Ellsberg tornou-se conhecido em 1971 quando fotocopiou a história secreta do envolvimento dos Estados Unidos na guerra do Vietname, o que ficou conhecido como os "Documentos do Pentágono", e deu uma cópia ao New York Times. A decisão do New York Times de publicar os documentos desencadeou uma batalha decisiva pela liberdade de imprensa que chegou até ao Supremo Tribunal.
Ellsberg tornou-se o primeiro lançador de alerta a ser acusado ao abrigo da Lei da Espionagem. Para além de procurar obter uma acusação, Richard Nixon também criou uma unidade de "canalizadores da Casa Branca" para reunir os podres de Ellsberg. Esta unidade estaria mais tarde no centro do escândalo Watergate que resultou na queda de Nixon.
Durante o meio século que se seguiu, Ellsberg foi sempre um ativista pela paz e pelo desarmamento, bem como um defensor inabalável daqueles que enfrentavam a ira do mesmo regime de secretismo que tentara prendê-lo.
Embora Ellsberg tenha passado cinco décadas como ativista contra a guerra, a sua carreira começou de uma forma muito diferente. Segundo o próprio Ellsberg, ele tinha em tempos sido um fervoroso adepto da guerra fria. Mas as suas experiências a trabalhar para a máquina de guerra levaram-no a mudar de ideias.
Trabalhou numa série de cargos dentro do estado de segurança nacional dos EUA. Estava no Pentágono no dia em que as forças norte-vietnamitas alegadamente atacaram o USS Maddox no Golfo de Tonkin. Rapidamente se apercebeu do facto de que o Governo estava a mentir sobre o incidente.

Viajou duas vezes para o Vietname - primeiro em 1961 como parte de uma missão de averiguação do Pentágono, depois novamente em 1965 como parte de uma missão do Departamento de Estado, durante a qual foi fotografado em camuflagem com uma espingarda.
Para além de estar envolvido na guerra dos EUA no Vietname, Ellsberg estava envolvido na política nuclear dos EUA, algo que descreveu como sendo um "planeador do dia do juízo final". Ellsberg acabaria por ficar horrorizado com a perspetiva de um dia do juízo final nuclear e por se voltar contra a guerra do Vietname. Enquanto trabalhava na RAND Corporation, ligada ao Pentágono, Ellsberg deixou de defender a guerra para se envolver ativamente na organização anti-guerra.
Fez amizade com Howard Zinn e Noam Chomsky, participando com eles em manifestações. Ellsberg liderou um grupo solidário durante o protesto do Primeiro de maio de 1971 contra a guerra que incluía Zinn e Chomsky.
Mas o momento crucial da vida de Ellsberg ocorreu em agosto de 1969, quando participou numa conferência contra a guerra. Ouviu as histórias de resistentes ao recrutamento que seriam presos pelo seu ato de coragem. Depois de as ouvir, Ellsberg foi à casa de banho, deitou-se no chão e começou a chorar. Nessa altura, Ellsberg tomou a sua decisão mais marcante.
Ellsberg começou por encarar a guerra como um erro, mas acabou por se aperceber que era um crime. Enquanto um erro pode ser corrigido, um crime deve ser combatido.
Um lançador de alerta contra a guerra
Como funcionário da RAND, Ellsberg teve acesso a um estudo de quarenta e sete volumes e sete mil páginas sobre a Guerra do Vietname. Este estudo remontava à administração Truman, quando os Estados Unidos tinham financiado as tentativas francesas de recolonização do país. Provava que, passo a passo, ao longo de duas décadas e de várias administrações, o governo dos EUA tinha mentido ao povo sobre a guerra.
Ellsberg decidiu divulgar a história ultra-secreta ao povo.
Hoje em dia, os denunciantes podem copiar e transmitir grandes quantidades de dados com facilidade, mas na altura não havia pen drives nem emails. A única forma de Ellsberg copiar os documentos era com uma fotocopiadora. A tarefa demorou meses.
Inicialmente, Ellsberg tentou entregar os Documentos do Pentágono aos membros do Congresso, mas estes mostraram-se relutantes em aceitá-los. Voltou-se então para o New York Times. Após intensa deliberação interna, o jornal, orientado pelo seu conselheiro geral James Goodale, decidiu que publicá-los era do interesse público e que a Primeira Emenda protegia o direito de o fazer.
A administração Nixon pediu uma providência cautelar ao abrigo da Lei da Espionagem, impedindo o New York Times de continuar a publicar a história secreta. Temporariamente silenciado, Ellsberg levou os Documentos do Pentágono para o Washington Post. O Post publicou-os antes de também ser alvo de uma providência cautelar. Isso deu início a um processo em que, à medida que um jornal era intimado, outro avançava e publicava os Documentos do Pentágono.
Para além da imprensa, Ellsberg conseguiu que o senador anti-guerra Mike Gravel recebesse uma cópia. Gravel introduziu-os no registo do Congresso. Por fim, o Supremo Tribunal decidiu que o Governo não podia impedir os jornais de publicar os Documentos do Pentágono. No entanto, o tribunal deixou em aberto a questão de saber se os jornais poderiam ser processados ao abrigo da Lei da Espionagem depois de o terem feito. Como resultado, Gravel teve dificuldades para encontrar uma editora que imprimisse os Documentos do Pentágono, embora a Unitarian-Universalist Beacon Press tenha acabado por aceitar.
Embora permanecesse em aberto a questão de saber se a Lei da Espionagem podia ser utilizada contra um editor, a administração Nixon apresentou queixa contra Ellsberg e Anthony Russo por terem divulgado os Documentos do Pentágono. Ellsberg esperava passar o resto da sua vida na prisão, mas, com base na experiência dos resistentes à guerra, copiou-os na mesma. Como diria mais tarde a um jornalista quando se entregou: "Não irias para a cadeia se isso ajudasse a acabar com a guerra?"
A irregularidade da administração Nixon, no entanto, manchou o caso e um juiz teve de o arquivar. Antes disso, a natureza draconiana da Lei da Espionagem tinha praticamente assegurado as condenações de Ellsberg e Russo.
A luta de Ellsberg por um mundo melhor não cessou. Participou frequentemente em protestos contra as guerras dos EUA, quer na América Central quer no Iraque. Em 2018, Ellsberg tinha sido detido oitenta e sete vezes em ações de desobediência civil.
Ellsberg também assumiu uma nova proeminência durante os anos de Obama. A militar Chelsea Manning entregou documentos secretos sobre as guerras dos EUA à WikiLeaks. Manning, tal como Ellsberg, foi acusada ao abrigo da Lei da Espionagem. A meio do seu julgamento, o Guardian começou a publicar uma série de revelações sobre os programas de vigilância global da Agência de Segurança Nacional (NSA). Esta informação provinha do denunciante Edward Snowden. Em breve, Snowden seria também acusado ao abrigo da Lei da Espionagem. Estava em curso uma nova guerra contra os lançadores de alerta. E a Lei de Espionagem era a principal arma do governo contra eles.
Ellsberg foi vilipendiado pelo establishment político quando divulgou os Documentos do Pentágono. Henry Kissinger, que recentemente celebrou o seu centésimo aniversário, apelidou-o de "o homem mais perigoso da América". No entanto, com o passar das décadas, a história provou que os seus atos foram heróicos. Quando surgiram novos lançadores de alerta como Manning, alguns comentadores tentaram perversamente compará-los com Ellsberg: ele era um bom lançador de alerta, eles não. Ellsberg nunca aceitou isso, pois reconhecia-se nas atitudes deles. Ele disse aos jornalistas:
Eu estava disposto a ir para a prisão. Nunca pensei, para o resto da minha vida, que alguma vez voltaria a ouvir alguém disposto a fazer isso, a arriscar a sua vida, para que segredos horríveis e terríveis pudessem ser conhecidos. Depois li aqueles ficheiros e soube que [Chelsea Manning] estava disposta a ir para a prisão. Não consigo dizer-vos o quanto isso me tocou.
Ellsberg não só falou em defesa de Manning como assistiu ao seu julgamento em tribunal marcial. Foi através da sua campanha contra a Lei da Espionagem que fiquei a conhecê-lo. Vi-o falar pessoalmente pela primeira vez num comício à porta de Fort Meade a favor de Manning. Anos mais tarde, como diretor de políticas da Defending Rights & Dissent, falei com ele, pois Ellsberg apoiou o nosso trabalho para reformar a Lei da Espionagem, impedir a extradição de Julian Assange e garantir o perdão a Daniel Hale.
O empenhamento e a compaixão de Ellsberg eram incrivelmente óbvios para mim. Quando se tratava de lançadores de alerta perseguidos e torturados pelo governo dos EUA, o que estava em jogo era muito importante para ele. Em dezembro de 2022, quando os apoiantes de Hale organizaram uma conferência de imprensa virtual para pedir a comutação da sua pena, pedimos a Ellsberg que falasse. Era evidente que ele não se estava a sentir bem e nenhum de nós pensava que ele fosse conseguir falar. No entanto, para surpresa de todos os organizadores, Ellsberg apareceu, de fato e gravata. Tal era a sua dedicação à libertação do seu colega lançador de alerta.
Nos últimos anos, Ellsberg concentrou-se cada vez mais na abolição das armas nucleares. Em 2017, publicou o seu segundo livro de memórias, revelando pela primeira vez o seu papel como "planeador do dia do juízo final". Ele também fez outra revelação. Na mesma altura em que copiou os Documentos do Pentágono, copiou também um estudo sobre a resposta dos EUA à crise do Estreito de Taiwan em 1958. De acordo com o estudo, os generais norte-americanos defenderam um ataque nuclear.
Ao publicar este estudo, Ellsberg violou novamente a Lei da Espionagem. Ao fazê-lo, tinha dois objetivos. Em primeiro lugar, com as tensões a aquecer entre os Estados Unidos e a China por causa de Taiwan (mais uma vez), Ellsberg queria avisar o mundo do perigo que tinha sido a guerra nuclear no passado. Além disso, desafiou o governo dos EUA a acusá-lo para que pudesse contestar a constitucionalidade da Lei da Espionagem.
Esta não foi a última batalha de Ellsberg contra o secretismo oficial. Dois meses antes do diagnóstico de cancro, Ellsberg revelou que, em 2010, a WikiLeaks lhe tinha dado cópias do material fornecido por Chelsea Manning. Ellsberg tinha guardado o material como cópia de segurança. Embora nunca os tenha publicado, a Lei de Espionagem criminaliza tanto a retenção de "informação de defesa nacional" como a sua publicação. Ellsberg pediu ao governo dos EUA que o acusasse juntamente com Assange. Mais uma vez, deixou claros os seus motivos: pretendia lançar um desafio constitucional à Lei da Espionagem.
"Continuarei, enquanto for capaz"
Numa entrevista recente ao Washington Post, Ellsberg referiu as semelhanças entre a guerra do Vietname e a atual guerra na Ucrânia. Ambas as guerras estavam obviamente num impasse, mas os respetivos governos negavam-no. "Estou a reviver uma parte da história que não tinha qualquer desejo de voltar a viver. E esperava não o fazer. E, já agora, isso torna mais fácil partir - foi aqui que eu entrei", disse Ellsberg ao seu entrevistador.
No e-mail em que anunciava o seu cancro terminal, a ameaça de uma guerra nuclear preocupava claramente Ellsberg. Afirmando que o mundo corria o risco de uma guerra nuclear por causa da Ucrânia ou de Taiwan, Ellsberg escreveu: "Já passou muito da hora - mas não é demasiado tarde! - para que as opiniões públicas mundiais desafiem e resistam finalmente à cegueira moral voluntária dos seus líderes passados e atuais. Continuarei, enquanto for capaz, a contribuir para estes esforços".
Embora considere que o mundo está mais próximo do que nunca de uma catástrofe, salientou: "Fico feliz por saber que milhões de pessoas - incluindo todos os amigos e camaradas a quem dirijo esta mensagem! - têm a sabedoria, a dedicação e a coragem moral para continuar com estas causas e trabalhar incessantemente para a sobrevivência do nosso planeta e das suas criaturas".
Quando o entrevistei para o quinquagésimo aniversário da publicação dos Documentos do Pentágono, ficou claro que ele estava muito menos interessado em recordar o passado do que em levar por diante o seu trabalho urgente para evitar a guerra nuclear e reformar a Lei da Espionagem. Honrar Ellsberg exige não apenas recordá-lo como uma figura histórica, mas dar continuidade ao seu trabalho e legado para desmantelar a maquinaria de guerra que já ceifou demasiadas vidas e acabar com o regime de secretismo que a acompanha e que esmaga os que dizem a verdade, ao mesmo tempo que concede impunidade aos criminosos de guerra.
Chip Gibbons é diretor político da Defending Rights & Dissent. Foi o anfitrião do podcast Still Spying, que abordou a história da vigilância política do FBI. Está atualmente a trabalhar num livro sobre a história do FBI que trata da relação entre a vigilância política interna e a emergência do estado de segurança nacional dos EUA. Artigo publicado na Jacobin. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.