Curdos merecem o nosso respeito

30 de dezembro 2022 - 14:19
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A União Europeia devia encarar esta questão de frente e tentar remediar os erros cometidos no passado, ajudando a encontrar uma solução para a “Questão Curda” que foi criada por países europeus. Artigo de José Manuel Rosendo publicado em meu Mundo minha Aldeia.

Foto de José Manuel Rosendo.

A União Europeia (UE) vai ter de tomar uma decisão: se o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) é mesmo uma organização terrorista – está na lista de organizações terroristas da UE – então não é possível que as bandeiras do PKK e a fotografia do seu líder, Abdullah Öcalan, continuem a ser exibidas em várias cidades europeias. Ou a composição da referida lista é alterada, ou os países onde as ditas bandeiras são exibidas em público estão a ser cúmplices de uma organização terrorista. Não é possível a UE colocar uma organização e o seu líder numa lista terrorista e, simultaneamente, permitir que essa organização desenvolva acção política em território europeu.

Os Tratados

Tal como aconteceu com a Palestina (para grande desgraça dos palestinianos) quando uma potência europeia (Grã-Bretanha) assumiu a intenção (Declaração Balfour) de facilitar o estabelecimento do Lar Nacional Judeu se conseguisse derrotar o Império Otomano, aconteceu algo semelhante com o Curdistão (para grande desgraça dos Curdos). Por essa altura já o acordo Sykes-Picot previa a divisão do Médio Oriente entre a França e a Grã-Bretanha e, depois, surgiu o Tratado de Versalhes (ponto final na Primeira Guerra Mundial) e o Tratado de Sèvres, que admitia a autodeterminação dos Curdos. Mas, um outro Tratado, o de Lausanne, deixou cair essa possibilidade, depois de a Turquia, herdeira do Império Otomano, ter imposto fronteiras pela força das armas. A influenciar tudo isto, o jogo das potências europeias que tentavam posicionar-se para obter vantagens da exploração do petróleo do Médio Oriente. Foi neste turbilhão geopolítico que os Curdos foram apanhados, sem força nem organização para influenciar as decisões. Se hoje temos estes dois conflitos (Palestina e Curdistão) às decisões europeias o devemos. A história é o que é.

Curdos e Estado Islâmico

Com o Curdistão dividido por quatro Estados (Turquia, Iraque, Síria e Irão), a ideia da autodeterminação nunca esmoreceu, embora tenha percorrido diferentes caminhos e tenha lideranças diferentes em termos ideológicos e estratégicos.

Recentemente foram os Curdos, da Síria e do Iraque (a que se juntaram curdos da Turquia e do Irão), que enfrentaram, combateram e ajudaram a derrotar a organização Estado Islâmico. Pagaram com a vida de milhares de combatentes. Ainda hoje, são os Curdos da Síria que mantêm os campos que albergam as famílias dos combatentes da organização Estado Islâmico, muitas delas europeias, que os países europeus recusam repatriar.

Atentados em Paris

A “Questão Curda” voltou ao topo da agenda mediática com o recente ataque contra a comunidade Curda de Paris, no qual três pessoas foram assassinadas e três ficaram feridas. Esta comunidade recusa a ideia de que tenha sido apenas um ataque de um homem influenciado pelo discurso racista de extrema-direita e acusa os serviços secretos turcos de terem orquestrado um “atentado terrorista”. A justiça francesa, por agora, descarta a hipótese de “atentado terrorista”.

No dia seguinte a este ataque, uma manifestação de Curdos em Paris terminou em violência, com a comunidade Curda a acusar provocadores turcos de estarem na origem dos confrontos. Certo é que, dois dias depois, uma outra marcha em homenagem às vítimas decorreu sem qualquer problema, com os organizadores a apelarem à vigilância contra a presença de eventuais provocadores.

A acusação Curda à Turquia tem origem num outro atentado (9 de Janeiro de 2013) em que ficou demonstrado, segundo o juiz de instrução, que o suspeito agiu “a pedido de indivíduos que se encontram na Turquia e possivelmente ligados aos serviços secretos turcos”. Nesse atentado de 2013, foram assassinadas três mulheres activistas da causa Curda (entre elas uma figura histórica do PKK: Sakine Cansiz). O suspeito (turco) do atentado morreu na prisão antes de ser julgado e nada mais se conseguiu saber sobre a organização do ataque. Aos pedidos de informação da justiça francesa, o Estado francês responde com o “secret-défense” (segredo de Estado). No ataque recente, uma das vítimas mortais, Emine Kara, era a Presidente do Movimento das Mulheres Curdas de França e foi uma combatente contra a organização Estado Islâmico, tendo ficado ferida nos combates em Raqqa (a capital do Estado Islâmico).

A leitura europeia

Os Curdos, vítimas da estratégia e da ambição das potências europeias no início do século passado, dizem agora que nem na Europa se sentem seguros. Os que aqui procuraram refúgio para fugir à perseguição política nos países onde viviam, acusam agora a França de não ter dado ouvidos aos alertas que lançaram algum tempo antes. O porta-voz do Conselho Democrático Curdo de França disse que, face a declarações do Presidente e de governantes turcos, alertou as autoridades francesas. O ataque recente ocorreu no dia e no momento para o qual estava prevista uma reunião para organizar uma manifestação prevista para Janeiro em memória das vítimas do atentado de 2013.

Em França, a comunidade Curda está bem inserida na sociedade e não é uma comunidade habitualmente envolvida em conflitos. Se há aspecto de que os Curdos não podem ser acusados é de extremismo religioso, ao contrário de outras comunidades contra as quais as forças xenófobas e racistas utilizam esse argumento.

PKK

Uma das reivindicações mais ouvidas por estes dias em Paris é a de retirar o PKK da lista de organizações terroristas; outra é a exigência de libertação de Abdullah Öcalan, líder do PKK, preso na Turquia desde 1999.

A história mostra-nos que muitos outros líderes políticos foram considerados terroristas, mas só com eles foi possível fazer o caminho da paz e encontrar soluções políticas para conflitos armados. Basta recordarmos Nelson Mandela ou Xanana Gusmão.

Quem palmilhar o Curdistão sírio e iraquiano – e falar com as pessoas – percebe facilmente a ligação que o povo sente a Abdullah Öcalan e ao PKK. A União Europeia devia encarar esta questão de frente e, de algum modo, tentar remediar os erros cometidos no passado, ajudando a encontrar uma solução para a “Questão Curda”, uma questão, afinal, criada por países europeus, seja qual for a intenção e o contexto que na altura tenham justificado os Tratados assinados.


Artigo de José Manuel Rosendo publicado em meu Mundo minha Aldeia.

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