A escola minguada de Nuno Crato

porAna Drago

Os cortes desta reforma curricular não são aleatórios, têm alvo certo – as áreas de trabalho do pensamento crítico, da articulação de saberes, e de ensino artístico e de trabalho das competências criativas. Para Nuno Crato, tudo isso é desperdício.

17 de março 2012 - 19:31
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Ana Drago não poupa críticas ao modelo curricular proposto pelo ministro Nuno Crato

Assim que o novo Governo assumiu funções anunciou de imediato a sua intenção de alterar a matriz curricular vigente. Dada a aparente urgência de proceder às alterações julgadas necessárias, era expectável que o Governo tivesse iniciado um processo alargado de consulta dos diferentes parceiros do campo educativo, cujas sugestões e contributos deveriam sustentar essa reforma. Seria também expectável que os novos responsáveis da tutela da educação tornassem públicos os estudos que estariam na fundamentação da avaliação crítica do atual modelo curricular. Aliás, só assim se compreendia o anúncio desta vontade intensa de fazer uma revisão da estrutura curricular.

Contudo, nada disto aconteceu. O Ministério da Educação e Ciência apresentou no dia 12 de Dezembro a proposta de Revisão da Estrutura Curricular. São quatro singelas páginas, que mais não são que um mero comunicado de imprensa, ao qual adicionou uns quadros comparativos de como está hoje organizada a estrutura curricular e a carga horária, e os quadros de como pretende que venha a ficar. Sobre análise crítica e fundamentada do currículo vigente, nada se ouviu, apenas algumas opiniões expressas no referido documento e algumas apreciações de carácter estritamente individual sobre o que deve ser “ensinado”.

Mas para dizer a verdade, nem os próprios argumentos apresentados pelo Governo batem certo. O Governo diz que quer reduzir a dispersão curricular, mas pega na disciplina de Educação Visual e tecnológica e divide-a em duas. Daqui resulta o fim do chamado par pedagógico de EVT, o que significa que o carácter prático desta disciplina fica comprometido. Diz também o Governo que quer valorizar o ensino das ciências. Mas no seu projeto termina com desdobramento de turmas na área das ciências, que é o que permite o ensino experimental, e para o qual, note-se, o país tem investido no apetrechamento das escolas nos últimos anos.

As ditas quatro páginas de proposta do Governo mostram que não há equívocos. Nuno Crato parece querer juntar a fome à vontade de comer. Ou seja, juntar a vontade do Governo de fazer cortes orçamentais profundos nos serviços públicos/direitos sociais com o projeto de uma escola minguada, com a função restrita de formar para o mercado de trabalho. É regresso da máxima salazarenta “ler, escrever e contar” – uma escola pública que não forma indivíduos autónomos ou cidadãos com capacidade crítica. Não. É uma escola para qualificação para mercado de trabalho, porque as elites cuidarão de si próprias. É por isso que os cortes não são aleatórios, têm alvo certo – as áreas de trabalho do pensamento crítico, da articulação de saberes, e de ensino artístico e de trabalho das competências criativas. Para Nuno Crato, tudo isso é desperdício.

A reorganização da estrutura curricular é um debate determinante para o desenvolvimento social de um país, porque define o que uma comunidade política entende serem as aprendizagens e as competências que a escola pública promove no percurso educativo das suas crianças e jovens. Nesse sentido, a matriz curricular constitui um conjunto de escolhas políticas absolutamente fundamentais para o futuro do país, onde se estabelecem os princípios basilares da educação. É por estes motivos que o debate da revisão curricular não pode ser de nenhuma forma pouco ponderado, pouco fundamentado ou servir quaisquer outros objetivos que não a educação plena das crianças e jovens.

A multiplicação de solicitações e de atribuição de missões que são hoje endereçadas à escola impõe hoje um debate importante, ao qual escola e sociedade, não podem fugir. Até porque o impacto dessa multiplicação de expectativas teve um efeito perverso na questão curricular. De facto, é hoje manifesto que a escolaridade básica assenta hoje numa matriz curricular excessivamente extensa, multiplicada e espartilhada por diferentes áreas curriculares e disciplinares, que resulta na fragmentação do conhecimento e numa carga horária desproporcionada no quotidiano escolar dos alunos, com particular incidência no 3º ciclo da escolaridade básica. Repensar hoje a estrutura curricular da escolaridade obrigatória exige, pois, refletir e definir quais as aprendizagens centrais que o percurso escolar deve assegurar. Nesse sentido, exige que a sociedade portuguesa se comprometa em responder à questão central: enquanto sociedade democrática, que escola necessitamos hoje para responder às solicitações e aos desafios que se nos colocam?

E é certo que hoje as solicitações são inúmeras e exigentes. Vivemos hoje num mundo globalizado, onde se multiplicam os canais de informação e comunicação – é pois necessário educar para a aquisição de competência de pesquisa, análise crítica e seleção da informação. Simultaneamente, cabe à escola capacitar para o exercício da cidadania, educar para comportamento saudáveis e socialmente responsáveis. A par deste novas exigências, a escola e a sua cultura são também a socialização na memória comum da comunidade política, nos conhecimentos clássicos que fazem essa mesma identidade e esse percurso. É hoje também central preparar a formação que conduzirá cada jovem a uma inserção qualificada no mercado de trabalho. A par destes aspetos, a educação artística e para a promoção da criatividade é central no desenvolvimento integral das crianças e jovens. São muitas, portanto, as exigências.

Este debate exige dois pressupostos. Em primeiro lugar, é preciso saber onde estamos. A reforma curricular empreendida há uma década atrás demonstrou, certamente, as suas virtudes. Mas são hoje também patentes os problemas que foi colocando ao longo do tempo – importa, portanto, analisar cuidadosamente o que foi a aplicação e os resultados desse modelo curricular, de modo a responder aos problemas diagnosticados e aos novos desafios que entretanto se nos colocam.

Em segundo lugar, o processo de elaboração das orientações centrais do desenho curricular deve partir de um amplo debate com os diferentes participantes do campo educativo – professores, estudiosos, associações científicas e sociedade civil.

Ora, foi todo este processo que o atual Governo recusou fazer. De facto, optou por fazer “cortes” em áreas disciplinares e no chamado par pedagógico da disciplina de Educação Visual e Tecnológica, sem cuidar de adequar a lógica global do desenho curricular.

Que não haja, portanto, ilusões. As alterações propostas do Governo não são, nunca foram, nem nunca pretenderam ser uma verdadeira reorganização curricular. São, apenas e só, cortes orçamentais por via do despedimento de professores e por limitação da vocação democratizadora da escola pública. Como política é pobre; como ideologia é perigosa; para o futuro do país pode ser trágico.

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