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A eleição mais árdua de Evo Morales

Avanços económicos e redução da pobreza fazem-no favorito nas eleições deste domingo, mesmo com desgaste de 14 anos no poder. Oposição boliviana, dividida, tenta alcançar segunda volta - e aposta em “protestos sem partido” e nos milhares de indecisos. Por Pablo Stefanoni.
Em 20 de outubro, Morales enfrentará as eleições mais incertas desde 2005, quando ganhou com 54% dos votos, assumindo com dupla entronização – no Parlamento e nas ruínas de Tiwanaku
Em 20 de outubro, Morales enfrentará as eleições mais incertas desde 2005, quando ganhou com 54% dos votos, assumindo com dupla entronização – no Parlamento e nas ruínas de Tiwanaku

No início da campanha eleitoral argentina, rumo às eleições do dia 27 de outubro, um programa de televisão dedicou uma das suas transmissões a responder a uma pergunta: a Argentina poderia olhar para a Bolívia em busca de inspiração económica? A questão, ainda que um pouco exagerada, não deixa de ser sugestiva, especialmente ao observar que Evo Morales faz parte do mesmo clube ideológico regional que a Venezuela, país com resultados económicos catastróficos. Mas a verdade é que os bons indicadores macroeconómicos da Bolívia têm sido amplamente refletidos na imprensa internacional.

Crescimento sustentado, redução da pobreza, inflação e endividamento baixos contrastam, de facto, com os maus resultados de Maurício Macri, chamado a alterar a “pesada herança do populismo” argentino. Num spot recente Morales advertiu a audiência: “querem isso para a Bolívia?”, enquanto exibia imagens da crise na Argentina, sugerindo que algo parecido poderia ocorrer no país andino se o ex-presidente Carlos Mesa, principal adversário de Morales, chegar à presidência.

A oposição boliviana está dividida entre Mesa, de perfil moderado, e o ex-senador conservador Óscar Ortiz, uma referência na região agroindustrial de Santa Cruz. A eles somam-se candidatos sem chances, como o pitoresco Chi Hyun Chung, do Partido Democrata Cristão (PDC), que busca transplantar para a Bolívia um discurso bolsonarista cheio de extravagância e excessos retóricos.

Ainda que Mesa encabece a intenção de voto no campo opositor, segundo a maioria das sondagens em torno de dez pontos abaixo de Morales, o ex-presidente é lembrado por ter renunciado no meio de conflitos sociais pela nacionalização do gás em 2005 e apresenta uma equipe de colaboradores muito “branca” e quase sem vínculos com o denso mundo popular boliviano, uma dimensão em que Morales mostra uma efetiva força. Além disso, Mesa foi vice-presidente de Gonzalo Sánchez de Lozada, que teve que fugir do país em 2003 no meio da “guerra do gás”, que marcou um antes e um depois da política boliviana.

Ainda que a oposição considere inconstitucional a candidatura de Morales – avalizada pelo Tribunal Constitucional, próximo do Poder Executivo – as suas principais referências decidiram candidatar-se para evitar que um presidente sem oponentes concentrasse todo o poder, como ocorreu na Venezuela nas eleições parlamentares de 2005, quando a oposição decidiu não participar nas eleições e a Assembleia Nacional ficou quase totalmente nas mãos do chavismo.

Ao mesmo tempo, a oposição não conseguiu o apoio do secretário-geral da Organização de Estados Americanos (OEA) Luis Almagro, que visitou La Paz em junho e, além de mostrar boas relações com Morales, o que surpreendeu muitos devido ao seu enfrentamento com Maduro, apontou que não há nenhum instrumento nem antecedente na OEA que permita intervir de maneira institucional nas eleições da Bolívia, da mesma maneira que não se interveio na Costa Rica e nas Honduras. Nesses países também se habilitou a reeleição indefinida, apelando de forma polémica à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - que consagra o direito de todo cidadão a “eleger e ser reeleito” - como forma de evitar as limitações constitucionais.

Diante disso, em 20 de outubro Morales enfrentará as eleições mais incertas desde 2005, quando ganhou com 54% dos votos, assumindo com dupla entronização – no Parlamento e nas ruínas de Tiwanaku1 e vencendo todas as eleições presidenciais posteriores com mais de 60% dos votos. Com a investidura simbólica de ser o primeiro presidente indígena da Bolívia, Morales colocou em marcha o processo político mais intenso desde a Revolução Nacional de 1952. Mas, depois de 14 anos de triunfos confortáveis frente a oposição política e regional (radicada na região oriental de Santa Cruz), a aura de Morales parece estar erodida, sobretudo nas grandes cidades, pela sua decisão avançar para uma nova reeleição, contrariando o que foi escrito na Constituição de 2009 e contra os resultados adversos, por pequena margem, do referendo de 2016. Ainda assim, o presidente boliviano tem a seu favor níveis macroeconómicos que lhe permitem apresentar-se como o candidato da estabilidade e prometer um “futuro seguro”.

O modelo económico implementado pelo ministro Luis Arce Catacora consiste, nas suas palavras, no “socialismo com estabilidade macroeconómica”. Arce Catacora ingressou no gabinete em janeiro de 2006, onde se mantém até hoje, exceto por alguns meses em que se ausentou da gestão por problemas de saúde. É um esquerdista pragmático, atento aos equilíbrios das contas públicas. Mas há um elemento a mais nestas preocupações macroeconómicas: a esquerda que governou antes de Evo Morales, nos anos 80, chegou ao final do mandado com hiperinflação — e o presidente boliviano propôs-se não repetir essa experiência. Sem dúvidas, foi ajudado pelos ventos económicos que aumentaram os preços de matérias-primas, mas também é verdade que se dedicou a acumular reservas internacionais para as épocas de vacas magras, o que efetivamente ocorreu com a baixa dos preços internacionais de matérias-primas.

O modelo boliviano, como explica o jornalista e escritor Fernando Molina2, consiste na combinação de estatismo nas “áreas estratégicas” da economia, como o gás e a eletricidade; uma aliança com o setor privado que comanda as grandes (agro)industrias nacionais – muitas delas com sede em Santa Cruz - o comércio em larga escala e os bancos, que lucraram muito nestes anos; e, finalmente, a um “pacto de coexistência pacífica” com a economia informal, que na Bolívia tem um importante peso económico e simbólico. Essa informalidade sustenta a denominada, com escassa precisão sociológica, “burguesia chola”, que mostra o seu poder económico no gigantesco mercado folclórico e nos chamados cholets3 e compõem amplas redes comerciais – uma espécie de “globalização a partir dos de baixo” – que chegam até à China.

O caso da agroindústria é um pouco mais complexo porque está ligado à questão do regionalismo, algo de longa data na Bolívia. Em 2006, a elite política e económica de Santa Cruz, embarcando na luta pela autonomia regional, tentou resistir, inclusive com violência, ao modelo nacionalista-popular-indígena de Morales. Mas dois anos mais tarde, o movimento sofreu duros golpes - económicos, policiais e eleitorais – ao mesmo tempo em que Morales se fortalecia no poder. Por isso, uma grande parte das elites – sobretudo a agroindustrial – decidiu pactuar com o governo, em troca de subsídios e apoio estatal, e aproveitar o boom económico. Isso debilitou a ala política do regionalismo que continuou a controlar o governo do estado. “O governo de Evo Morales quer converter Santa Cruz em Paraguai, uma fortaleza agroexportadora, de maiores dimensões que a atual, capaz de capturar dólares para a economia nacional”, explica o jornalista cruceño Pablo Ortiz.

Esta estratégia “desenvolvimentista” gerou uma década de paz política. Inclusive em 2014, Evo Morales conseguiu ganhar nesta região tradicionalmente opositora. Mas a sentença do Tribunal Constitucional em fins de 2017, que habilitava Evo Morales para uma nova candidatura, serviu como incentivo para um novo ciclo de mobilizações, mas, desta vez, sem as autoridades políticas locais na liderança. Recentemente [entre julho e outubro], os incêndios na região de Chiquitania contribuíram também para o descontentamento, já que evidenciaram as tensões internas no discurso oficial entre a defesa da Mãe Terra e a tolerância e, inclusive, a legitimação dos “incêndios controlados” para os chaqueos4. Mas, ao mesmo tempo, os incêndios alimentam discursos racistas contra os migrantes “collas”5 em Santa Cruz: o slogan “fogo zero” pode virar facilmente “migrantes zero”, ao responsabilizar exclusivamente os pequenos camponeses colonizadores, provenientes do ocidente, pelos chaqueos.

Esta reativação do regionalismo operou a partir das ruas e, inclusive, contra uma parte das elites locais. As divisões e censuras cruzadas abundam na política cruceña, e muitos acusam os empresários de se terem “vendido ao MAS” (Movimento ao Socialismo, de Evo Morales) e de trair a região. “Este é um cruceñismo de jovens, sobretudo de 17 a 35 anos, mas com ideias velhas, as mesmas que geraram a luta autónoma na primeira década de 2000: menos controle do Estado central sobre a região, maior capacidade de autodeterminação e controle sobre a terra, o principal elemento do ideário político cruceño”, explica Ortiz. O recente Cabildo6 convocado pelo Comité Cívico regional concentrou dezenas de milhares de pessoas em 4 de outubro, convocando-as para lutar pelo federalismo – um slogan que não estava na agenda, mas foi entoada pela multidão – e a votar contra Evo Morales em 20 de outubro.

Não é por acaso que o evento mais massivo da campanha boliviana foi “um ato de campanha sem candidatos no palco”, como foi o Cabildo cruceño. A oposição, de facto, está dividida e isso alimenta as possibilidades de um triunfo de Evo Morales na primeira volta. Por isso, esse formato “cidadão” ilude alguns que buscam transcender as fronteiras partidárias e as fortes batalhas no interior da oposição. A Constituição boliviana estabelece que um candidato vence no primeiro turno se obtiver 50% mais um dos votos ou 40% com dez pontos de diferença sobre o segundo. Morales aposta nesta fórmula mágica para permanecer no governo durante um quarto mandato.

Por isso, o Cabildo cruceño – uma histórica forma de expressão das reivindicações da região, quase inexistente noutras partes do país – agora quer ser imitado pela oposição no resto da Bolívia, inclusive em La Paz. A falta de atos proselitistas numerosos, esta forma de mobilização sem bandeiras partidárias poderia ser uma forma de gerar entusiasmo e adesão a um voto útil na oposição, que deveria se aplicar a Carlos Mesa, candidato que tem maiores possibilidades de triunfo entre os opositores, e nunca teve prestígio em Santa Cruz.

Mesmo desgastado, Morales tem a seu favor, além da economia, o controle do Estado, setores socais e empregados públicos mobilizados e popularidade que, ainda mais baixa que antes, não pode ser subestimada. Por agora, o presidente boliviano lidera todas as sondagens, com percentagens que o colocam com cerca de 40% e a dez pontos de diferença do segundo – isso no meio de uma grande guerra de números na imprensa e nas redes sociais. No entanto, todas elas mostram uma alta percentagem de indecisos que, segundo alguns especialistas, pode ocultar votos. O que não se sabe ainda é a favor de quem e é provável que seja essa “caixa negra” que defina as eleições. Se os indecisos se dividem de maneira mais ou menos proporcional, Evo Morales pode ganhar na primeira volta. Por isso, toda a sua artilharia concentra-se em evitar uma nova disputa em que os votos opositores somados poderiam colocar fim ao seu governo, o mais longo da história boliviana.

Artigo de Pablo Stefanoni*, publicado em Letras Libres. Traduzido para português por Rônei Rodrigues e publicado em Outras Palavras, adaptado a português de Portugal por Carlos Santos para esquerda.net


Notas:

1 Tiwanaku - antiga cidade pré-colombiana, sagrada para os indígenas da Bolívia.

2 Ler artigo Bolívia: “É a economia, estúpido”, de Fernando Molina, publicado em https://nuso.org/articulo/bolivia-es-la-economia-estupido/

3 Espécie de casas de luxo indígenas.

4 Limpeza do terreno para o cultivo.

5 Collas que, ao lado dos “cambas”, constituem as principais etnias indígenas na Bolívia.

6 Cabildo, mecanismo constitucional de participação cidadã, com caráter deliberativo, ainda que não vinculante.

* Jornalista e historiador. Chefe de redação da revista Nueva Sociedad.

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