ADSE: privados em guerra pela cobrança abusiva

14 de fevereiro 2019 - 19:50

Os operadores privados de saúde cobraram abusivamente quase 40 milhões de euros à ADSE. Valores cobrados em medicamentos e próteses chegaram a ser 30 vezes o preço de referência. Desejo da ADSE de recuperar esse valor motiva agora conflito.

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Fotografia de Paulete Matos
Fotografia de Paulete Matos

O conflito entre a ADSE e os grandes prestadores privados de saúde atingiu esta semana um ponto alto, com a intenção manifestada pelos grupos Mello (hospitais CUF) e Luz Saúde de abandonarem as convenções com a ADSE a partir de Abril.

Na origem do conflito estão as chamadas "regularizações" pelas quais a ADSE pretende reaver cerca de 40 milhões de euros que lhe foram cobrados abusivamente pelos privados em 2015-2016, dos quais aproximadamente 80% pelos cinco grandes grupos privados — os grupos Luz, Mello Saúde, Lusíadas, Trofa e HPA Algarve. Cerca de 60% das despesas da ADSE vão para estes grupos.

A ADSE desde 2015 deixou de receber transferências do orçamento de Estado e é paga quase integralmente (mais de 90%) pelos descontos de cerca de 800 mil trabalhadores do Estado, a que se juntam mais 400 mil familiares e isentos num total de 1,2 milhões de beneficiários. Funciona com dois regimes: o regime convencionado, em que o beneficiário faz um pequeno co-pagamento por uma consulta; e o regime livre, em que paga a consulta por inteiro e pede depois reembolso à ADSE. O regime convencionado é o maior, custando cerca de 390 milhões de euros contra 150 milhões para o regime livre em 2017, e foi nele que estalou o conflito com os privados.

A passagem para um financiamento exclusivamente pelos descontos dos trabalhadores, sem transferências do Estado, aumentou o rigor da ADSE com as despesas — 94% dos descontos em 2017, ou 537 milhões de euros, foram gastos em cuidados de saúde. Foi o interesse por um controlo mais rigoroso dessas despesas, particularmente impulsionado pelos representantes dos beneficiários nos órgãos de supervisão e direção da ADSE, que revelou práticas instaladas de cobrança abusiva por parte dos privados.

No regime convencionado existem tabelas de preços com os chamados "códigos abertos", em que a ADSE pagava um preço mínimo que já incluía uma margem de lucro, mas os privados podiam cobrar à ADSE o que entendessem acima desse valor. O economista Eugénio Rosa revelou as contas dessa modalidade num texto publicado no seu site em Dezembro: a mesma prótese podia custar 320€ num prestador mas mais de 1600 noutro, a mesma cápsula de glucose podia ir de 50 cêntimos a nove euros. Em suma, parte dos operadores privados cobrou preços abusivos, até cinco vezes mais caros nas próteses, 1,5 a 30 vezes mais caros nos medicamentos.

Estas cobranças abusivas, acima de preços de referência que já seriam lucrativos, terão totalizado quase 40 milhões de euros em 2015 e 2016. Os números levaram a ADSE a exigir a devolução deste valor através do mecanismo chamado de regularização, previsto nas convenções assinadas com os privados. Mas os privados têm resistido duramente à regularização, levantando numerosas objeções jurídicas, apesar de um parecer da Procuradoria Geral de República ter dado razão à ADSE.

Para responder ao arrastar do conflito pelas cobranças abusivas, que agora estalou abertamente, o Bloco de Esquerda viu ontem aprovado por unanimidade o requerimento que havia feito para uma audição à ministra da saúde, a representantes da ADSE e também dos seus beneficiários para debater o assunto. No requerimento apresentado por Moisés Ferreira, o Estado “não pode ficar refém da chantagem de grupos privados que sobrefacturam, que recusam a devolver o dinheiro indevidamente cobrado à ADSE e que recusam submeter-se a regras de transparência e de maior fiscalização”. A audição pretende apurar que medidas de "rigor, transparência e fiscalização são exigíveis", para que "o Estado e o subsistema [ADSE] não fiquem reféns da chantagem dos grupos económicos”.

Para dados mais detalhados, veja os artigos sobre a ADSE no site de Eugénio Rosa.

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