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O custo humano dos Jogos Olímpicos pandémicos

Os Jogos de Tóquio chamaram a atenção para problemas olímpicos endémicos (gastos, deslocamento de habitantes, militarização do espaço público e “lavagem verde”) e sublinharam também a supressão de toda a ética pelo pequeno gangue que dirige o COI. Por Dave Zirin e Jules Boykoff
Cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio, Japão, 23 de julho de 2021 – Foto de Zsolt Czegledi/Epa/Lusa
Cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio, Japão, 23 de julho de 2021 – Foto de Zsolt Czegledi/Epa/Lusa

Os Jogos Olimpícos de 2020 estão a desenrolar-se no cenário de pesadelo previsto por numerosos responsáveis médicos. Seria necessário uma folha de Excel para listar todos os casos de Covid-19 que já assolam os Jogos, incluindo no interior da aldeia olímpica. O presidente do Comité Olímpico Internacional, Thomas Bach, tem-se mostrado tristemente indiferente à possibilidade de o vírus perturbar os Jogos ou infetar a população vulnerável de Tóquio. A Dra. Annie Sparrow, dando eco à opinião de tantos especialistas desprezados, resumiu o caso num tweet: "Só palavras e nenhuma ação." Além disso, Annie Sparrow declarou a propósito do COI (Comité Olímpico Internacional): "Durante todo o processo, a ciência foi ignorada."

Esta "indiferença" põe vidas humanas em risco não só dentro da bolha olímpica, mas também fora dela. De acordo com estatísticas governamentais, apenas 22% da população japonesa está totalmente vacinada. Com a aproximação da cerimónia de abertura de Tóquio 2020, agendada para sexta-feira, 23 de julho, as taxas de Covid na cidade anfitriã estão a aumentar, constituindo uma quinta vaga, agravada pela invasão da variante Delta altamente transmissível. Estes Jogos olímpicos são incrivelmente impopulares na área metropolitana de Tóquio, que tem uma população de 37 milhões de habitantes, e por uma boa razão: podem terminar em mortes e doenças completamente evitáveis.

Entretanto, para fugir aos pedidos de cancelamento dos Jogos, Thomas Bach usou os atletas participantes como escudos humanos: “O COI jamais abandonará os atletas e, se tivéssemos cancelado os jogos, teríamos perdido uma geração inteira de atletas. Por consequência, o cancelamento para nós não era realmente uma opção. " Mesmo assim, muitos atletas já foram "perdidos" para os jogos por causa da Covid, nomeadamente um membro da equipa de ginástica dos EUA, a estrela do ténis Coco Gauff e vários jogadores de basquetebol dos Estados Unidos, incluindo as estrelas Bradley Beal e Zach Lavine. Sem falar das perda de vidas humanas que poderá ocorrer em Tóquio depois dos 80.000 “convidados” dos Jogos Olimpícos voltarem para casa e de os confetes serem varridos.

Por um lado, Thomas Bach admitiu que, em relação à Covid, “não teremos 100% de sucesso. Isso seria colocar a fasquia muito alta ”. Por outro lado, ele deixou atordoados os responsáveis médicos e os defensores do mais elementar bom senso quando afirmou que o risco de um atleta que contraiu o vírus o transmitir a outros na aldeia olímpica ou no Japão era "nulo".

Thomas Bach acrescentou: "Também estamos convencidos de que assim que o povo japonês vir os atletas japoneses apresentarem-se nestes Jogos Olimpícos, a atitude vai ser menos agressiva". Por outras palavras, algumas pessoas podem ter que sacrificar a sua saúde - e talvez até a sua vida - mas os Jogos devem continuar.

O COI insiste que o seu papel é "celebrar os atletas" e diz que coloca os atletas em primeiro lugar. Mas a realização dos Jogos Olímpicos durante uma pandemia sanitária mundial coloca os atletas em último lugar. Como um papagaio inscrito num concurso de repetição do Dia da Marmota [uma comédia fantástica de Harold Ramis lançada em 1993, também intitulada “O feitiço do tempo”], o COI afirma que os Jogos Olímpicos de Tóquio são "seguros". Devia contar isso aos jogadores de futebol sul-africanos que tiveram teste positivo ao coronavírus na aldeia olímpica. Ou dizê-lo às 71 pessoas - atletas ou membros de delegações olímpicas [87 oficialmente em 21 de julho] - que foram diagnosticadas com o vírus desde que aterraram.

O COI é inteiramente responsável por colocar em risco a vida dos participantes nos Jogos Olímpicos, pois só ele tem o poder de cancelar os Jogos, graças ao contrato leonino assinado com a cidade anfitriã. Thomas Bach declarou: "O que tornará os Jogos tão históricos é a demonstração de que eles podem decorrer com toda a segurança, mesmo nas circunstâncias desta pandemia."

Dizer que isso soa a falso para as pessoas comuns no Japão é um eufemismo enorme. Satoko Itani, professor da Universidade Kansai no Japão, declarou ao The Nation: “Estou muito preocupado pelo desastre que estes Jogos Olímpicos já causaram à sociedade japonesa. Todas as provas circunstanciais sugerem que, como o Japão era o país anfitrião dos Jogos Olímpicos, o governo minimizou a gravidade desta pandemia e, portanto, falhou a conter a propagação do vírus quando poderia tê-lo feito e isso já causou muitas mortes. Agora, a população japonesa observa o surgimento de novos casos de Covid-19 todos os dias envolvendo visitantes ligados aos Jogos Olímpicos. Também descobrimos que a chamada “bolha” olímpica não funciona. Estou chocado. Tóquio 2020 está a pôr em perigo vidas humanas porque propaga o vírus e absorve os recursos públicos de que precisamos desesperadamente para recuperarmos da pandemia e de outros desastres naturais que ocorrem tão regularmente aqui.” [Sem falar da política do governo que multiplica os seus esforços, nesta ocasião, para mascarar os efeitos ainda muito presentes do desastre de Fukushima, como ilustram documentários apresentados no canal Arte - Ed.].

Os Jogos de Tóquio devem servir de alerta aos anfitriões olímpicos de todo o mundo. Os Jogos não só chamaram a atenção para problemas olímpicos endémicos (gastos, deslocamento de habitantes, militarização do espaço público e “lavagem verde”) mas sublinharam também a supressão de toda a ética pelo pequeno gangue pouco recomendável de barões itinerantes do desporto que dirigem o COI e a corrupção, tanto legal como ilegal, que este grupo permite. Com a organização dos jogos, o COI demonstra ao mundo inteiro o caráter microscópico da sua ética.

Quanto a Thomas Bach, Satoko Itani reflete um sentimento disseminado no Japão ao dizer: “As pessoas aqui ficaram furiosas com a sua arrogância e a sua negligência. O que é particularmente chocante é que ele foi a Hiroshima e a Nagasaki sem respeitar um período de quarentena de duas semanas, apesar da oposição dos hibakusha [sobreviventes das bombas atómicas lançadas pelos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki]. Eles não querem que a sua experiência seja utilizada para “pacificar” os Jogos olímpicos. Se Bach deseja realmente criar um mundo pacífico, deve começar por ouvir as pessoas. Impor a sua própria vontade a alguém ou falar sem saber o que realmente se está a passar com as pessoas é o oposto de qualquer pacificação."

Longe de ser um ato de "pacificação", estamos em presença de um provável caso de contágio massivo que pode afetar uma população que, na sua maioria, não está vacinada. Não é um ato de paz. É um ato de guerra.


Artigo de Dave Zirin* e Jules Boykoff**, publicado no site do semanário “The Nation”, 21 de julho de 2021; traduzido para francês pela equipa editorial do “A l’Encontree para português por Carlos Santos para esquerda.net

* Dave Zirin é o editor de desporto do “The Nation” e autor de vários livros, incluindo Game Over: How Politics Turned the Sports World Upside Down (The New Press, 2013).

** Jules Boykoff é professor de ciência política na Universidade do Pacífico em Oregon e autor de quatro livros sobre os Jogos Olímpicos, o mais recente dos quais é NOlympians: Inside the Fight Against Capitalist Mega-Sports em Los Angeles, Tóquio (Fernwood Publishing, abril de 2020)

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