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Lucrar lá fora, não pagando cá dentro

Esta é a história de uma casa construída para ser roubada. E os rostos deste assalto são os das maiores empresas portugueses.

O país foi surpreendido, esta semana, com o anúncio de que o proprietário maioritário de uma das maiores e mais lucrativas empresas nacionais vai transferir os títulos de propriedade do seu capital para a Holanda. Diz a família Soares dos Santos que a transferência para um paraíso fiscal no centro da Europa não tem nada a ver com um regime tributário mais favorável e nós fingimos que acreditamos que é por causa do clima ameno da Holanda, ou de uma antiga paixão por túlipas.  

Mas, para sermos verdadeiros, esta decisão tem muito pouco de surpreendente ou até de original. Com efeito, dezanove das vinte maiores empresas cotadas na bolsa de Lisboa já são detidas por holdings financeiras sediadas na Holanda.

A decisão de Soares dos Santos, no entanto, tem contornos algo distintos. Durante os últimos dois anos, desdobrou-se num sem número de aparições mediáticas onde foi debitando conselhos sobre como gerir a nossa casa, o país e o futuro político de Portugal. Criticava políticos, que faziam o país viver acima das suas possibilidades; gestores, que não investiam no país; trabalhadores, que eram pouco produtivos. Tudo corria mal em Portugal, menos a família Soares dos Santos, esse oásis de carinho e dedicação nacional.

O tom patriótico do seu discurso, apelando à manutenção dos centros de decisão no país e à unidade em tempos de crise, resume-se na frase que marcou uma das suas entrevistas. “Nós temos é que olhar para nós, e perguntar: o que é que eu posso fazer pelo meu país”. Tamanho patriotismo era, afinal, bastante limitado. O esforço não chegou sequer ao pagamento dos seus impostos.

Essa apologia da portugalidade, aliás, confundia-se com a estratégia publicitária da empresa, apelando aos cidadãos para comprar marcas portuguesas, apoiar as empresas e produtores nacionais. Uma empresa que, em tempos de crise, fazia galas da sua responsabilidade nacional e do compromisso com o país. Afinal, mal pôde, seguiu o conselho do primeiro-ministro e zarpou para a Holanda, deixando os sacrifícios para os outros. Enquanto Soares dos Santos foge, cumprem os seus trabalhadores os sacrifícios e o país mergulha mais fundo na austeridade. Para Soares dos Santos “sabe bem pagar tão pouco”…imposto e será  “De Janeiro a Janeiro”, a fugir aos impostos o ano inteiro!

A estratégia é clara e não passa no crivo da coerência: Lucrar lá fora, não pagando cá dentro. Se todos assim fizessem o próprio Pingo Doce não resistiria, pois não existiriam estradas, portos e comboios para transportar os produtos que vende. Mas confia nos sacrifícios dos outros para que possa continuar como se nada fosse.

Esta fuga fiscal de Soares dos Santos é repetida pelas grandes empresas portuguesas. A existência de uma qualquer holding gestora de capitais sociais na Holanda que serve de veículo para distribuição de dividendos é uma prática corrente. Aliás, ao longo dos últimos anos, a Holanda tornou-se num verdadeiro paraíso para a fuga fiscal de capitais portugueses, juntamente com o Luxemburgo ou outros congéneres com impostos baixos. Entre Janeiro e Outubro do ano passado a fuga de capitais para o exterior aumentou 74% em relação a 2010. Foram mais de 9504 milhões de euros em investimento direto na engenharia financeira, dos quais mais de 6000 milhões de euros foram direitinhos para a Holanda.

E como se explica esta realidade? Em primeiro lugar, porque em Portugal assim se permite. Uma lei que não obriga ao pagamento de impostos no local onde existe a direção efetiva das empresas é uma lei que premeia a fuga de capitais para os paraísos fiscais. É uma lei que permite enormes isenções fiscais às SGPS é uma lei que mina as receitas fiscais. Uma lei injusta é uma lei que favorece a engenharia financeira de quem pode pagar, para não pagar impostos. E esta é a lei fiscal que temos no nosso país: de mão forte para os rendimentos do trabalho, mas sem mão nos rendimentos de capital.

E o que diz o governo sobre esta matéria? Quando virá o Ministro das Finanças condenar esta atuação da Jerónimo Martins? Dirá Passos Coelho alguma coisa a Soares dos Santos sobre a equidade na austeridade? Alguém ouviu Paulo Portas apregoar agora a ética social na austeridade? Nada… Nem uma palavra de condenação desta atitude iníqua. Afinal, o Governo cala, porque consente. E isso ficou bem visível ainda recentemente onde favoreceu em sede de Orçamento de Estado para 2012, o tratamento fiscal das SGPS. O Governo, tão célere a mudar a lei para impor a austeridade a quem trabalha, rejeitou todas as propostas que o Bloco de Esquerda apresentou para impedir o regabofe da engenharia financeira.

O Governo nada diz, porque nada quer dizer. Nem se espanta sequer, porque já tem várias empresas participadas com dinheiros públicos entre a comissão de boas vindas a Soares dos Santos na Holanda. E são vários os exemplos: a GALP, a Cimpor, a PT ou a EDP. Todas estas empresas com capitais públicos e todas fizeram o mesmo que a Jerónimo Martins fez. Afinal de contas, o próprio Estado aceita que lhe vão ao bolso…

Mas a Europa também não está isenta de responsabilidades. Uma União Europeia que permite a alguns países a realização de um verdadeiro dumping fiscal não tem qualquer pingo de solidariedade. Afinal, Merkel e Sarkozy, que são tão veementes na sua proclamação da austeridade e no aumento dos impostos nos países da periferia, nada dizem sobre esta atuação verdadeiramente vergonhosa. Como se concebe a inexistência na Europa de um regime eficaz de luta contra a concorrência fiscal? Apenas porque se aceita que tal aconteça. E mesmo aqui, o Governo português, que vê ano após ano crescer a fuga de capitais, nada diz. O bom aluno, submisso, não diz ai, nem que o calquem.

Esta é a história de uma casa construída para ser roubada. E os rostos deste assalto são os das maiores empresas portugueses.

O Bloco de Esquerda apresentará nos próximos dias propostas que impeçam esta situação. Estas propostas visam clarificar a definição de “direção efetiva da pessoa coletiva” para impedir que empresas sujeitas à lei nacional fujam às suas obrigações fiscais. Por outro lado, propomos a eliminação dos benefícios fiscais às SGPS.

Estas são as escolhas da mais elementar justiça fiscal e, com as quais, conseguiremos combater a engenharia financeira da fuga de capitais para paraísos fiscais.

Em nome da justiça na economia, estas são medidas urgentes para trazer igualdade, onde tem reinado a injustiça.

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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Neste dossier:

A fuga do PSI-20 para a Holanda

A transferência da sede da holding do grupo Soares dos Santos para a Holanda chamou a atenção para uma prática dos grandes grupos portugueses. O grupo proclama que não se trata de fuga aos impostos, a Google vangloria-se de ter “poupado” 3.100 milhões de dólares com o esquema da “sanduíche holandesa”. O Bloco apresenta projetos para combater a fuga ao fisco. Dossier organizado por Carlos Santos.

Um grupo exemplar

Que têm em comum António Barreto, Dias Loureiro, António Borges e Artur Santos Silva? Todos estão na folha de pagamentos da Jerónimo Martins, um grupo exemplar, não só na esperteza fiscal. Por Jorge Costa

Pingo Doce distribui panfletos aos clientes

A Jerónimo Martins está a distribuir aos clientes do Pingo Doce um panfleto assinado pelo administrador Pedro Soares dos Santos “em nome dos mais de 25 mil colaboradores que o Pingo Doce emprega em Portugal”, onde se queixa de “graves inverdades” e refere, tal como também se pode ler na entrada do site dos supermercados, que “a sede do Pingo Doce continua em Portugal”.

Bloco apresenta dois projetos para combater a fuga fiscal das holdings

O Bloco apresentou na AR dois projetos para combater a fuga ao fisco dos grandes grupos económicos: um (que “define o conceito de “direção efetiva em território português”) para alargar a malha do código do imposto para as empresas que saiam do país continuem a pagar impostos em Portugal e outro, que “elimina as isenções de tributação sobre mais-valias obtidas por SGPS e fundos de investimento”.

Fuga das empresas do PSI-20

19 dos 20 grupos económicos do PSI-20 (o índice da Bolsa de Lisboa) têm a sede em outros países, para auferirem de vantagens fiscais em relação a Portugal. A Holanda é o destino preferido das empresas do PSI-20.

“Sanduíche holandesa” permite à Google pagar menos 3.100 milhões de dólares

A “sanduíche holandesa” é um estratagema que as multinacionais usam para fugir ao fisco e pagar menos impostos. A Google anunciou no final de 2010 que nos três anteriores tinha pago menos 3.100 milhões de dólares, usando subsidiárias na Holanda, na Irlanda e nas Bermudas.

Em 2011, quase 70% do investimento de Portugal no exterior foi para a Holanda

Entre janeiro e outubro de 2011, 6.587 milhões de euros, 70% do investimento direto de Portugal no exterior foi para a Holanda. Entre 1999 e 2009, a Holanda foi sempre o principal destino do investimento de empresas portuguesas no exterior.

Pingo Doce passa a pagar impostos na Holanda

O capital maioritário que a família Soares dos Santos detém na Jerónimo Martins, empresa proprietária do Pingo Doce, passaram a ser controlados indiretamente através de uma sociedade na Holanda, país com um regime fiscal muito mais suave. Bloco critica decisão "mesquinha" e recorda que 19 das 20 empresas do PSI 20 já se encontram cotadas na Holanda. (notícia atualizada).

Lucrar lá fora, não pagando cá dentro

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Sabe bem… a poucos

O grupo [Soares dos Santos] já conta com muitas condenações por violações não apenas da “ética e do comportamento social responsável”, mas também da legislação fiscal portuguesa...

Fuga de impostos para a Holanda causa indignação

O truque fiscal de Alexandre Soares dos Santos já tinha sido seguido por 19 das 20 empresas cotadas no PSI-20 e pela própria Jerónimo Martins, que usa a Holanda como sede dos investimentos na Polónia. Mas a imagem de "portugalidade" associada aos seus produtos fica agora ameaçada, dizem os especialistas.

O pingo amargo da evasão fiscal

O grupo Jerónimo Martins fatura mais de 8 mil milhões de euros, mas não pode contribuir com o pagamento de impostos para o país que lhe garante os lucros.

As migalhas que sobram da toalha da mesa de um capitalista

O grupo Jerónimo Martins e em particular o seu maior accionista, Alexandre Soares dos Santos, decidiram em Carta Aberta reconhecer que os salários que pagam aos seus trabalhadores/as são miseráveis e de forma “solidária” ajudar os trabalhadores em situações de necessidade extrema.