranho” como Trump. Para nós, a ironia é que sabemos que tanto Trump como Kamala Harris representam apenas as duas fações do partido único estadunidense, controlado pelo grande capital. No entanto, o cidadão comum, ouve apenas uma candidata, já de si pouco popular, a dizer-lhe que ela é o melhor de dois males, num sentido meramente moral, porque a maioria já não acredita nas soluções económicas dos Democratas, e que se tenta mostrar superior àquele que representa o culminar do sonho americano. Por muito desprezível que Trump seja, o símbolo que este representa é mais apetecível do que mais do mesmo pesadelo económico causado pelos Democratas, mesmo depois de muitos se terem arrependido de votar em Trump em 2016. E, no entanto, Trump ganha agora através do voto popular. Isto deveria ser motivo de reflexão.

Já desde Barack Obama que há todo um discurso dos Democratas a culpabilizar os grandes grupos económicos por todos os males sociais, que é urgente redistribuir, que é fundamental afastar os banqueiros e regressar a um modelo ao estilo do sistema Bretton Woods de Roosevelt. No entanto, o que fez Obama? Salva a banca e, sobretudo, os banqueiros, perdendo-se assim uma oportunidade de meter o génio financeiro na garrafa de vez, para utilizar uma expressão de Yanis Varoufakis. Uma e outra vez, os Democratas têm a oportunidade de fazer melhor e traem a vontade do povo.

Apenas Bernie Sanders tem sido consistente e direto na forma como comunica com a classe trabalhadora, referindo sempre a luta dos 1% contra os 99%, enaltecendo a importância da educação e da saúde pública, dos sindicatos, de melhores condições salariais. Isto sem recursos a chavões, a paternalismos, nada. Simples, direto e apelativo. Mas isto diz respeito aos EUA e ao Partido Democrata.

Quanto à esquerda, devia entranhar-se bem em nós que não estamos em guerra contra o desinteresse do povo, contra os despolitizados, estamos em guerra contra um sistema que fomenta a apatia intelectual e divisões gritantes de maior ou menor subtileza. Essa subtileza ardilosa pode encontrar-se na frequência com que se vê gente de esquerda pavonear a sua pretensa superioridade moral. Quem ganha com isso são os marionetistas económicos e os populistas. Outro exemplo é de teor mais técnico, como as frequentes ratoeiras em que o PCP cai ao fazer analogias, nos fóruns públicos, entre culturas e formas de governar autoritárias. Ainda que se possa estabelecer uma crítica ao imperialismo estadunidense, e sobretudo à ausência de democracia dentro dele, não é por um país ser comunista que não tem problemas contrários ao que a esquerda pretende ser. O cidadão comum ouve essa analogia e ouve apenas alguém a defender um regime autoritário, apesar das nuances que esse regime possa ter a seu favor. E essas nuances existem, mas de nada servem no grande esquema das coisas.

O povo não precisa de chavões, não precisa de condescendência, de moralismos, precisa é de uma resposta direta, mas radical, aos seus problemas económicos. Em vez de falarmos da lei da utilidade marginal decrescente nos fóruns públicos, de discutirmos a tecnicidade das ideias de esquerda em debates fora de horas, para meia dúzia de privilegiados que conseguem arranjar tempo e energia para participar neles, concentremo-nos em virar as armas da direita e centro contra eles.

Do que falamos quando falamos de Esquerda? Deveríamos falar de como não queremos substituir a família tradicional ou valores conservadores, mas apenas alargá-los para incluirmos todos e todas. Falemos da economia em termos simples. Ou como diria Richard Feynman: “Se não consegues explicar uma coisa a um aluno do primeiro ano, é porque não percebes do assunto.”

No entanto, certos chavões são inevitáveis e fazem parte da identidade de qualquer ideologia. Mas, se queremos mesmo usar os nossos chavões habituais, como “capitalismo”, “neoliberalismo”, “grande capital”, “decrescimento”, “redistribuição”, etc, então, acrescentemos as notas de rodapé necessárias. Isto para evitar mal-entendidos, pois muitos acreditam que somos contra a riqueza quando falamos de sermos contra o capital. É evidente que não, apenas o queremos redistribuir, e evitar a sua concentração, mas há que ser claro. Não cometamos o erro de falar com a classe trabalhadora como se, a priori, esta soubesse do que estamos a falar.

E não descartemos também a religião da nossa retórica, mesmo que discordemos dela, como já sugeriu por várias vezes Cornel West. Há católicos progressistas que, por muitas vezes, se sentem alienados pela esquerda.

A esquerda tem a responsabilidade de comunicar com a classe trabalhadora e de a unir, mas, para isso, tem de conseguir mostrar de forma clara como a direita insiste em resolver apenas o problema da falta de liquidez através da oferta, ignorando, ou melhor, fechando os olhos, ao problema da procura e da redistribuição, que fica condicionado pelas políticas de austeridade que a União Europeia insiste em praticar.

Dito isto, não culpemos os trumpistas por estes resultados, olhemos antes para nós, progressistas, e reavaliemos a nossa maneira de estar e de comunicar com a classe trabalhadora mundial, pois é ela que conduz a mudança política de qualquer nação. A esquerda precisa urgentemente de repensar a sua estratégia de comunicação para com os trabalhadores, e não de lhes atirar a responsabilidade pelas ruinosas políticas económicas que temos tido nas últimas décadas. O resultado foi a repetição de um ciclo: a derrota do centrão mundial, a insuficiência da esquerda, e a ascensão da extrema-direita.

Nuno Sousa Oliveira
Sobre o/a autor(a)

Nuno Sousa Oliveira

Jornalista e escritor, militante do Bloco de Esquerda e do DiEM 25, membro fundador da Associação Portuguesa de Tradutores de Audiovisuais,