Mais insucesso escolar à vista

As reformas curriculares da última década têm, sob a batuta das decisões de gabinete e quantas vezes a toque de caixa de uma espécie de senso comum, um forte travo ideológico e legitimam-se na arrogância: a decisão de gabinete é mais ajustada do que a dos que vivem e fazem a escola, dos que estudam o desenvolvimento das crianças e dos jovens, dos que investigam as tendências internacionais e se questionam sobre as melhores opções para o país.

17 de março 2012 - 19:31
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O pedaço de reforma curricular que veio à luz do dia é isso mesmo: um enxerto num conjunto de mudanças que constituirá o tronco das alterações de fundo da escola pública, feitas pela mão deste governo.

Como enxerto, as medidas avançadas exigem um olhar retrospetivo sobre as reformas da última década porque constituem mais um ponto de chegada do que de partida. Com efeito, desde o desenho curricular produzido em 2001, as incisões feitas, esvaziadas de avaliação e monitorização, têm conduzido ao reforço de um dos troncos do currículo dos diferentes níveis de ensino: a componente disciplinar. O reforço da componente disciplinar fez-se à custa da contração das outras duas componentes: curricular não disciplinar e transdisciplinar.

O peso da componente curricular disciplinar devia crescer do 2.º ciclo para o ensino secundário, a componente curricular não-disciplinar (formação cívica, estudo acompanhado, área de projeto), de gestão autónoma das escolas, em sentido inverso, seria mais pesada nos ciclos iniciais e diminuía no ensino secundário. As medidas recentes escavam o fim deste modelo, que foi sendo progressivamente esvaziado, ainda pela falta de instrumentos e de coerência interna.

Sob o apetitoso lema da “redução da dispersão curricular”, reforçam-se, hoje, as “disciplinas essenciais”, que devem focalizar-se em “conteúdos disciplinares centrais” e mensuráveis. Reforça-se a carga horária das disciplinas do “conhecimento estruturante”, língua portuguesa e matemática, reforça-se o dito “conhecimento científico”, com as ciências humanas e sociais e o maior aumento para as ciências físico-naturais. No 3.º ciclo, as componentes de educação artística, física e tecnológica não chegarão aos 20% do peso do desenho curricular. Extingue-se a componente não disciplinar do currículo (fim da formação cívica e carácter facultativo do estudo acompanhado).

As perguntas sem resposta repetem-se: são enunciadas as razões destas mudanças? Onde está a avaliação que as fundamenta? Foram, por exemplo, avaliadas as consequências da falta de cruzamento entre as diferentes disciplinas? Foi avaliado que há mais sucesso com a asfixia de conteúdos do que com o tratamento transversal das competências de língua portuguesa e de matemática? Onde está o debate participado sobre a necessidade destas mudanças? Quando foram ouvidos e integrados os pareceres de todos os parceiros e peritos? Sabe-se se estas medidas respondem às exigências de mudança da sociedade e são as mais adequadas às formas de aprender das crianças e jovens de hoje? Estas mudanças correspondem a um ajustamento dos currículos nacionais às melhores tendências internacionais? Elas respondem à necessidade de combater as desigualdades de partida das crianças e jovens e comprometem-se com a democratização e qualificação da escola pública? Para muitas perguntas, uma resposta: não.

As reformas curriculares da última década têm, sob a batuta das decisões de gabinete e quantas vezes a toque de caixa de uma espécie de senso comum, um forte travo ideológico e legitimam-se na arrogância: a decisão de gabinete é mais ajustada do que a dos que vivem e fazem a escola, dos que estudam o desenvolvimento das crianças e dos jovens, dos que investigam as tendências internacionais e se questionam sobre as melhores opções para o país. É todo este debate que está por fazer, mas os decisores políticos têm medo dele. Um dos riscos era o da evidência do seu atavismo.

Sobre o apelo do senso comum. A organização interna dos currículos nunca teve em conta o necessário cruzamento da componente disciplinar nem a exigência de tempos comuns para a construção coerente da componente não disciplinar e transdisciplinar. As queixas foram o reconhecimento desta evidência. Multiplicaram-se contra a área escola que roubava tempo ao pesadelo de programas pesadíssimos e sobredeterminados pelos exames nacionais, no ensino secundário. A formação cívica, apesar do dinheiro gasto em formação e do esforço de alguns, nunca teve corpo, e a direção de turma cavalgou este espaço, na contração de tempos próprios. Maioritariamente sem cultura de trabalho em comum, esmagados por horários cada vez mais pesados, como os últimos estudos bem mostram, muitas vezes em conflito, à conta de todas as exigências que foram despejadas na escola, professores e professoras cederam à zona de conforto da disciplinarização. Não era difícil: o 1.º ciclo foi ele próprio colonizado pela disciplinarização com a marcação de tempos para áreas específicas e o discurso triunfal das disciplinas rainhas, português e matemática, deu uma preciosa ajuda.

A reificação da disciplina, disputando o seu cantinho feudal no reino do saber, provocou distorções das quais as primeiras vítimas são as crianças e os jovens. O insucesso escolar foi o fruto deste arvoredo. Programas disciplinares pesadíssimos distorceram todas as hipóteses de trabalho das ditas competências de ciclo de ensino. A unidade interna de cada ciclo é, hoje, uma mera ilusão. De uma forma simples, os professores e professoras sabem bem que ensinam muitas coisas que alunos e alunas não aprendem e não lhes servem para nada. Muitos deles, bem como os criadores destes programas, não foram vítimas daquilo que os seus alunos e alunas são: de uma arcaica e pretensiosa especialização do conhecimento em gavetas e de uma perda absoluta da ligação entre áreas de saber. Afinal, a escola das elites foi mais generosa com os seus alunos do que a escola das “massas”.

Assim sendo, quando o Ministro da Educação veio pôr na arena o combate do “conhecimento” contra as “competências” mais não fez do que reforçar e relegitimar a realidade. Fá-lo como D. Sebastião à procura do sonho africano, porque as tendências internacionais vão em sentido oposto. Não caminham no sentido da hipervalorização dos conteúdos, as experiências de sucesso reportam-se a opções que melhor garantem os fatores de coerência dos currículos. Ora, fatores de coerência e coerência interna é tudo o que não existe nos currículos nacionais, pelo que se sublima o conteúdo e o mensurável, centrados nos resultados e não nos processos. O resultado disto tudo, afinal, é evidente: mais abandono, mais insucesso, mais elitismo e diversificação das ofertas curriculares conforme os berços.

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