Literatura

Christine de Pizan, a autora da primeira utopia feminista da história

30 de junho 2024 - 11:39

Em A Cidade das Senhoras, Pizan defende a capacidade intelectual das mulheres e o seu direito de acesso à universidade e à política.

por

Pilar Godayol

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Miniatura da Cidade das Mulheres.
Miniatura da Cidade das Mulheres.

A teoria feminista tem séculos de existência. Embora, em geral, a primeira vaga do feminismo se situe durante o movimento sufragista, não devemos esquecer a luta de algumas mães precursoras simbólicas para defender os seus direitos literários e de cidadania.

A italiana Christine de Pizan é a primeira escritora profissional da história e o seu “Livro da Cidade das Senhoras” (Le livre de la Cité des Dames) é a primeira utopia feminista de todos os tempos.

O que é a querela das mulheres?

Escrito entre dezembro de 1404 e abril de 1405, A Cidade das Senhoras surge no contexto da polémica da querelle des femmes (querela das mulheres). Nascida na Europa em finais do século XIV e prolongando-se até à Revolução Francesa, a querelle des femmes foi um debate literário sobre as relações de e entre os sexos, bem como sobre o valor da mulher e do feminino, que se manifestou publicamente em reuniões e em múltiplos escritos na Europa medieval.

Em geral, questionava a dignidade das mulheres e a sua capacidade intelectual. Surgiu como um diálogo entre escritores masculinos, até que aparecimento, no início do século XV, surgiu Christine de Pizan. Foi ela a primeira escritora a participar publicamente nesta polémica. Em A Cidade das Damas, Pizan defende a capacidade intelectual das mulheres e o seu direito de acesso à universidade e à política.

Depois de Christine de Pizan, a querela das mulheres alargou-se. Outras representantes proeminentes no debate foram Lady Mary Chudleigh, Judith Drake e Constantia Munda, em Inglaterra, Lucrezia Marinella e Laura Terracina, em Itália, e Marie de Romieu e Marie de Gournay, em França.

Qual é a origem de Christine de Pizan?

Nascida em Veneza em 1364, filha do astrólogo e físico Tommaso da Pizzano, Christine de Pizan deixou as terras italianas ainda criança quando o pai se tornou conselheiro de Carlos V de Valois e instalou a família em Paris. O rei não só lhe proporcionou uma casa luxuosa e um grande rendimento, como também lhe concedeu o privilégio de ter a sua filha educada como uma princesa.

Em 1379, aos quinze anos, Christine de Pizan casa-se com Étienne Castel, de vinte e quatro anos, um nobre que acabara de ganhar o cargo de notário do rei. Em 1389, a peste levou o marido de Pizan e deixou-a viúva aos vinte e cinco anos, com três filhos, uma mãe e uma sobrinha para cuidar, e numa situação financeira desesperada.

Pizan iniciou a sua carreira literária com o objetivo de angariar recursos para a sua família. A sua produção, ao longo de três décadas, é abundante e variada: centenas de poemas e epístolas, biografias, como a de Carlos V (1404) e Joana d'Arc (1429), memórias e tratados de filosofia, moral e política. No total, escreveu cinquenta e cinco livros.

Acrescem as relacionadas com o tema da mulher e dos seus direitos, que culminaram com a publicação, em 1405, da primeira utopia feminista de todos os tempos: A Cidade das Damas. Com a eclosão da guerra civil em França, em 1412, Pizan fugiu de Paris e refugiou-se no convento de Poissy até aos seus últimos dias. Morreu em 1430, com sessenta e seis anos de idade.

Uma utopia revolucionária

A Cidade das Senhoras nasceu em resposta ao tratado misógino do século XIII, As Lamentações de Matheôle, um poema latino escrito pelo clérigo Matheolus e traduzido para francês no final do século XIV por Jean Le Fèvre de Ressons, no qual as mulheres são rotuladas de mentirosas, luxuriosas e desobedientes.

A Cidade das Senhoras conta a história do encontro da autora com três altas damas, Razão, Retidão e Justiça, a quem questiona sobre o desprezo que os homens sentem pelas mulheres. As respostas das damas refutam os argumentos sexistas e androcentricos com exemplos mitológicos e históricos de muitas mulheres cultas, corajosas e virtuosas.

Paralelamente ao diálogo, por iniciativa das três senhoras e com a cumplicidade da autora, constroem uma cidade com o objetivo de ser habitada apenas pelo sexo feminino.

Pizan concebe a cidade como um espaço de sororidade, que se constrói construído em três fases, coincidindo com as três partes do livro. Na primeira, a Razão ajuda a autora a erguer os muros e a fechar as fortificações da cidade. Para além disso, as três damas e Pizan conversam abertamente sobre alguns temas, entre os quais se destacam a reivindicação da escrita como espelho da verdade, a maturidade do eu feminino como entidade social e política e a importância transcendente do acesso das mulheres à educação para que possam fazer escolhas livres.

Na segunda, a Retidão ajuda Pizan a erigir as casas, os edifícios e os templos. A escritora pergunta-lhe também se é verdade que são as mulheres que tornam o estado matrimonial um fardo tão difícil de suportar. Retitude recorda exemplos de mulheres que amaram profundamente os seus maridos, que foram discretas, fiéis e excelentes conselheiras: a rainha Hypsicrata, a imperatriz Triaria, a rainha Ártemis, a nobre Agripina, etc..

Na terceira, a Justiça ajuda-a na construção dos telhados e tetos e na escolha das mulheres ilustres que a vão habitar. Conduzidas pela Virgem Maria, seguem-nas outras santas e virgens mártires.

As duas primeiras partes, mais longas, têm uma abordagem mais clássica e histórica. A última parte, mais curta e de recapitulação, é claramente de base cristã.

Tal como a cidade imaginária de Platão na República ou a de Santo Agostinho em A Cidade de Deus, Pizan situa o livro num lugar físico e simbólico governado por mulheres que representa alegoricamente o restabelecimento dos antigos matriarcados.

Em última análise, A Cidade das Damas apresenta-se como a primeira "ginecotopia": “Um espaço próprio onde se pode viver em paz sem a misoginia dominante, com as manifestações da sua própria cultura, com uma genealogia feminina que justifica e protege o bem-estar das mulheres e promove e respeita as diferenças". Com A Cidade das Senhora, Pizan está mais de um século à frente da célebre Utopia de Thomas More, publicada em 1516.

Juntamente com Marie de Gournay, Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft, Christine de Pizan é uma das mães simbólicas da literatura feminista, uma das primeiras que lutou com a sua escrita, de cara descoberta, para destruir o patriarcado do seu tempo.


Pilar Godayol é professora de Tradução na Universitat de Vic – Universitat Central de Catalunya.

Texto publicado originalmente no The Conversation. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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