A dívida privada ilegítima no Sul: o caso do micro-crédito

31 de março 2024 - 11:16

Os oprimidos veem-se confrontados com o recrudescimento da utilização das dívidas como mecanismo de servidão, espoliação e expropriação. O micro-crédito é parte deste esquema. Por CADTM.

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Ban Ki-moon, ex-secretário-geral das Nações Unidas, e Muhammad Yunus. Foto das Nações Unidas.
Ban Ki-moon, ex-secretário-geral das Nações Unidas, e Muhammad Yunus. Foto das Nações Unidas.

Na Ásia, África e América Latina e Caraíbas, o “sistema da dívida” endurece como nos países mais industrializados. Várias mudanças fundamentais ocorreram ao longo dos últimos 40 anos, principalmente depois de estalar a crise da dívida no Terceiro Mundo, no início dos anos 1980.

As políticas austeritárias de ajustamento estrutural favorecem o recurso ao endividamento privado

As políticas de ajustamento estrutural foram aplicadas usando como desculpa a crise da dívida pública. Esta crise foi provocada pelo feito combinado da queda do preço, no mercado mundial, dos produtos exportados pelo Terceiro Mundo a partir de 1981-1982 e pelo aumento das taxas de juro imposto pela Reserva Federal dos EUA a partir de 1979-1982 [1]. As políticas de austeridade e de ajustamento estrutural dominaram o final do século XX na maioria dos países, em particular nos países ditos «em desenvolvimento» e nos países do ex-bloco de Leste.

Essas políticas de ajustamento estrutural foram ditadas pelas instituições internacionais; os governos de direita aproveitaram as condições propostas por essas instituições para aplicarem uma série de contra-reformas que serviam os interesses das grandes empresas privadas, das grandes potências e das classes dominantes locais [2]. São políticas que degradam as condições de vida da maior parte da população, nomeadamente nas zonas agrícolas, mas também nos ambientes urbanos. Quais são as medidas que provocaram mais necessidade de a população recorrer à dívida privada para sobreviver? Podemos enumerar as seguintes:

  • o fim dos subsídios a uma série de produtos de consumo de base (alimentos, combustíveis para aquecimento, etc.) e serviços (eletricidade, água, transportes), donde resultou um aumento do custo de vida;
  • a política de cobrança dos custos nos sectores da educação e saúde, o que obriga as classes populares a endividarem-se para pagarem esses custos;
  • a supressão ou privatização dos bancos públicos, nomeadamente os que forneciam crédito aos camponeses, o que os empurrou para os braços dos usurários e dos organismos de micro-crédito;
  • a supressão das empresas públicas que compravam aos agricultores a preços tabelados; esta supressão teve efeitos dramáticos aquando da queda dos preços no mercado bolsista mundial e provocou o endividamento;
  • o fim do armazenamento de cereais a cargo das autoridades, que em tempos garantia a segurança alimentar em caso de más colheitas e de outros acontecimentos negativos. O fim do armazenamento favoreceu o aumento súbito e especulativo do preço de certos alimentos e obrigou as famílias a endividarem-se para sobreviverem;
  • a abertura do mercado interno à concorrência das importações e dos investimentos estrangeiros, o que provocou a falência de muitas empresas locais e a miséria dos pequenos produtores (agricultores, artesãos, etc.);
  • a promoção acentuada da revolução verde e o recurso a produtos químicos (pesticidas, fertilizantes, etc.) ou a sementes geneticamente modificadas (OGM), o que leva os camponeses a endividarem-se, na esperança de conseguirem reembolsar a dívida depois da colheita e da sua venda no mercado;
  • a privatização das terras (ver as contra-reformas do México em 1993, do Egipto na mesma época e de numerosos países);
  • o açambarcamento de terras por sociedades estrangeiras;
  • a redução de empregos na função pública;
  • o congelamento ou redução dos salários;
  • a generalização do IVA (imposto sobre o valor acrescentado) e de outros impostos indiretos;
  • a redução das reformas onde elas existiam.

A conjugação destas contra-reformas e medidas provocou um aumento do recurso ao endividamento das camadas populares, tanto para consumo corrente, como para operações de mini-investimento no sector informal urbano e entre os pequenos e médios agricultores.

O desenvolvimento do microcrédito a partir dos anos 1980-1990

A partir da década de 1980 surgem as iniciativas de micro-crédito. Desde o início os governos e as grandes instituições internacionais como o Banco Mundial promoveram o micro-crédito. Assim aconteceu na Colômbia, como descreve Daniel Munevar num estudo inédito [3]. Nesse país, com o apoio de fundações privadas, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do governo dos EUA, a micro-finança desenvolveu-se no início da década de 1980. O Governo colombiano aprovou um plano de desenvolvimento do micro-crédito para as pequenas empresas do sector informal. Encontramos experiências similares na Bolívia, Peru, México. A instituição de micro-crédito mais conhecida a nível mundial é incontestavelmente o Grameen Bank, fundada no final da década de 1970 por Muhammad Yunus, no Bangladesh. O Banco Mundial promoveu sistematicamente a micro-finança. A Organização das Nações Unidas associou-se a essa promoção, proclamando 2005 como o «ano internacional do microcrédito». Em 2006, o prémio Nobel da paz foi atribuído a Muhamad Yunus e ao Grameen Bank. Nesse ano, os chefes de estado e dos governos, a começar por Jacques Chirac, José Zapatero, George W. Bush, Luiz Inácio Lula, Bill Clinton e Bill Gates cantaram loas ao micro-crédito.

Questões de vulto

Contando com um grande apoio institucional dos governos [4] e de vários organismos internacionais, as instituições de micro-crédito multiplicaram-se progressivamente nos países em desenvolvimento. À escala mundial, cerca de 2000 milhões de adultos não têm conta bancária. Isto abre uma extraordinária perspetiva de desenvolvimento para as empresas de micro-crédito. Em 2019, havia 916 destas empresas, com 140 milhões de clientes, dos quais 80% eram mulheres, e uma carteira de crédito de 124.000 milhões de dólares. 65% desses clientes vivem em zonas rurais. Estes dados, referentes a 2019, foram extraídos de um relatório intitulado Barómetro da Micro-finança 2019. O documento está publicado em francês por um consortium que reúne os três principais bancos franceses (BNP Paribas, Crédit Agricole, Société Générale), a Fundação Grameen – Crédit Agricole, Renault, Véolia (primeira transnacional mundial para os serviços: água, lixo, energia), Master Card, Engie (GDF Suez), Danone (agroalimentar), KPMG (uma das quatro principais firmas a nível mundial), Vinci (infraestruturas de transporte e gestão – auto-estradas, aeroportos –, energia, BTP), o Município de Paris, o Governo do principado de Mónaco, o ministério francês dos Negócios Estrangeiros e do desenvolvimento internacional… A esmagadora maioria dos créditos concedidos situa-se entre 100 e 1.000 dólares.

Fonte: Baromètre de la microfinance 2019

A maior parte dos grandes bancos privados internacionais criou um ramo de micro-crédito, para detetar as oportunidades de se introduzir no sector, geralmente desenvolvendo parcerias com agências de micro-crédito já existentes.

É claro que os montantes dos empréstimos são muito baixos, mas, como já referimos, 2.000 milhões de adultos sem conta bancária são potenciais clientes do micro-crédito. Há outros dois fatores muito importantes a ter em conta. Primeiro, as taxas de juro reais praticadas no sector da micro-finança (juntando à taxa oficial diversas comissões cobradas pelos credores) oscilam entre 25% e 50%. Segundo, como afirmam as próprias agências de micro-crédito, a taxa de recuperação é superior a 90%, porque as pessoas pobres tendem a fazer o impossível por reembolsar as suas dívidas.

Uma questão estratégica para o capitalismo

O sistema capitalista procura permanentemente penetrar e dominar esferas, espaços que não domina inteiramente. Em finais do século XX alcançou uma enorme vitória com a restauração das relações capitalistas em sociedades como a URSS e noutros países europeus pertencentes ao bloco soviético, bem como na China e no Vietname. Encara a crise ambiental como uma oportunidade para desenvolver o mercado de licenças para poluir e desenvolver um capitalismo verde [5]. A partir dos anos 1960, com o desenvolvimento da revolução verde, conseguiu arrastar para as relações capitalistas centenas milhões de camponeses, tornando-os dependentes das sementes com patente, dos pesticidas, dos herbicidas, dos fertilizantes que patenteava e produzia. A partir dos anos 1990 desenvolveu-se uma nova vaga de expropriações, com uma política de açambarcamento de terras à escala mundial [6].

A partir da década de 1980, com o desenvolvimento do micro-crédito, o capitalismo visa progressivamente capturar para o circuito financeiro 2000 milhões de adultos sem conta bancária. Estes 2.000 milhões de adultos, na sua maioria mulheres, já estão mais ou menos profundamente inseridos nas relações monetárias, mas uma parte do que é realizado como trabalho e uma parte do que é produzido ainda está restrito à esfera doméstica ou comunitária não monetária (produção alimentar para autos-subsistência, trabalho doméstico). É uma questão estratégica para os capitalistas fazer com que essas pessoas entrem de maneira sistemática no sistema capitalista, via endividamento formalizado através de relações contratuais de empréstimo. Trata-se por exemplo de pôr fim ao sistema tradicional de mutualização da poupança das mulheres – onde ele ainda existe –, como sucede por exemplo com as tontinas na África Subsariana (as tontinas são um sistema em que as mulheres põem em comum as suas poupanças, emprestando rotativamente entre si as quantias necessárias para certas despesas extraordinárias ou projetos e investimentos). Capturar através do endividamento aquela parte da humanidade que ainda não está plenamente inserida nas relações formais (contratuais) capitalistas é uma questão estratégica.

É esta questão estratégica que justifica a atuação neste terreno dos governos, dos organismos internacionais como o Banco Mundial e todos os bancos multilaterais que operam nos países do Sul (Banco Africano de Desenvolvimento, Banco Asiático de Desenvolvimento, Banco Interamericano de Investimento, etc.), das grandes empresas financeiras (quase todos os grandes bancos privados, os fundos de investimento), das grandes empresas comerciais (as grandes cadeias de distribuição), das grandes sociedades de comunicação (principalmente as dos telemóveis).

A par do micro-crédito propriamente dito, sobre o qual este texto chama a atenção, é preciso acrescentar o desenvolvimento do crédito ao consumo por parte das cadeias de distribuição comercial, em grande número de países emergentes. Sublinhemos igualmente o desenvolvimento da utilização dos telefones móveis como meio de pagamento e transferência de dinheiro, nomeadamente entre as pessoas que não tinham conta bancária [7]. O desenvolvimento dos pagamentos por meio de telefone móvel mereceria por si só um estudo específico.

A fábula do micro-crédito

A questão principal para Muhammad Yunus é a seguinte: «como autorizar a metade mais frágil da população mundial a aderir à corrente principal da economia mundial e a adquirir a capacidade de participar nos mercados livres?» [8]. Yunus parte do postulado de que a economia mundial funciona bem via mercado livre: o único problema dos pobres é entrar no mercado de trabalho; aceder a um primeiro empréstimo abrir-lhes-ia as portas. Os bancos consideram que os pobres não são solventes? Recusam conceder-lhes crédito? Yunus vai testar o crédito aos pobres. Com as suas equipas, realiza um verdadeiro forcing: «Quando um mutuário tenta evitar uma oferta de empréstimo com o argumento de que não tem experiência empresarial e não quer aceitar o dinheiro, tentamos convencê-lo de que pode ter uma ideia para um novo negócio» (p. 40). Comecem por endividar-se, depois logo se vê… Para Yunus, «o social-business é a peça que falta no sistema capitalista. A sua introdução pode salvar o sistema» (p. 171). A questão está em saber se vale a pena salvar um sistema mortífero.

Muitos estudos empíricos consagrados ao microcrédito e numerosos autores mostram que o micro-crédito não permite realmente aos clientes sair estruturalmente da pobreza [9]. O micro-crédito mergulha grande parte dos seus utilizadores no endividamento, quando não sobre-endividamento. Não permite o desenvolvimento das empresas no sector formal. As micro-empresas que se endividam junto das agências de micro-crédito permanecem no sector informal. O micro-crédito não permite às coletividades locais reforçar e substituir os serviços públicos que se degradaram ou desapareceram na sequência de uma contração do Estado realizada por políticas neoliberais. De facto, o micro-crédito reproduz os mecanismos que geram a pobreza. Uma vez endividadas, as pessoas, na sua maioria mulheres, podem ser mais facilmente expropriadas, submetidas e levadas a participar no mercado de trabalho assalariado, para terem uma fonte de rendimentos. Assim, contribuem para reforçar a massa dos sem-emprego e para puxar para baixo os salários. Em muitas situações os clientes das instituições de micro-crédito que se encontram em dificuldades de pagamento acabam por recorrer a usurários tradicionais, que impõem menos condições mas exigem taxas de juro mais altas.

Exemplos concretos de microcrédito

Bangladesh: país emblemático de microcrédito

No Bangladesh, um dos países onde o micro-crédito está mais desenvolvido, com uma população de 160 milhões de habitantes em 2015, foram concedidos micro-créditos a 29 milhões de pessoas, com um montante médio de 200 euros (17.000 takas, a moeda do Bangladesh) [10]. Mais de 80% dos devedores são mulheres. Abul Kalam Azad, membro do CADTM, trabalha para a Action Aid em Dacca, no Bangladesh, e testemunha: «O micro-crédito, no seu funcionamento “clássico”, consiste na concessão de pequenos créditos a vários devedores reunidos num só grupo. Um grupo que beneficie de um empréstimo compõe-se de 25 a 30 pessoas que se comprometem com 16 princípios (que visam garantir que os devedores agirão de maneira coletiva e como um grupo de devedores). Os membros de um grupo começam por constituir um fundo comum de poupança, antes de se dirigirem a uma agência de micro-crédito para pedirem um empréstimo. Mais recentemente as agências de micro-crédito começaram a praticar empréstimos individuais. Nestes casos, o devedor deverá apresentar uma garantia à agência, no valor de 30% do montante contraído» [11].

A taxa de juro real varia entre 35 e 50% (levando em conta as comissões oficialmente cobradas). Por consequência, dada a dificuldade de pagar uma tal taxa, uma cliente da micro-finança (empregamos aqui o feminino pelo facto de a maioria dos clientes serem mulheres), em média, endivida-se junto de três organismos de micro-crédito. Vejamos um exemplo fictício mas plausível. Ela começa por pedir um empréstimo ao Grameen Bank (atualmente o terceiro banco de micro-crédito, em termos de volume, no Bangladesh). Se não conseguir pagar no prazo devido, pede outro empréstimo ao BRAC (que é o principal organismo de micro-crédito) para reembolsar o Grameen. Depois, não tendo conseguido reembolsar o BRAC nem o Grameen, vira-se para o ASA (o segundo banco de micro-crédito). Se não conseguir reembolsar, decide desaparecer com os seus. Se a família viver numa aldeia, sai de lá sem dar o novo endereço e funde-se na massa anónima de uma grande cidade, envolta num sentimento de culpa. Dacca, a capital, tem 14,5 milhões de habitantes e novas cidades vão nascendo.

A dificuldade de cumprir o reembolso dos micro-créditos constitui um importante fator de stress e de humilhação para as pessoas endividadas. Segundo Abul Kalam Azad: «As dificuldades ligadas ao reembolso do micro-crédito induzem imenso stress no seio das famílias que contraíram empréstimos». Como grande parte das pessoas endividadas não possui propriedades imobiliárias, a expropriação não incide sobre terras ou casas, mas sim sobre a garantia de 30% que a devedora teve de dar à agência de micro-crédito.

Para compreender de que modo os organismos de micro-crédito conseguem ter um reembolso de mais de 98%, é preciso ter em conta este importante fator. Uma pessoa que deseje pedir um empréstimo tem de dar em garantia 30% do valor do empréstimo. Se não conseguir reembolsar, o organismo de micro-crédito fica com a garantia. É assim que as agências de micro-crédito conseguem ter uma taxa de reembolso de 98%. Este esquema esconde na realidade um fenómeno de expropriação de um grande número de pessoas que, incapazes de cumprirem as suas obrigações de reembolso, perdem a garantia que depositaram e abandonam a sua aldeia para escaparem ao opróbrio.

Mais um pormenor: no Bangladesh, os três principais bancos de micro-crédito controlam 61% do mercado. Quando nos deslocamos na capital Dacca, verificamos que a maioria dos ATM (caixas automáticas de débito bancário) pertencem a esses três bancos.

Colômbia: o microcósmico apoiado sistematicamente pelo Estado

Como dissemos mais acima, o governo colombiano e o dos EUA, juntamente com o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, intervieram ativamente no lançamento, apoio e extensão da micro-finança. Neste país as micro-empresas, que representam a maioria dos empregos, foram o alvo principal dos micro-créditos. Cinco instituições dominam este sector, controlando 72% dos créditos em 2014. O Bancamia, principal banco de micro-crédito, está ligado ao segundo maior banco privado espanhol, o BBVA. O Estado dá apoio estrutural. Em 1996 o Corposol/Finansol, que controlava 40% do mercado de novos créditos às micro-empresas, teve de ser salvo com dinheiros públicos, pois tinha dado prioridade à procura a todo o custo de uma extensão máxima [12]. Os altos quadros bancários das empresas de micro-crédito provêm de grandes bancos privados, nomeadamente dos EUA, como o Citibank. Todas as avaliações realizadas pelo governo colombiano falam do sucesso do que ele chama indústria do micro-crédito. A razão é simples: essas avaliações só levam em conta o crescimento do sector da micro-finança, sem se preocuparem com os seus efeitos na atividade económica, sem se debruçarem sobre a capacidade das micro-empresas para deixarem o sector informal para passarem para o formal. Na realidade, a micro-finança colombiana manteve as micro-empresas na informalidade e empurrou-as para o sobre-endividamento, o que aumentou a taxa de incumprimentos. A partir dos anos 2000 o Governo convenceu os grandes bancos privados colombianos a investirem na micro-finança. Entre 2002 e 2006 foram investidos anualmente 130 milhões de dólares com garantia pública em caso de falta de pagamento ou falência [13]. A quantidade de créditos com garantia do Estado foi multiplicada por cinco entre 2001 e 2005. Em consequência, o Governo decidiu aumentar o número de micro-créditos concedidos e fixou como objetivo atingir a atribuição de 5 milhões de micro-créditos entre 2006 e 2010. Este objetivo foi ultrapassado: foram concedidos 6,1 milhões de empréstimos. No período de 2010-2014 até ultrapassaram esta marca: enquanto o Governo pretendia chegar aos 7,7 milhões de microcréditos, o total atingiu os 10,2 milhões. Mas o programa em plena expansão não tinha conseguido melhorar a qualidade do emprego. Em 2006, pressionado pelos bancos de micro-crédito, o Governo autorizou um aumento das taxas de juro [14]. As taxas autorizadas passaram a situar-se entre os 22,6 e 33,9%.

A partir de 2010 as taxas de juro voltam a sofrer novo aumento, oscilando entre 30 e 50%. Além disso, o Governo autorizou a introdução de taxas variáveis, indexáveis a cada 3 meses. Na Colômbia a expansão do micro-crédito é exponencial. Passou de um volume total de 136 milhões de dólares em 2002, para 3800 milhões em 2016, ou seja, um crescimento anual de 28,1%. Em termos de volume individual dos empréstimos, em 2015, 72% dos micro-créditos variavam entre 1 e 25 vezes o salário mínimo legal, enquanto os 28% restantes oscilavam entre 25 vezes e 120 vezes o salário mínimo legal. Em 2015 o rendimento de fundos próprios (ROE) era fenomenal [15]: o Bancamia atingiu 11,7%, o Banco Mundial das Mulheres (sic!) (WWB) 9,1%, e o banco Mundo Mujer 21%. O Goldman Sachs, um dos bancos mais rentáveis a nível mundial, obtém resultados nitidamente inferiores!

Embora a saúde aparente dos bancos colombianos especializados em micro-crédito seja excelente, o mesmo não sucede com as pessoas e micro-empresas que recorrem ao seu crédito. 32% dos clientes estão sobre-endividados e tiveram de recorrer à reestruturação das suas dívidas, o que passa essencialmente por uma extensão do período de reembolso. Com a degradação da conjuntura económica colombiana em 2016-2017, o número de incumprimentos de pagamento aumentou fortemente [16].

África do Sul: é frequente os patrões, por ordem judicial, descontarem directamente do salário dos trabalhadores o montante a reembolsar

A 16 de agosto de 2012, na região de Marikana na África do Sul, a polícia abriu fogo sobre os mineiros em greve e matou 34. Este episódio trágico é muitas vezes apontado como o ponto de viragem na história da democracia nesse país a que alguns chamam a «nação arco-íris». Este episódio revela não só o apoio quase incondicional do ANC (que dirigiu a luta anti-apartheid) e da nova classe dirigente negra às forças do capital, mas também o elevado nível de endividamento dos mineiros. O grosso das dívidas é devido aos «micro-credores»; de facto, o crescimento do micro-crédito na África do Sul é fenomenal. Há sul-africanos que ganham entre 3500 e 10.000 rands por mês (um salário de operário) e consagram até 40% desse valor ao reembolso de empréstimos. É frequente os patrões, por ordem judicial, deduzirem diretamente dos salários dos seus trabalhadores o montante a reembolsar. Se os mineiros estiveram em greve em 2012 para obterem um aumento salarial, foi porque esses descontos os deixavam sem meios de subsistência e porque se tinham endividado a taxas de juro usurárias, junto de credores selvagens que se multiplicaram à beira das minas ou em localidades como Marikana [17].

Marrocos: quando as vítimas se organizam

Desde meados da década de 1990 que o Estado marroquino promoveu o micro-crédito por meio de financiamentos públicos nacionais e internacionais (Fundo Hassan II para o Desenvolvimento, PNUD, USAid, etc.).

Existem hoje 13 instituições coordenadas no âmbito da Federação Nacional das associações de micro-crédito, das quais quatro representam 95% dos empréstimos (sendo duas delas filiais de bancos) que estruturam o sector. Este passou, de 2008 a 2011, por uma crise devida às falhas de reembolso, que entre outros motivos se deve à falência da fundação Zakoura, o que levou a uma intervenção do Estado para reorganizar e consolidar essas estruturas.

Dos anos 1990 até final de 2015, foram distribuídos quase 50.000 milhões de dirhams em empréstimos. Os empréstimos vão de 500 dirhams a 50.000 dirhams [50 a 5000 euros] no máximo, a uma taxa efetiva média de 35% mas que pode ir bastante além disso.

Tirando partido da situação de urgência em que se encontram os devedores, do seu nível de estudos e do seu desconhecimento dos procedimentos financeiros, os organismos de micro-crédito escondem a taxa de juro efetivo anual real, limitando-se a dar a taxa mensal.

As dificuldades de reembolsar empréstimos excessivos e a aplicação de taxas usurárias explica o nascimento de um movimento construído pelas vítimas do micro-crédito na região de Uarzazate (Sudeste de Marrocos) em 2011 [18]. Este movimento reuniu cerca de 4.500 vítimas, na sua maioria mulheres. A ATTAC CADTM Marrocos apoiou esta luta e considerou-a uma justa luta contra a cupidez das instituições bancárias e dos investidores que as controlam, mostrando o carácter ilegítimo e ilegal desses empréstimos.

 

Caravana internacional de solidariedade com as mulheres vítimas do microcrédito em Marrocos

Como descreve o ATTAC CADTM Marrocos: «Através da sua luta, este movimento revelou a falsidade do objetivo declarado pelas instituições da micro-finança na própria lei que as rege, e os meios ilegais de que lançam mão nos casos de dívidas não pagas. Os devedores foram sujeitos a várias formas de ameaças e despojados dos seus bens. As mulheres em particular foram sujeitas a enormes pressões: algumas abandonaram a família, outras emigraram, outras viram-se obrigadas a recorrer à prostituição» [19].

Os organizadores do movimento foram perseguidos pela justiça, condenados a penas duras numa primeira fase. Perante a forte mobilização das vítimas e a solidariedade internacional que receberam, finalmente o tribunal ilibou-os[20].

Como sublinha a ATTAC CADTM Marrocos: «a questão dos micro-créditos vai mais além da ganância e da cupidez das instituições financeiras internacionais e locais e coloca o problema mais geral do tipo de políticas de luta contra a pobreza e, mais amplamente ainda, do modelo de desenvolvimento que está na base dessas políticas. Por um lado, suprime os meios de subsistência de uma parte da população, através do açambarcamento das terras, da propagação do agro-negócio, do encerramento dos serviços públicos ou sua privatização; por outro lado, o dinheiro é emprestado de forma a que o devedor consiga aceder a serviços pagos: escolas e clínicas privadas, etc., ao mesmo tempo que se lhe pede que crie a sua própria atividade geradora de rendimentos, num mundo em crise e retirando-lhe uma considerável parte dos lucros dessa operação» [21].

Outros mecanismos de dívidas privadas

Outros mecanismos de endividamento privado desempenham um papel fundamental nos países ditos em desenvolvimento, sejam eles emergentes ou não.

Na China, mais de 100 milhões de pessoas são vítimas de uma enorme bolha imobiliária em desenvolvimento há mais de dez anos. As habitações atingem preços astronómicos. Dezenas de milhões de agricultores são vítimas da especulação imobiliária, que está a fazer subir o preço das terras agrícolas perto das zonas urbanas. Os bancos chineses lançaram-se em créditos imobiliários cada vez mais massivos e multiplicam-se os abusos por parte dos banqueiros. A taxa de incumprimento dos pagamentos vai aumentando. Quando os preços do imobiliário desabarem, as famílias ameaçadas de despejo dos seus apartamentos contar-se-ão às dezenas de milhar.

Na Índia, nos últimos 20 anos contabilizam-se mais de 300.000 suicídios de camponeses endividados e o número de vítimas não dá sinais de diminuir [22].

Resumindo, no início deste século XXI, tanto no Norte como no Sul, os oprimidos veem-se confrontados com o recrudescimento da utilização das dívidas como mecanismo de servidão, espoliação e expropriação. Por isso o CADTM decidiu integrar nas suas atividades a luta pela abolição das dívidas privadas ilegítimas.


Texto traduzido por Rui Viana Pereira. Publicado originalmente na página do CADTM.


Notas:

[1] Ver Éric Toussaint e Damien Millet, 65 questions 65 réponses sur la dette, le FMI et la Banque mondiale, 2012, cap. 3: «La crise de la dette», 8331

[2] Ver Rui Viana Pereira, «Manual da OCDE para Governos Neoliberais», CADPP, 28/10/2018 (em grande parte decalcado de um artigo de Éric Toussaint, «Comment appliquer des politiques antipopulaires d’austérité. L’OCDE fournit un vade-mecum pour les gouvernants».

[3] Daniel Munevar, «Colombia: A critical look», 2017, 21 páginas no prelo de uma publicação da CNUCED.

[4] Mais uma vez, o que é apresentado como uma iniciativa da sociedade civil e iniciativa privada deve o seu sucesso a um apoio vital por parte do Estado e de organismos internacionais como o Banco Mundial.

[5] Ver Michel Husson, «L’impossible capitalisme vert»: Un livre indispensable pour construire un projet écosocialiste, 09/09/2010. Ver também Daniel Tanuro, «L’impossible capitalisme vert?» Pourquoi?, 2/10/2016.

[6] Nicolas Sersiron, «Terres préemptées, néo-colonialisme renforcé», 5733.

[7] Ver «Le Kenya, leader mondial du paiement mobile». Ver também «ONU, Transferts d’argent: le téléphone portable au secours des banques», Afrique Renouveau En Ligne; CNUCED, «Les services monétaires par téléphonie mobile».

[8] Muhammad Yunus, Vers un nouveau capitalisme, J-C Lattès, 2007, 280 p., p. 31. Esta passagem foi colhida no excelente artigo de Denise Comanne, «Muhammad Yunus: prix Nobel de l’ambiguïté ou du cynisme?».

[9] Esther Duflo, Microcrédit, miracle ou désastre?

[10] Fonte: Monower Mustafa, comunicação ao seminário internacional realizado pelo CADTM em Dacca, 3 e 4/03/2017. Ver relatório: «La lutte contre la dette et le microcrédit s’organise en Asie du Sud».

[11] «Microcrédit au Bangladesh: hold-up de la Grameen Bank et consorts sur les villages ruraux»

[12] Ver «Corposol/Finansol: Preliminary Analysis of an Institutional Crisis in Microfinance».

[13] Trigo, J., Patricia, L., Devaney, L., & Rhyne, E. (2004). Supervising & Regulating Microfinance in the Context of Financial Sector Liberalization: Lessons from Bolivia, Colombia and Mexico.

[14] Gutiérrez, M. L. (2009). Microfinanzas dentro del contexto del sistema financiero colombiano.

[15] O return on equity mede a relação entre o resultado líquido e os capitais próprios investidos pelos accionistas, expressos em percentagem. A equação é ROE = Resultados líquidos / capitais próprios.

[16] El Nuevo Siglo Bogotá, «Cae desembolso de microcrédito».

[17] Fonte: Samantha Ashman, Financialisation and Mine Workers’ Struggles in South Africa, comunicação apresentada na jornada de estudos: «Finance et mouvements sociaux», Paris, 13/04/2017.

[18] Lucile Daumas, «Micro-crédit, macro-arnaque».

[19] ATTAC CADTM Maroc, Le microcrédit au Maroc: quand les pauvres financent les riches. Ver também Omar Aziki, «Maroc: les couches populaires sous le double joug du microcrédit et du despotisme».

[20] Souad Guennoun, «Acquittement pour les deux inculpé.e.s du procès microcrédit à Ouarzazate».

[21] ATTAC CADTM Maroc, Le microcrédit au Maroc: quand les pauvres financent les riches

[22] Ver um caso concreto em Al Jazeera, «India’s sugarcane farmers: A cycle of debt and suicide».