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Arquivos da resistência: documentando os levantamentos populares na China

Após quatro anos preso, Lu Yuyu foi libertado em Junho, mas poucos se lembrarão hoje do seu nome. Entre 2013 e 2016 geriu a partir de casa com a sua companheira uma conta nas redes sociais que documentou meticulosamente as revoltas laborais e sociais chinesas. Artigo de Bei Han.
Cartaz "Proteção dos direitos dos trabalhadores" num protesto à porta da Apple em São Francisco contra o desrespeito laboral por parte das multinacionais que operam na China.
Cartaz "Proteção dos direitos dos trabalhadores" num protesto à porta da Apple em São Francisco contra o desrespeito laboral por parte das multinacionais que operam na China. Foto Annette Bernhardt (CC BY-SA 2.0.)

Lu Yuyu saiu da prisão a 14 de Junho, após quatro anos de encarceramento. As pessoas que ainda se lembram do seu nome são provavelmente poucas e dispersas. Qual foi o seu crime? Gerir com Li Tingyu, sua companheira na altura, a partir de casa na província de Yunnan, uma conta de rede social chamada “Notícias que vale a pena saber” (非新聞). A partir de 2013, começaram a registar meticulosamente as revoltas de base na China. Desde greves laborais a protestos contra empregadores “Notícias que vale a pena saber” verificou estes factos em detalhe com referências cruzadas a múltiplas fontes online.

Lu e Li arquivaram registos diários de resistência que doutra forma teriam sido esquecidos; analisaram sistematicamente estas ações numa base mensal e anual. Esta informação parecia bastante inócua, mas levou à sua detenção, em 2016. Um ano mais tarde, Lu foi condenado a quatro anos de prisão pelo crime de "incitar conflitos e criar problemas" e Li permaneceu em liberdade condicional até à sua libertação, em 2017. A conta "Notícias que vale a pena saber" no Twitter deixou de funcionar a 15 de Junho de 2016, sendo esta a última vez que foi atualizada antes de Lu e Li terem sido presos.

Tal como a China se tornou "a fábrica do mundo", também se tornou um epicentro global das revoltas da classe trabalhadora. Nos últimos vinte anos houve tantas ações deste tipo que o governo e mesmo os académicos deixaram de recolher estatísticas sobre estes factos. A responsabilidade pelo registo destes protestos recaiu então sobre jovens como Lu e Li. As contradições sociais causadas pelo capitalismo na China manifestaram-se num rápido aumento das disputas de terras, dos conflitos laborais e da luta urbana contra o poder governamental.

A última contabilidade mensal da "Notícias que vale a pena saber" registou 2.001 manifestações até Abril de 2016, incluindo um incidente envolvendo mais de 10.000 pessoas e 236 incidentes que resultaram em severa repressão policial com pelo menos 2.782 detenções. No seu último resumo anual de 2015, "Notícias que vale a pena saber" registou 28.950 marchas, manifestações, comícios e outros incidentes, com uma média de 79 por dia, um aumento de 34 por cento face a 2014. As manifestações mais frequentes foram feitas por trabalhadores, com mais de 100.000 incidentes deste tipo num ano. A maioria foi liderada por trabalhadores da construção civil, seguidos por protestos de trabalhadores das indústrias de produção, transformação e serviços. O principal catalisador para as manifestações foi o não pagamento de salários. Para além de proprietários e agricultores, pessoas de vários sectores, de investidores a estudantes, empresários, estudantes e pais participaram em centenas de milhares de protestos nos últimos anos.

Os dados recolhidos pela "Notícias que vale a pena saber" representam apenas uma fração das revoltas diárias que ocorrem na China. E, no entanto, teve um impacto significativo no mundo exterior. Por um lado, os arquivos de Lu e Li foram uma das principais fontes de dados utilizados pelo China Labor Bulletin, uma ONG com sede em Hong Kong, para mapear as greves laborais na China. Durante muitos anos foi considerada uma prova fiável de um movimento florescente de trabalhadores na China continental e foi também citada por numerosos meios de comunicação social internacionais.

 Desde janeiro de 2018, um total de 3.383 lutas laborais tiveram lugar na China continental, de acordo com o Mata de Greves do China Labor Bulletin. Gráfico: China Labor Bulletin.

Olhando para trás, a prisão de Lu e Li foi certamente um exemplo da repressão que trabalhadores, feministas, advogados e ativistas anti-discriminação têm enfrentado desde 2015. No entanto, a severidade da sua punição parecia exceder a sofrida pela grande maioria dos ativistas dos direitos humanos detidos durante o mesmo período. Porquê?

Marx, na sua "Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", escreveu: "A força material deve ser derrubada pela força material; mas a teoria também se torna uma força material assim que se apodera das massas." No entanto, quando se trata de galvanizar as massas é preciso aceder à força da história e ao poder daqueles que lutaram perante nós, não só através da teoria mas também através dos arquivos. Compreender e viver o rescaldo desta história é fundamental para construir teorias e práticas de resistência mais fortes: só podemos ganhar se compararmos e tomarmos emprestadas as experiências e estratégias das lutas passadas. É também assim que alguns movimentos de resistência, tais como greves laborais, se tornam contagiosos e se propagam de um grupo para outro, das nossas comunidades mais próximas para as mais distantes. A "Notícias que vale a pena saber" abriu muitas possibilidades radicais através de uma prática arquivística dissidente, e pode ter sido especialmente provocadora como projeto ativista por esta razão.

A repressão do governo na China não visa apenas reprimir a ação, mas também bloquear a informação, obstruir a disseminação de ideias e manter uma falsa imagem da estabilidade da sociedade. Em comparação com aqueles que têm perfis mais públicos ou aqueles que são mais aivos nos movimentos sociais, os nomes de Lu Yuyu e Li Tingyu podem não ser muito conhecidos. Mas devemos recordá-los, não só devido à sua recolha paciente destes dados, dia após dia, mas também porque temos de nos lembrar dos inúmeros manifestantes anónimos que participaram em movimentos de base ao longo dos anos. Honrar as lutas passadas é também recordar, recusar esquecer.


Artigo publicado originalmente em lausan.hk e republicado por Viento Sur. Traduzido por António José André para Esquerda.net

 

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