A requerimento do Grupo Parlamentar Bloco de Esquerda foi remetido pessoalmente aos deputados Mariana Mortágua e Jorge Costa um conjunto de vinte documentos que o Ministério do Ambiente classificou como confidenciais. Sem violar essa classificação, o Bloco de Esquerda apresenta as conclusões que retira da análise detalhada que realizou.
1. Os documentos analisados confirmam que o negócio da venda das barragens não corresponde a nenhuma reestruturação empresarial, mas antes e só a uma transmissão de ativos sujeita ao Imposto do Selo.
Em carta da EDP Produção para a APA, de 23/10/2020, o assunto é definido claramente: “Assunto: Alienação de centrais hídricas da bacia do Douro – transmissão de títulos de utilização de recursos hídricos”.
É também referida expressamente, em nota dirigida pelos representantes legais da EDP à APA em novembro de 2020, a “celebração entre a EDP e o consórcio Engie, de um contrato de compra e venda dos referidos aproveitamentos, imediatamente divulgado ao mercado”. Neste documento está descrita toda a operação de cisão, criação da Camirengia para posterior dissolução, fusão na Águas Profundas. Assim, a divergência entre a estrutura jurídica do negócio e seu efeito e a intenção subjacente - vender ativos -, era do conhecimento de todos os intervenientes. As reiteradas referências ao objetivo real da operação constituem a confissão expressa de uma simulação e, portanto, de um crime de fraude fiscal.
O mesmo documento especifica que entre a EDP, EDP Produção, Águas Profundas e os acionistas, foi acordada a celebração de contrato de prestação de serviços de transição, com vista a assegurar a plena continuidade da atividade das barragens. A operação e manutenção das barragens vendidas continuará a ser apoiada pela EDP, incluindo no que respeita ao despacho técnico.
Daqui resulta que as barragens destacadas não podem ser consideradas ramos de negócio, dado que a lei fiscal estabelece que para que se cumpram os requisitos de uma reestruturação a que sejam aplicáveis os artigos 60.º do EBF e 73 e seguintes do CIRC, é necessário que as partes do património destacadas sejam unidades económicas com autonomia funcional. Ora, dado que o centro de gestão não foi destacado e continua a pertencer à EDP, não se cumprem, também aqui, os requisitos mínimos para que a operação assim possa ser considerada.
2. O Estado concedeu à EDP, gratuitamente e sem qualquer contrapartida, um novo direito que os contratos transmitidos não previam. Só essa decisão do governo tornou economicamente viável uma transmissão de concessões que à partida não tinha racionalidade.
A APA opôs-se à possibilidade de continuar a ser bombada água do rio Douro para montante, para o rio Sabor, através da barragem de Feiticeiro e do Baixo Sabor. Alegou a APA que essa possibilidade só existia no contrato de concessão de 2008, enquanto as barragens da Valeira (no rio Douro, a jusante da foz do Sabor) e as barragens de Baixo Sabor e de Feiticeiro fossem operadas pela EDP (cláusula 12, n.º 3 da adenda ao contrato de concessão de 2008). Ora, em resultado do negócio, estas duas barragens passaram a ser operadas pela Engie, continuando a da Valeira a ser operada pela EDP. Em consequência, e nos termos do contrato com o Estado, terminaria a possibilidade de bombagem da água do Douro para o Sabor. A mesma cláusula aplicava-se à bombagem de água do Douro, da albufeira da barragem da Régua para o rio Tua, através da barragem de Foz Tua.
A EDP contra-argumentou que o cumprimento desta cláusulas dos contratos de concessão e a impossibilidade dessa bombagem teria um pesado impacto negativo na rentabilidade do investimento, e no equilíbrio financeiro do contrato, tornando inúteis os elevados investimentos efetuados pela EDP no equipamento das três barragens com turbinas reversíveis. De facto, em termos operacionais e racionaisas três barragens da Engie nos rios Sabor e Tua dependem de barragens da EDP situadas no rio Douro (Valeira e Régua).
Portanto, face aos contratos existentes, a venda não tinha racionalidade económica, porque diminuía a produtividade das barragens. Deixam assim de se verificar os pressupostos da aplicação dos benefícios fiscais do artigo 60.º do EBF e do artigo 73.º do CIRC, dado que a finalidade destes regimes de neutralidade fiscal é de que a reestruturação das empresas sirva para aumentar a sua produtividade e competitividade.
Apesar de o contrato de concessão impedir essa possibilidade, ela mantém-se na adenda ao contrato de concessão feita em 2020, sem qualquer contrapartida para o Estado. Assim, a EDP vendeu um direito que não estava previsto nem existia sequer. Ou seja, a EDP transmitiu um direito que se extinguia automaticamente por efeito da cisão, algo que não podia transmitir. Ao aceitar que a Movhera continuasse a fazer bombagem de água do rio Douro para os rios Sabor e Tua, o Estado concedeu, a título gratuito, um direito novo, dado que, nos termos dos contratos de concessão, ele se extinguia com a realização do negócio. Esse direito de novo, com um elevado valor económico, foi repercutido pela EDP no valor da venda, apropriando-se inteiramente dele, sem qualquer contrapartida para o Estado.