“Democracia real” e auto-organização da classe trabalhadora

25 de janeiro 2021 - 16:11

A maré revolucionária iniciada no Cairo ofereceu ao mundo o espectáculo de milhares de pessoas concentradas, a 25 de janeiro de 2011, na Praça Tahrir, a fazerem dela uma ágora para decidir sobre o rumo do movimento. Por António Louçã.

porAntónio Louçã

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Praça Tahrir, 25 de janeiro de 2011. Foto de Gigi Ibrahim, Wikimedia.

Dez anos depois de milhares de egípcios terem enchido a Praça Tahrir para exigir liberdade, o Esquerda.net reproduz uma intervenção de António Louçã, datada de 2012, sobre as "primaveras árabes".


Algumas réplicas europeias da primavera árabe deram depois um nome a essa prática: “democracia real”. Com o nome, descreviam um processo existente e marcavam distâncias face a uma interpretação falaciosa dos acontecimentos.

Particularidades árabes e universalidades revolucionárias

No ocidente, várias vozes do dono vinham defendendo há décadas que os povos árabes eram imaturos para a democracia. Assim se justificava habitualmente as fotografias de família dos nossos governantes democráticos em conúbio descarado com Mubarak, ou em arranjos financeiros como os de Sarkozy com Kadhafi. “Cada povo tem o que merece”, dizia-se, e a democracia parlamentar está muito além do que os povos árabes podem querer. A islamofobia justificava a tolerância perante as ditaduras.

Hoje, subitamente, descobre-se que são os povos árabes que estão a ir além da democracia de tipo ocidental e estão a esboçar algo muito mais avançado do que ela. Orquestra-se então, apressadamente, uma campanha mediática para fazer passar a ideia de que o horizonte mais ambicioso do movimento só pode ser o de imitar a civilização cristã e as suas democracias. Os mesmo povos que antes não podiam querer uma democracia parlamentar, agora não podem querer outra coisa. O corolário lógico que daqui resulta é o de considerar todo o processo da Praça Tahrir como uma aberração anarquizante e demagógica, em que as decisões são tomadas ao monte.

Mas, neste aspecto, o processo da Praça Tahrir e os seus contemporâneos apenas dão corpo a uma lei universal de todas as revoluções. Sempre que uma qualquer sociedade sofreu uma ruptura da sua paz podre, houve classes que antes estavam marginalizadas e, subitamente, começaram a ter poder e a tomar decisões. Aquilo que a horrorizada imprensa dos nossos dias descreve como um processo de decisão tumultuoso era apenas um poder que em parte passava a ser exercido aos olhos de toda a gente, sem segredos de Estado nem arranjos de bastidores. Como os movimentos revolucionários se fazem de muitas presenças e poucas delegações, o processo decisório com frequência assumiu formas de democracia directa e assembleária.

Não se trata, portanto, de uma invenção moderna. Tudo isto aconteceu inúmeras vezes ao longo da História: já no século XVI com a rebelião camponesa que acompanhou a Reforma de Lutero, no século XVII com o contrapoder dos levellers que empurrou Cromwell muito para além dos seus projectos iniciais e no século XVIII com o movimento dos enragés que desbravou o caminho aos jacobinos - para só citar os exemplos mais conhecidos. E depois vieram ainda a Comuna de Paris em 1871, o soviete de Petersburgo em 1905 e um largo etcoetera.

A actualidade que conserva a reivindicação conselhista brota entretanto da degenerescência da democracia burguesa. Longe de ser a última palavra da civilização ou o “Fim da História”, a democracia burguesa nega-se diariamente a si própria, como resulta, entre outros, dos mais recentes atentados europeus ao princípio do sufrágio universal – a nomeação de governos não-eleitos nos dois berços da democracia, ou a constitucionalização dos défices por ordem de Berlim.

Perante tais fracassos, são os próprios partidários do regime parlamentar quem procura complementar os mecanismos de representação formal com outros a que chamaram de “democracia directa” (foi o caso do risível apêndice referendário na democracia suíça). Ou são movimentos contestatários, que procuram escapar ao dilema de ferro entre a democracia burguesa e a democracia directa, inventando engenhosas terceiras vias (foi, durante um breve lapso de tempo, o caso do altermundialismo com a miragem dos “orçamentos participativos”). Mas, depois de um primeiro momento de expectativa, os sucedâneos ou, pior, complementos para a democracia burguesa acabavam por decepcionar. Ficava a velha frustração.

Hoje, ao contrário do “orçamento participativo”, a reivindicação da “democracia real” – empiricamente praticada na Praça Tahrir, certeiramente formulada na Puerta del Sol - não é um produto de laboratório, e sim uma filha legítima das primaveras árabes e dos seus ecos internacionais. Ela retoma o espírito da Grande Revolução Francesa, de trazer o poder para a rua e os debates para a praça pública. É a aspiração a uma democracia que não seja meramente formal.

Convocatórias de facebook: pós-modernismo ou revolução pré-proletária?

Por muito que se rotule de “utópica” ou “prometaica” a aspiração uma democracia real, será sempre possível identificar o seu calcanhar de Aquiles, numa análise concreta das relações de forças entre as classes. O ponto fraco da enchente de Tahrir, que os militares puderam aproveitar para manter o seu controlo sobre as eleições, e o seu direito de veto sobre as candidaturas indesejadas, está num dos factores que fizeram a sua força. Oportunas convocatórias por facebook trouxeram milhares de pessoas que tinham atingido o ponto de saturação e queriam derrubar uma ditadura. No meio desta multidão autoconvocada dificilmente podia existir uma espinha dorsal já caldeada em movimentos anteriores.

Não podia constituí-la a Irmandade Muçulmana, que tinha os seus compromissos com a ditadura militar, e de qualquer modo estava disposta a deixar-se saciar com uma representação parlamentar forte. Já o movimento operário, com as poderosas greves do Delta do Nilo que antecederam a revolta de Tahrir, podia ter sido o factor estruturante decisivo. Mas, aparentemente, o proletariado industrial manteve-se acantonado em Port Saïd e Alexandria, deixando o espaço decisivo da insurreição a um movimento muito mais volátil.

Na verdade, o “dia seguinte” dos lampejos de autodeterminação pode sempre desenhar-se de formas diversas. Essas formas dependem dos imponderáveis de qualquer movimento de massas e também dependem de um factor que antecede a própria eclosão do movimento: o exercício de uma democracia real no quotidiano pré-revolucionário, em todos os espaços sociais, e nomeadamente nos locais de trabalho. Trata-se de um exercício complexo, que inclui a pressão dos e das trabalhadoras sobre as suas organizações e sobre as empresas, que inclui a forma de concertar esforços para fazer essa pressão, que inclui o controlo da base sobre os seus delegados, a realização de reuniões sectoriais e também de assembleias plenárias.

Há geralmente uma tendência muito arreigada para medir a existência de uma democracia real pela frequência e pelo grau de participação dos trabalhadores em assembleias plenárias. Mas é um erro fazer desse o único critério de medida, conduzindo a ilações forçosamente deprimentes: participam poucas pessoas nos plenários, donde se deduz que as organizações não podem contar com os trabalhadores.

A prática da democracia real nos locais de trabalho em tempos de apatia não vive da expectativa no momento apoteótico da assembleia. Essa prática consiste em mobilizar quem queira, ou quem esteja na disposição de fazê-lo, ou quem esteja para aí inclinado. Os objectivos da mobilização dependem da massa crítica existente. Uma direcção capaz não lançará uma greve se apenas contar com uma ínfima minoria, mas tão-pouco desperdiçará a boa vontade dessa minoria, à espera de melhores dias. Por muito que tudo isto seja fácil de dizer e difícil de fazer, há várias formas de organizar a vanguarda e de apoiar o impulso que tem, para atingir objectivos à medida das suas forças. Para além das formas organizativas que, no movimento operário português, constituem as comissões de delegados, as comissões de trabalhadores, as comissões para a higiene e segurança no trabalho, há sempre vias diversas para criar grupos de trabalho ad hoc, com metas precisas e alcançáveis.

Este remar contra a maré não é tão inglório como parece. Pouco importa que ganhos materiais de hoje sejam peanuts à vista do que se pode conseguir amanhã, quando virar a maré. O importante é ser nas fases de apatia que cada pessoa encontra o seu lugar num colectivo, que se tece relações de solidariedade e confiança, que se decanta a direcção natural dos processos futuros. É esse tecido de relações, e não só a euforia assembleária, que dota os movimentos proletários de uma coluna vertebral que frequentemente falta aos grandes surtos de mobilização popular.

A assembleia é, na luta do proletariado, o momento fundamental de decisões amadurecidas numa prática anterior. O piquete de uma greve prolongada pode funcionar como assembleia permanente, em que todas as decisões são tomadas. Com mais forte razão, a democracia directa exercida no pico de uma revolução proletária assume formas tão assembleárias como as de qualquer outra revolução mais primitiva e mais interclassista. Mas a assembleia é na revolução proletária o culminar de um processo orgânico de amadurecimento de decisões, de divisão de trabalho, de selecção de dirigentes. Ela não é o golpe de mão de uma maioria que calhou achar-se reunida a certa altura da luta. Por esse motivo, mesmo um caudilho ocasional de grande carisma (Gapone, em 1905) tem dificuldade em impor-se a um movimento que amadureceu de forma sustentada nas adversidades do refluxo.

Há, enfim, uma diferença importante entre a assembleia permanente que pode viver-se em certos momentos de uma revolução e a criação dos fundamentos para um novo regime político. Quando se mobiliza uma vanguarda, muita coisa pode ser decidida de forma plenária e assembleária. A viabilidade prática não resulta apenas do carácter limitado de qualquer vanguarda, mas também da sua presença quase permanente, que lhe vem de ser vanguarda e que lhe vem de dar corpo ao élan revolucionário. A democracia é tanto mais directa quanto mais activo e presente for o sujeito colectivo das decisões. Mas, quando se toma as rédeas do poder e se pretende envolver milhões de pessoas no processo decisório, torna-se inevitável algum tipo de representação.

A democracia revolucionária nem sempre é democracia directa

Nem toda a democracia revolucionária é forçosamente directa e nem toda a democracia representativa é forçosamente burguesa. Identificá-las nesses termos seria redutor e demagógico. A democracia revolucionária tem também alguma coisa de representativa, principalmente depois de assumir o poder. Tal como em tempos de revolução o processo decisório não se reduz à assembleia, tão-pouco a complexidade desse processo se deixa esgotar na fórmula atraente mas simplista da “democracia directa”.

As expressões sovietistas e conselhistas da democracia revolucionária nas grandes revoluções proletárias não se deixaram paralisar por um preconceito assembleário e lidaram, de forma viva e prática, com esta contradição. Na Comuna de Paris e nos sovietes russos de 1917, o carácter “directo” da democracia traduzia-se na revogabilidade a todo o instante dos representantes – mas eram representantes! -, na proibição de privilégios materiais, nos mandatos imperativos, no fim da separação de poderes teorizada por Montesquieu.

Este tipo de democracia, com um controlo mais imediato e directo sobre as instâncias de representação, tinha, sobre a democracia burguesa, a enorme vantagem de ser muito mais “real”. A mola do seu funcionamento era a mobilização revolucionária e, passada esta, a coesão do proletariado industrial. Não há democracia conselhista possível numa sociedade parasitária, alimentada com pão e circo e financiada com a exploração de países coloniais.

As mutações sociais entretanto ocorridas no mundo, com a desindustrialização e a terciarização em larga escala dos países imperialistas, colocam a dúvida sobre a viabilidade de alternativas de poder conselhistas nesses países. Mas essa é uma visão eurocêntrica ou americanocêntrica, que vê desindustrialização nos centros do capital financeiro e logo fala num mundo pós-industrial. Não existe nenhum pós-industrialismo global, quando a China transfere centenas de milhões de pessoas do campo para a cidade e se transforma na principal fábrica do mundo.

Tal como a industrialização dos “Tigres do Pacífico” na década de 90 produziu um dos mais combativos movimentos proletários finisseculares – o sul-coreano -, também a ascensão da China ao lugar de principal potência industrial do século XXI faz dela a portadora das maiores expectativas para o futuro. Por enquanto, o que temos são pálidas amostras dessa democracia. A reivindicação de uma “democracia real” alimenta-se das primaveras árabes, da resistência dos países mediterrânicos às políticas da troika, de espasmos da revolta norte-americana em Wisconsin ou em Wall Street – mas sofre com a desindustrialização dos seus cenários principais e com a tardança do proletariado chinês.

A velha toupeira tem ainda trabalho a fazer, até nos ser dado assistir a uma “democracia real” que seja expressão de um efectivo movimento de auto-organização da classe trabalhadora. O parto da Praça Tahrir e o baptismo da Puerta del Sol são apenas começos auspiciosos do que está para vir.

António Louçã
Sobre o/a autor(a)

António Louçã

Jornalista