A angústia do Leopardo

26 de janeiro 2023 - 11:35
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Os líderes políticos sublinham a enorme incerteza do momento e o que se lhes exige é que saibam o que estão a fazer e que ponderem todas as possibilidades. A imagem de divisão deixada em Paris pelo Governo alemão torna tudo ainda mais assustador. Por José Manuel Rosendo em meu Mundo minha Aldeia.

Leopard 2 A5. Fonte: Bundeswehr-Fotos, publicada na Wikimedia Commons.

A Ucrânia pede aos aliados para pensarem depressa. Na génese do pedido, a expectativa de que mais equipamento militar seja enviado para Kiev de modo a enfrentar a agressão russa e, também, recuperar o território perdido, empurrando as forças russas para o interior das suas fronteiras.

No terreno, a situação está confusa. Para lá da propaganda de ambos os lados, não se consegue perceber muito bem quem avança e quem recua.

O mais recente pedido de equipamento militar feito pela Ucrânia visa especificamente os tanques de guerra Leopard, de origem alemã. Na última sexta-feira (20 janeiro), em Ramstein, meia centena de países aliados da Ucrânia não se entenderam sobre este pedido e os Leopard não obtiveram guia de marcha.

Dois dias depois (22 janeiro), em Paris, o Chanceler Olaf Scholz disse que a Alemanha tem como princípio trabalhar e decidir em conjunto com os países aliados. Poucas horas depois desta declaração, a Ministra dos Negócios Estrangeiros alemã dizia à televisão LCI: “se o pedido for feito (pela Polónia), não nos opomos”. Confusão! Pode não parecer, mas a frase é ambígua: pedido de quem, da Polónia ou do conjunto dos países aliados. A confusão criada foi tal que, no dia seguinte, o porta-voz de Olaf Scholz teve necessidade de explicar: “o governo federal não exclui que os Leopard sejam entregues, mas ainda não decidiu se o vai fazer agora”. Dificilmente algum governo podia deixar pior imagem.

O Primeiro-ministro polaco tinha qualificado de “inaceitável” a recusa de Berlim enviar os Leopards. Depois do episódio de Paris, disse que vai pedir a autorização ao governo alemão, mas com ou sem autorização de Berlim, 14 dos quase 250  Leopard polacos vão mesmo para as tropas ucranianas.

Dos Estados Unidos chega o aviso para que não seja desencadeada uma nova ofensiva até que o (novo) apoio militar norte-americano chegue à Ucrânia e até que os programas de treino militar sejam efectuados.

De Moscovo, um outro aviso, em registo dramático: a entrega de armas ofensivas a Kiev, que ameacem os territórios da Rússia, levará a uma catástrofe global e tornará insustentáveis ​​os argumentos contra o uso de armas de destruição em massa. Parece óbvio que se os aliados da Ucrânia enviarem os Leopard, Moscovo passa a considerá-los como cobeligerantes. Ou seja, a Rússia estará em guerra com a Europa e com os Estados Unidos e, provavelmente, deixará de referir-se a uma “operação especial”.

Há poucas horas, um porta-voz do grupo de defesa alemão Rheinmetal assegurou que pode enviar 139 Tanques Leopard para a Ucrânia se isso for solicitado: 29 Leopard 2A4 (modelo de 1985/87), entre Abril e Maio; 22 do mesmo modelo no fim de 2023 ou início de 2024 e mais 88 velhos Leopard 1 (modelo de 1965), sem uma data específica de entrega.

É assim que estamos.

Ninguém poderá dizer, com absoluta certeza, quais serão as consequências da entrega dos Leopard à Ucrânia. Desde logo porque, dizem alguns especialistas militares, para conseguirem resultados terão de ser em grande número, porque a frente de guerra estende-se por centenas de quilómetros. Depois, porque não há quem possa garantir o tipo de resposta que a Rússia vai dar. E também porque – questão fundamental – estarão os aliados europeus e norte-americanos da Ucrânia preparados para enfrentar uma forte resposta russa e o eventual alastrar da guerra para além das fronteiras da Ucrânia?

Os líderes políticos sublinham a enorme incerteza do momento e o que se lhes exige é que saibam o que estão a fazer e que ponderem todas as possibilidades. A imagem de divisão deixada em Paris pelo Governo alemão torna tudo ainda mais assustador.  

Goste-se ou não, Emmanuel Macron continua a ter razão quando disse em Moscovo, em vésperas do início desta fase da guerra, ao lado de Vladimir Putin, que a segurança da Rússia está directamente associada à segurança da Europa. Não há volta a dar. É esse o caminho, porque nunca há um final feliz quando entre vizinhos se sente ou pressente uma ameaça. E estes vizinhos têm um passado, que conta. Muitas vezes de guerra, mas também com momentos de entendimento. E quando terminar o actual “desentendimento”, terá de ser esse o caminho.

A memória dos tanques alemães

Há quem pense que o passado é apenas passado, mas é muito mais do que isso. Talvez valha a pena pensar na simbologia desse passado, para que o pragmatismo apressado não tropece no que considera insignificante mas pode ser determinante. Atender à simbologia de muitos momentos da história permite um melhor entendimento da actualidade, concedendo que isso não nos deve impedir de tomar decisões.

Por estes dias, um comentador de assuntos militares lembrou numa televisão francesa a importância desse passado, referindo-se à imagem dos tanques alemães que na segunda guerra mundial atravessaram a Europa em direcção à fronteira da Rússia. Sabemos o que aconteceu. As grandes batalhas, os milhões de vidas sacrificadas, a Rússia quase a tombar às mãos dos nazis. Será essa imagem que Moscovo recordará imediatamente se os Leopard chegarem à Ucrânia. Não tenhamos dúvidas. E todos sabemos o efeito que isso poderá ter na opinião pública russa. E no apoio que Putin terá para desencadear a resposta que muito bem lhe apetecer. Não é por acaso que a Alemanha hesita no envio dos Leopard e que os aliados da Ucrânia estão divididos. E nem sequer se trata de medo. É a consciência da realidade, que pode ser muito mais dramática do que já é.

Será tudo isto impeditivo de uma eventual decisão que dê guia de marcha aos Leopard? Não, mas é bom saber com o que contamos.


Por José Manuel Rosendo em meu Mundo minha Aldeia.