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Os seis dias que abalaram o Chile

Maria Luísa Quaresma é uma cidadã portuguesa que vive no Chile há seis anos. Relata a repressão do regime de Piñera e a resposta da manifestação massiva com mais de um milhão de chilenos. Diz que o Chile é “um exemplo concreto” de “quando nos prometem futuros radiosos com “menos Estado e mais privatização”.
Manifestantes em Santiago do Chile. Outubro de 2019.
Manifestantes em Santiago do Chile. Outubro de 2019. Fonte: twitter.

Sou portuguesa e vivo há seis anos em Santiago do Chile. Gostaria de partilhar a minha visão dos acontecimentos que abalaram o Chile ao longo desta última semana e que vivi de muito perto, desde o primeiro dia.

A presença massiva de militares nas ruas, a repressão com que impediram as primeiras manifestações pacíficas, logo no sábado (dia 19) e domingo, lançando jatos de gás lacrimogéneo e balas de borracha contra os manifestantes, mobilizaram um número cada vez maior de chilenos a sair em protestos para as ruas, ao longo de todo o país. Infelizmente, o zelo e a eficácia das forças militares na repressão dos grupos saqueadores parecem ter ficado muito aquém da "energia" repressiva usada contra manifestantes pacíficos, como pude testemunhar "in loco" e como contou à televisão o gerente de um hotel de Santiago que foi saqueado a dois passos de enormes contingentes das forças armadas e policiais. Como contou às câmaras da televisão chilena, de nada lhe valeu os três pedidos de auxílio às forças militares que estavam concentradas na rua paralela e nas transversais do edifício e que, das três vezes, lhes responderam não poder abandonar o local onde se encontravam. E enquanto o hotel era vandalizado, quem se dirigia para a manifestação era perseguido a jatos de gás lacrimogénio e de balas de borracha. São também centenas os vídeos e os relatos (de desconhecidos e de gente conhecida) da inoperância e até conivência da polícia com os roubos a supermercados, farmácias e bancos. Instaurar o clima de caos justifica a repressão militar e policial que se instalou nas ruas de Santiago de forma totalmente injustificada. Se, efetivamente, algumas estações de metro foram queimadas na sexta-feira, dia 18 de Outubro, alegadamente “por grupos organizados de vândalos”, como afirmou o presidente Piñera, de “grupos internacionais de anarquistas”, como também se tem ouvido, ou de “grupos de tipo alienígena”, como desabafou a Primeira Dama, a solução passaria por policiar toda a rede de metro e por não entregar, nessa mesma noite, as ruas de Santiago aos militares. Esses militares que fizeram do Chile um país conhecido mundialmente pela sua ditadura sangrenta.

Foram seis dias de recolher obrigatório, em que à hora imposta para abandonar a rua, as manifestações se fizeram a partir das janelas dos prédios, com o bater de tachos e panelas e os ecos da canção “El derecho de vivir em paz”, de Victor Jara, assassinado pela ditadura militar. Dados do insuspeito Instituto Nacional dos Direitos Humanos (INDH) reportaram até ao momento mais de 3.000 presos, 785 feridos, 413 por armas de fogo, espancamentos, ameaças de violação e mortes ainda por explicar. A prisão de líderes estudantis, levados das suas casas a meio da noite e outros atentados aos direitos humanos foram também denunciados ao longo destes dias, estando prevista a chegada ao Chile de um grupo de observadores da ONU para que investiguem os denunciados atropelos aos direitos humanos. Mas o que estes números não revelam é o outro lado das manifestações que os meus olhos testemunharam: a entreajuda e solidariedade dos manifestantes, que partilhavam limões e água com bicarbonato de sódio (que aliviam o ardor de olhos e de garganta provocado pelos gases), os grupos de estudantes de enfermagem e medicina que organizadamente se juntavam para extrair as balas de borracha que atingiam os manifestantes (os braços, as pernas ou, pior ainda!, os olhos), os moradores das avenidas palco das manifestações que ofereciam água…. Um nível de solidariedade nunca visto, num clima de repressão também nunca visto desde os tempos sangrentos de Pinochet.

Ontem, dia 25, uma grandiosa e comovente manifestação pacífica juntou, segundo os dados oficiais, mais de um milhão e duzentas mil pessoas na emblemática Plaza Itália e imediações, unidas na luta contra as profundas desigualdades sociais de um país onde vigora ainda a constituição da Ditadura Militar de Pinochet , onde a promessa de melhores pensões através da privatização do sistema de reformas se traduziu em pensões miseráveis, onde a privatização do sistema de educação e do sistema de saúde criou escolas e clínicas médicas privadas de primeiro mundo, só acessíveis ao minoritário grupo que integra o “oásis” chileno de que falava o Presidente Piñera, e escolas e hospitais públicos de terceiro mundo para a imensa maioria dos chilenos que se vê confrontada com a impossibilidade de pagar uma educação de qualidade para os seus filhos e com a necessidade de pagar elevados seguros para assegurar o direito à saúde que o Estado não lhes garante. Um país que até a água privatizou e que agora diz ter acordado: “Chile despertó”, gritaram ao longo desta semana milhares de chilenos por todo o país. Aos apelos de “Piñera renuncia”, este respondeu cinicamente no seu twitter que se congratulava com “la multitudinária, alegre y pacífica marcha hoy”, fez um minuto de silêncio pelas vítimas mortais e convidou os seus ministros a apresentar a demissão.

Chile: um exemplo concreto que importa não perder de vista, quando nos prometem futuros radiosos com “menos Estado e mais privatização”.

Maria Luísa da Rocha Vasconcelos Quaresma

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