Chile: "O Conselho Constitucional será um laboratório para a extrema-direita

21 de maio 2023 - 12:41

Nesta entrevista, o investigador chileno Arnaldo Delgado analisa a situação política no país e fala da radicalização do "poder destituinte", em que nenhum setor político mostra capacidade de criar uma nova orem institucional.

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Jose Antonio Kast na campanha de 2021.
Jose Antonio Kast na campanha presidencial de 2021, que perdeu para Gabriel Boric. Foto publicada na sua página Facebook.

Por detrás do triunfo esmagador do Partido Republicano a 7 de Maio, explica Arnaldo Delgado ao Brecha, a enorme crise de representação que deu origem à revolta de 2019 continua atual. Para o analista, o que está em jogo continua a ser a força da miséria desencadeada há três anos e que ameaça corroer qualquer projeto político que não lhe dê resposta.

Aqueles que se manifestaram contra uma nova Constituição terão mesmo o poder de a escrever. O Partido Republicano, de extrema-direita, que se recusou a assinar o Acuerdo por Chile [em Dezembro de 2022] para permitir um novo processo constitucional no Chile, ganhou as eleições de domingo, 7 de Maio, e terá a maioria no Conselho Constitucional encarregado de examinar e aprovar o projeto de Constituição que sairá da comissão de peritos.

O partido de extrema-direita liderado por José Antonio Kast obteve 35,4% dos votos e 23 dos 51 lugares no Conselho Constitucional. Além disso, foram eleitos 11 membros do pacto Chile Seguro (que inclui a coligação de direita Chile Vamos, com 21% dos votos). A direita dispõe assim de um total de 34 lugares e ultrapassa o quórum necessário (três quintos) para aprovar as disposições do novo projeto. As forças transformadoras deste órgão não têm, portanto, poder de veto: Unidade pelo Chile, o pacto da coligação governamental (Frente Ampla, Partido Comunista, Partido Socialista e outros), obteve 28,59% dos votos e 11 lugares. O Partido de la Gente [PdG, criado em 2019, liderado por Louis Antonio Moreno], que estava a emergir como uma nova força eleitoral, não obteve nenhum representante. A dimensão histórica do número de votos nulos nas eleições de domingo, 16,98% do total, é notável.

Assim, o cenário político chileno mudou radicalmente entre a revolta social de outubro de 2019, que levou à abertura de um processo constituinte sem precedentes com a participação de povos indígenas e movimentos sociais, e um ano de 2023 em que a extrema-direita terá o controlo do Conselho Constitucional.

Para analisar o ciclo político no Chile, o semanário Brecha falou com o investigador Arnaldo Delgado, do Centro de Investigación Transdisciplinar en Estéticas del Sur (CITES), que garante que o "poder destituinte" - ou seja, a contestação do poder no contexto de uma crise aguda de representação política - continuou de 2019 a 2023. E até aumentou. Arnaldo Delgado é mestre em filosofia pela Universidade do Chile, autor dos livros Comunalización, Prolegómenos sobre el esteticidio e Abecedario para octubre, e colunista do programa online La Cosa Nostra, onde se destacam as suas análises sobre as estruturas do poder político.


Como explica a inversão deste ciclo político no Chile?

Existe um mal-estar e um descontentamento social que tem vindo a crescer ao longo dos anos. Por detrás deste mal-estar, há uma enorme crise de representação. Não se trata apenas de uma questão de desconfiança em relação aos representantes em funções, mas também de uma forma de habitar coletivamente o mundo. Estamos a tentar articular uma forma de representação política que nos permita ultrapassar este mal-estar. Mas há um verbo central para explicar este ciclo: contestar. Acho que o que é transversal nestes quatro anos é este carácter contestatário, que a esquerda tentou capitalizar através do processo constituinte anterior, mas não conseguiu porque os meios para ultrapassar este mal-estar eram promessas de muito longo prazo.

Além disso, quando Gabriel Boric chegou ao governo [em 11 de março de 2022], os partidos de esquerda esvaziaram-se. Todos os quadros vão trabalhar para o Estado e, com isso, a destituição é posta de lado, e aqueles que lideraram a batalha pela destituição em 2019 começam a integrar-se no poder. Boric passou de desafiante a desafiado. O cetro da destituição é deixado de lado, e esse cetro é retomado pelo Partido de la Gente e pelo Partido Republicano.

Em suma, existe um círculo vicioso da destituição. Está ligado àquilo a que chamo o poder da destituição. Hoje, este poder de destituição radicalizou-se porque nenhum sector é capaz de ter uma proposta institucional criativa, capaz de gerar uma nova ordem, nem mesmo os republicanos.

Diria que este poder de destituição da direita está agora a ser capitalizado pela extrema-direita?

Antes de mais, é preciso dizer que a anterior Convenção Constitucional (Assembleia Constituinte) foi imediatamente corroída pelo poder de destituição. Os constituintes passaram a fazer parte da elite. O neoliberalismo chileno é um projeto muito precioso para a direita; foi preciso muita imaginação e trabalho académico para chegar ao "paraíso neoliberal" que se instalou no Chile. A direita não está interessada em inventar algo novo. Interessa-lhe a restauração. Por isso, a sua palavra de ordem é "restituir", "restaurar", "recuperar", tudo o que começa por "re". Mas re também significa "repetir", " restabelecer". A única maneira de a extrema-direita viabilizar uma esperança - ilusória - é a reversão e a repetição de um modelo que está na origem do mal-estar social. Em termos constitutivos, não há capacidade de projetar o país a 30 ou 40 anos.

Também defendeu que o "eu povo" presente durante a pandemia é agora um "eu nação". Como é que isso se expressa nos resultados de domingo?

O que comanda é a incerteza. Em 2019, tentámos responder-lhe através da solidariedade partilhada e da coordenação entre bairros. Mas quando a crise económica se intensifica devido à pandemia, a incerteza torna-se individualizada. O discurso "eu, o povo" já não corresponde tão bem à forma como se lida com a incerteza. A direita entra então em cena e, através do discurso da segurança pública, restabelece o "eu, a nação" como elemento articulador da comunidade chilena. Além disso, a esquerda não tem uma linguagem para lidar com a questão da segurança pública, pelo que não é muito convincente neste domínio.

Como antevê a discussão no Conselho Constitucional com uma esmagadora maioria de republicanos? Que papel desempenhará a direita mais moderada?

Há duas almas dentro da direita que se estão a confrontar sobre o tipo de refundação que o Chile vai ter nos próximos anos. Antes de 7 de maio, uma era liderada pelo Chile Vamos e por sectores da ex-Concertación [composta pelo PS, o PDC, o PPD...], e a outra pelo Partido Republicano e pelo Partido de la Gente. No primeiro caso, a refundação é uma democracia tutelar com um neoliberalismo "democrático". No segundo caso, é uma restauração dos anos 80, com ortodoxia neoliberal e um regime de segurança autoritário. No domingo, o carácter da restauração começou a emergir com o triunfo republicano.

O que estava em causa nestas eleições não era tanto a questão constitucional, que já estava meio resolvida, mas se o Conselho Constitucional seria um espaço temporário para testar a agenda governativa do Partido Republicano. Com esta vitória esmagadora, o Conselho Constitucional será um laboratório, um campo de ensaio da ideologia republicana para os futuros candidatos autárquicos, legislativos e presidenciais.

Que margem de manobra tem o governo Boric neste contexto?

Penso que já não tem margem de manobra. Tem de resistir. Com a aprovação da lei Nain-Retamal [uma lei conservadora apoiada pelo partido no poder que garante aos carabineiros a legítima defesa privilegiada em caso de crimes graves, num contexto marcado por um clima generalizado de "insegurança"], qualquer possibilidade de manobra foi enterrada. Mas, mais do que isso, o pecado capital do governo é ter renunciado à destituição porque, com base na boa fé democrática, evita o antagonismo político.

Apesar do triunfo, o senhor disse que o projeto republicano vai esbarrar no poder intacto de destituição. O que é que vai acontecer?

A dada altura, o Partido Republicano terá de apresentar as suas credenciais e as suas origens. Uma das fraquezas do governo de Boric é a sua incapacidade de aplicar o seu programa e de melhorar as condições de vida quotidianas dos cidadãos. Por outras palavras, os direitos sociais continuam a ser negligenciados. E a exigência de segurança social vai bater à porta do próximo candidato presidencial, seja ele quem for. E assim como a esquerda não tem a linguagem para falar de segurança pública, a direita não tem a linguagem para falar de segurança social.

A direita será atingida pelo mal-estar num dado momento. O poder da restauração será corroído pelo poder da miséria. É por isso que não estou à espera do fim após os resultados de 7 de maio, porque é um longo caminho. Objetivamente, quatro anos na história de um país não é assim tanto tempo. Há ainda muitas questões em jogo. Mas, num curto espaço de tempo, a extrema-direita pode causar enormes retrocessos.

Mantém a ideia de que a sociedade chilena não é nem de direita em 2023 nem era de esquerda em 2019?

Sim, há algo mais profundo, que é uma mudança civilizacional. É a incerteza que está em causa. O que queremos como sociedade é um espaço relativamente seguro. Não posso dizer que a sociedade chilena se tenha tornado de direita. Teremos de ver isso nos próximos dez ou quinze anos. O que está a acontecer é que as exigências sociais de hoje coincidem com as exigências históricas da direita. Mas nem as vitórias nem as derrotas políticas se jogam hoje em conteúdos/tempos precisos. A derrota eleitoral de 4 de setembro de 2022 [a rejeição da anterior proposta constitucional] não foi necessariamente uma derrota política, mas abriu um espaço que a direita começou a ocupar. A direita aproveitou muito bem esse espaço e, nos últimos meses, ganhou terreno. Mesmo que esta nova proposta constitucional fosse aprovada e José Antonio Kast se tornasse presidente, eu hesitaria em dizer que a sociedade chilena se tornou de direita.

Se a falta de diálogo do Partido Republicano no Conselho se mantiver, acha que o texto pode ser rejeitado e que isso pode ser aproveitado pelas forças da mudança?

Atualmente, não existe um poder institucional que promova um processo constitucional. Mas também não existem forças de transformação preparadas. Hoje em dia, o protesto foi capturado pelos republicanos. O Partido Comunista e a Frente Ampla perderam essa capacidade. Se eles e os movimentos sociais não a recuperarem, não sei se serão capazes de aproveitar a situação que se abrirá quando o poder de desmantelamento da Constituição corroer o poder de restauração dos republicanos. Vivemos tempos sombrios, não porque os republicanos tenham ganho, mas porque a esquerda não é capaz de articular uma força de protesto: os partidos foram esvaziados de poder, não há sindicatos, não há federações de estudantes. Seria bom pensar num recuo estratégico, tendo em vista os próximos dez ou quinze anos.

Entrevista de Cristian González Farfán (Valparaiso) no semanário uruguaio Brecha, 11 de maio de 2023. Republicado por A l'Encontre. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net