You are here

Uma viagem pelo mundo em 2020 (16): a Ásia Oriental

A Ásia Oriental tem sido marcada pela definitiva afirmação da China como grande potência mundial e a crise provocada pela nuclearização da Coreia do Norte, fatores que têm levado o Japão a uma pequena, mas gradual, política de remilitarização. Por Jorge Martins.
Retrato de Xi Jinping numa parede.
Retrato de Xi Jinping numa parede. Foto de thierry ehrmann/Flickr.

Os desafios à afirmação da China, o problema norte-coreano e as encruzilhadas do Japão

Nos últimos anos, a China, o país mais populoso do Globo, tem-se afirmado, cada vez mais, como grande potência mundial, capaz de desafiar a hegemonia dos EUA. Se, no início, a sua afirmação passava pelo chamado “soft power”, utilizando os investimentos no exterior e a sua imensa diáspora, tem, nos últimos anos, começado a derivar para o “hard power”, quer agindo com maior assertividade na cena política internacional, quer aumentando as despesas e os exercícios militares. Um exemplo da primeira é a forma como tem reivindicado várias ilhas disputadas pelos seus diversos vizinhos e pelo Japão nos mares da China; na segunda, a construção de uma base naval no Djibuti e o envio de navios militares para outros oceanos. Numa combinação de ambas, surge a estratégias das novas “rotas da seda”, ligando o país à Europa, por via terrestre e marítima. A crise do euro facilitou a penetração chinesa no continente europeu, sendo a Grécia e Portugal dois exemplos típicos. Ao mesmo tempo, tem ganho influência crescente em África e, em menor grau, na América Latina, onde vai buscar as matérias-primas necessárias à sua industrialização, e procura consolidar posições estratégicas no Índico. Por fim, na sua estratégia de contrariar a influência dos EUA, desenvolve relações cordiais com a Rússia. Por outro lado, se, durante algum tempo, o país foi a “fábrica do mundo”, com as empresas multinacionais a aproveitar a mão de obra barata e a estabilidade política, ironicamente dada pela “mão de ferro” do Partido Comunista Chinês (PCC), hoje começa a apostar na alta tecnologia, de que a chegada de uma sonda à face escondida da Lua foi um sinal para o mundo. O rosto desta estratégia é o líder do PCC e presidente Xi Jinping, cargo que ocupa desde 2013. Cinco anos depois, conseguiu que o partido removesse o limite de dois mandatos para o exercício do cargo e o nomeasse presidente vitalício, tornando-se o mais poderoso dirigente chinês desde Deng Xiaoping, Apesar do grande crescimento económico, que vai mantendo a população minimamente satisfeita, o país enfrenta alguns problemas, de que se destacam: as desigualdades sociais e a exploração desenfreada dos trabalhadores, que tem originado numerosas greves; o aumento das assimetrias territoriais e populacionais entre um literal sobrepovoado, moderno e em acelerado crescimento, e um interior que continua subpovoado, pobre e subdesenvolvido; os graves problemas ambientais com que se o país se defronta, pois o crescimento económico tem sido priorizado face à sustentabilidade ambiental; o separatismo nas regiões ocidentais do Tibete e da Uigúria, que o governo central vai povoando com chineses para tornar tibetanos e uigures minoritários nos seus territórios, o que levou alguns grupos separatistas da segunda a cometer atentados, não só na província, mas também na capital, tendo Pequim, reagido com o aumento brutal da repressão, que passa pela colocação de milhares de uigures em “campos de reeducação”, à mínima suspeita de simpatias separatistas e/ou islamitas, e, por fim, as tensões com os grupos pró-democracia em Hong Kong, que, no último ano, desafiaram a autoridade do governo central, com manifestações que encheram as ruas, exigindo a demissão da presidente do executivo local, após a apresentação de uma lei, entretanto retirada, que previa a hipótese de extradição de cidadãos do território para a China, contrariando a sua lei básica, em vigor até 2047. A grande incógnita é saber até quando conseguirá o PCC manter as atuais taxas de crescimento económico, essenciais para satisfazer as expectativas da emergente e cada vez mais numerosa classe média. A crise sanitária resultante do aparecimento do novo coronavírus Cov-19, na cidade de Wuhan, revelou as fragilidades do poder, que, numa primeira fase, procurou esconder o problema e foi incapaz de travar a epidemia no início. É certo que, depois, reconheceu o problema e forneceu todos os dados à Organização Mundial de Saúde e tomou medidas para conter a sua propagação, mas já foi tarde e milhares de pessoas acabaram por morrer. Além disso, provocou prejuízos graves à economia do país, com reflexos negativos na respetiva taxa de crescimento económico. Um episódio que “chamuscou” o PCC e fez empalidecer um pouco a “estrela” de Xijinping, apesar de estes se terem apressado a fazer o controlo dos danos.

A questão de Taiwan é outra frente onde se nota uma abordagem mais “musculada” por parte da China, que ameaça invadir a ilha se esta declarar a independência, apesar de manter a sua intenção de que a unificação seja feita pacificamente e em termos semelhantes aos de Hong Kong e Macau. O Partido Democrático Progressista (MJD), de tendência social-liberal, no poder, é pró-independência, enquanto o conservador Kuomintang (KMT) defende o princípio de uma só China. Ou seja, ironicamente, os herdeiros de Ching Kai-shek e da sua clique nacionalista, que, após a vitória dos comunistas na guerra civil, fugiram para a ilha e aí instalaram o seu regime, com o apoio dos EUA, são hoje a opção mais aceitável para Pequim. Após o triunfo de Tsai Ing-wen e do MJD nas eleições gerais de 2016, a China reduziu o número de vistos concedidos aos seus nacionais para viajarem para a ilha, provocando uma queda abrupta nas receitas turísticas desta. Esse facto, que causou danos à economia taiwanesa, e a impopularidade das suas políticas económico-sociais de caráter regressivo, em especial ao nível da reforma das pensões e da legislação laboral, e do envolvimento de alguns dos seus assessores num escândalo de contrabando de tabaco, valeram à a atual presidente uma esmagadora derrota nas autárquicas de 2018. Contudo, a chefe de Estado e o seu partido beneficiaram da crise de Hong Kong, que aumentou o receio de uma reunificação com o continente. Ao lograrem fazer do estatuto da ilha o principal tema da campanha, asseguraram um triunfo que lhe valeu a reeleição e a manutenção da maioria parlamentar do MJD, algo que parecia muito improvável há uns meses atrás. Apesar da retórica independentista da presidente e da sua formação e das ameaças de Pequim, tudo indica que o “status quo” se manterá.

Por sua vez, a Mongólia é um país interior, desértico e com uma baixíssima densidade populacional: apenas 3 milhões de habitantes em mais de 1,5 milhões de Km2. O partido comunista dirigiu o país num regime de modelo soviético entre 1921 e 1990, tendo sido, nesse período, um dos mais fiéis aliados da ex-URSS, dada a sua rivalidade ancestral com a China. Em 1990, abriu-se ao multipartidarismo e iniciou a transição para o capitalismo. De então para cá, tem vivido da alternância do poder entre o ex-comunista e, atualmente, social-democrata Partido Popular Mongol e o conservador Partido Democrático. Nas legislativas de 2015, o primeiro obteve uma esmagadora vitória sobre o segundo, que se encontrava no poder, e Ukhnaagiin Khürelsükh assumiu a chefia do executivo. Contudo, no ano seguinte, o candidato do PD, Khaltmaagiin Battulga, venceu as presidenciais por uma curta margem. As transições têm sido, em geral, tranquilas, à exceção de 2008, em que acusações de fraude eleitoral levaram a manifestações de protesto. Em junho, haverá legislativas, onde entrará em vigor uma nova lei eleitoral: o sistema maioritário foi substituído por um sistema de voto bloqueado em círculos plurinominais e será proibida a candidatura de pessoas condenadas por corrupção.

A península coreana, dividida desde o final da 2ª guerra mundial, entre um Norte “comunista” e um Sul capitalista, é, atualmente, um dos lugares mais perigosos para a segurança internacional, dada a evolução do programa nuclear norte-coreano e a oposição extremamente dura dos EUA face ao seu avanço. Trump e Kim-jong-un ameaçaram-se mutuamente entre meados de 2017 e de 2018 e as respetivas fanfarronadas seriam ridículas, se não estivessem a “brincar com o fogo” nuclear. Felizmente, o bom senso parece ter prevalecido e, em 2018, encontraram-se numa cimeira em Singapura, onde concordaram em reduzir as tensões e trocaram elogios mútuos. No ano seguinte, voltaram a reunir em Hanói e na zona desmilitarizada que separa as duas Coreias, mas não chegaram a acordo, apesar de sublinharem a cordialidade da sua relação pessoal. No início do ano, os norte-coreanos afirmaram-se dececionados e decidiram suspender as conversações. Contudo, dada a imprevisibilidade e a teatralidade dos dois líderes, o que hoje é verdade, amanhã é mentira... Mas a verdade é que, ao contrário da ideia que passa para a opinião pública, ambos agem de forma racional, de acordo com os respetivos interesses. No fundo, o acordo mínimo passaria pelo fim das sanções à Coreia do Norte em troca da sua desnuclearização, mas não existe confiança entre as partes, pois um entendimento semelhante foi assinado por Bill Clinton e Kim-jong-il, pai do atual líder, e não foi cumprido pelos norte-coreanos, enquanto estes sentem que, sem o seu armamento nuclear, ficarão à mercê de um eventual ataque militar dos EUA.

A Coreia do Norte é o país mais fechado do mundo e é, por alguns, considerada a última ditadura estalinista. O Partido dos Trabalhadores Coreanos controla a quase totalidade da vida do país e o culto da personalidade dos líderes é asfixiante. Desde o início que o partido e o país são dirigidos pela família Kim, que já vai na terceira geração. Após o fim da URSS, passou por grandes dificuldades, que originaram situações de fome e subnutrição durante a década de 90. Em troca do levantamento das sanções económicas e do auxílio ocidental, aceitou abandonar o seu programa nuclear. Contudo, a sua inclusão no “eixo do mal” por parte de George W. Bush e a subsequente invasão do Iraque levou os norte-coreanos a desenvolvê-lo, realizando o seu primeiro teste em 2006. A partir daí, tem sido alvo de sanções da ONU, embora limitadas pela ação do seu aliado chinês. Na cimeira de Singapura, afirmou a sua intenção de contribuir para a desnuclearização da península em troca do fim das sanções e da hostilidade dos EUA face ao regime. Apesar das críticas quase unânimes de que o regime norte-coreano é alvo, os atores externos não querem arriscar uma mudança do “status quo”: a China, porque vê na Coreia do Norte um estado-tampão e a última coisa que quer é ter milhares de tropas estadunidenses na sua fronteira; a Rússia, com uma fronteira pequena, pelas mesmas razões, embora assuma um low profile na questão; os EUA, porque uma Coreia unificada poderia implicar a desmilitarização da península e a retirada das suas forças aí estacionadas e que servem a sua política de contenção face aos chineses; o Japão, porque teme a concorrência económica que poderia vir de uma Coreia mais poderosa, sendo que os coreanos têm pouca estima pelos japoneses, que ocuparam o país durante meio século; os próprios dirigentes da Coreia do Sul, que, embora comunguem do desejo de reunificação de todo o povo coreano, fazem contas aos custos da sua concretização.

Entretanto, na Coreia do Sul, a vida política conheceu alguma agitação nos últimos anos, com o processo de “impeachment” da presidente Park Geun-hye, do partido conservador Saenuri, acusada de cumplicidade num escândalo de corrupção em que se viu envolvida uma sua amiga íntima e assessora não oficial, filha de um membro de uma seita religiosa. Em 2016, o Parlamento aprovou a sua destituição, confirmada, no ano seguinte, pelo Tribunal Constitucional. Nas presidenciais seguintes, Moon Jae-in, do Partido Democrático, de centro-esquerda, foi eleito, confirmando os ganhos obtidos, um ano antes, nas legislativas. A sua eleição contribuiu para a melhoria das relações com o Norte, já que, ao contrário da anterior presidente, adepta da linha dura, é partidário de uma abordagem mais construtiva. Tem desempenhado um importante papel de mediação nas negociações entre Trump e Kim Jong-un. Em abril, haverá eleições legislativas, que decorrerão já de acordo com a nova lei eleitoral, que substituirá o sistema de voto paralelo, em que 84% dos parlamentares são eleitos através do sistema maioritário a uma volta e apenas 16% em listas nacionais, num sistema proporcional, por um sistema de representação proporcional personalizada semelhante ao alemão, mas com um círculo nacional de compensação, que corresponderá a 10% do total dos mandatos. Contudo, manter-se-á, residualmente, o voto paralelo, com 6% dos lugares a resultarem da eleição por listas num outro círculo nacional, independente do resultado das circunscrições uninominais. A reforma eleitoral teve a oposição encarniçada do Partido da Liberdade da Coreia (ex-Saenuri), a principal formação oposicionista, cujos deputados se barricaram em pleno Parlamento para impedir a sua aprovação. Para já, as sondagens dão vantagem ao partido do governo, embora a sua vantagem tenha vindo a diminuir um pouco nas últimas semanas.

Por fim, o Japão, que revela alguma inquietude face aos desenvolvimentos que vão ocorrendo na sua vizinhança, em especial a crescente afirmação política, económica e militar da China e a nuclearização da Coreia do Norte. Por outro lado, embora a economia japonesa continue a ser uma das maiores do mundo, vê-se a braços com uma cada vez maior concorrência dos seus vizinhos asiáticos, que dele copiaram o essencial do seu modelo de desenvolvimento. A crise dos anos 90, uma década de estagnação económica do país, deixou marcas e só recentemente se deu uma efetiva recuperação. A sua Constituição, outorgada pelos ocupantes estadunidenses após a 2ª guerra mundial, é explicitamente pacifista, proibindo o país de declarar a guerra e de utilizar a força nas disputas internacionais, restringindo, ainda, o seu poder militar a uma limitada força de autodefesa. Porém, os seus gastos militares são dos mais elevados do mundo e as suas forças armadas compensam o reduzido número de efetivos com uma tecnologia extremamente avançada. O conservador Partido Liberal Democrático (LDP) é a força política dominante no país desde a instauração do atual regime democrático, só não tendo estado no poder em dois breves períodos (1993-94 e 2009-12). No seu seio, o atual primeiro-ministro, Shinzô Abe, representa uma linha politicamente nacionalista, advogando uma alteração constitucional que autorize a remilitarização plena do país, para fazer face ao que considera as ameaças crescentes da China e da Coreia do Norte, e um revisionismo histórico que branqueie os crimes cometidos pelos militares japoneses nos países vizinhos durante a 2ª guerra mundial. Por seu turno, no plano económico, as suas políticas, conhecidas por “abenomics”, baseiam-se em três eixos: liberalização da economia e das leis laborais; descida dos impostos; compra de títulos da dívida pública por parte do banco central (quantitative easing) e expansão do investimento público. Concebidas para estimular uma economia há muito estagnada, têm, no entanto, contribuído para aumentar as desigualdades sociais. Nas eleições de 2017, Abe e a sua coligação entre o LDP e o pequeno partido budista Komeito obtiveram uma vitória confortável, que, graças ao sistema eleitoral, que lhe garantiu mais de 2/3 dos lugares parlamentares, a que soma a forte maioria na Câmara Alta, obtida no ano anterior. Entretanto, apesar de o monarca ser hoje uma figura meramente decorativa, há a referir a abdicação do imperador Akihito, ocorrida no final de abril. Foi sucedido pelo seu filho, Naruhito. O país defronta-se, atualmente, com várias encruzilhadas, tanto no plano económico como no político, embora haja algo que se mantém intacto: a sua aliança com os EUA. Esta é cada vez mais importante para as duas partes, preocupadas com a crescente afirmação chinesa na região e no mundo.

O próximo texto terá como tema o Sueste Asiático.

Artigo de Jorge Martins

(...)