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Direitização eleitoral à uruguaia

Domingo 27 de outubro terá lugar a primeira volta das eleições nacionais no Uruguai. Nenhum dos candidatos conseguirá ultrapassar os 50% para ser eleito na primeira volta, o próximo presidente será pois definido na segunda volta, exatamente um mês depois. Por Diego Castro Vilaboa
Candidatos à presidência do Uruguai: Daniel Martínez, Ernesto Talvi, Guido Manini Rios e Luis Lacalle Pou
Candidatos à presidência do Uruguai: Daniel Martínez, Ernesto Talvi, Guido Manini Rios e Luis Lacalle Pou

Nesse caso, as sondagens apontam que ganhará a direita, recuperando a presidência após quinze anos de governos progressistas com maioria parlamentar.

Onze homens concorrem à presidência, embora apenas dois tenham possibilidades de ser eleitos: o candidato da Frente Ampla Daniel Martinez e o do Partido Nacional Luis Lacalle Pou. Um pouco mais longe ficam as aspirações de Ernesto Talvi e do seu partido Colorado, que governou o país durante duzentos anos, com breves interrupções. As sondagens colocam em quarto o Cabildo Abierto , um partido criado em abril cujo candidato foi comandante em chefe do exército, durante quatro anos, em governos da Frente Ampla: Guido Manini Ríos.

O resto dos pequenos partidos oscila à volta do 1% e, certamente, pelo menos dois deles não entrarão no parlamento.

Feitos estes esclarecimentos iniciais, é importante compreender estas eleições nacionais em dois episódios diferenciados. A primeira volta, marcada pela formação do parlamento, e a segunda volta, onde os dois candidatos mais votados disputam a presidência.

Centremo-nos nos quatro partidos com mais apoio. Segundo as sondagens: a Frente Ampla obterá entre 30 e 40% dos votos, o Partido Nacional entre 23 e 28%, o Partido Colorado entre 12 e 18% e o Cabildo Abierto entre 7 e 12%. Duas empresas de sondagens publicaram cenários de votação na segunda volta, em ambas a direita venceria. Para a consultoria Opción, Lacalle reuniria 49% e Martinez 41%. Para a Radar, Lacalle obteria 47% e Martínez 44%.

Os resultados da primeira volta não são transferíveis para a segunda, pelo menos por um elemento importante que beneficia o candidato da Frente Ampla: contradizendo as sondagens, é pouco provável que Lacalle consiga captar todos os votos de Talvi e Manini, especialmente pelo seu perfil arrogante, isto é, pela sua vaidade e estilo aburguesado. A dúvida coloca-se em saber se esta questão é suficiente para Martinez ganhar. Nas eleições de 2014, a Frente Ampla perdeu quase 10% do eleitorado.

Ganhe quem ganhar, o próximo governo será mais fraco que os três anteriores e também estará mais à direita. Nenhuma das forças políticas terá maioria parlamentar e, a priori, a formação de blocos não será uma tarefa simples. Aumentará a dispersão partidária e a incidência da direita no parlamento. Atualmente, cinco partidos têm representação parlamentar e é provável que entrem mais três ou quatro, um deles com forte presença (Cabildo Abierto). Tudo parece indicar que o partido de Manini desempenhará um papel relevante, mesmo acima do seu apoio eleitoral (no melhor dos casos, obterá quatro senadores e uma dezena de deputados). Dos restantes partidos, apenas a Unidade Popular tem uma clara orientação de esquerda.

Os candidatos: um museu de grandes novidades

Um social-democrata com retórica empreendedora, o filho do presidente que impulsionou as privatizações nos anos 90, um 'chicago boy' e um militar com pedigree de extrema direita: estas são as principais opções eleitorais.

Martínez e Talvi têm 62 anos, Manini 60 e Lacalle 46. Todos são professores universitários: Martínez engenheiro industrial, Talvi economista, Manini, além de militar de carreira é historiador e Lacalle advogado. Os dois últimos são graduados numa universidade privada (Universidade Católica) e os primeiros pública (Universidade da República). Paradoxalmente, os graduados na universidade pública têm uma forte carreira profissional privada e Manini e Lacalle trabalham principalmente na esfera estatal, o primeiro como militar e o segunda como parlamentar desde os 27 anos.

Daniel Martínez - Foto wikipedia
Daniel Martínez - Foto wikipedia

Daniel Martínez foi presidente da juventude socialista, tem militância política nesse partido e foi dirigente sindical na federação de funcionários da empresa estatal de combustíveis (ANCAP). No início dos anos 90, concentrou a sua atividade no setor privado, até que no primeiro governo da Frente Ampla (2005) foi presidente da ANCAP e depois ministro da Indústria. Em 2010, apesar de contar com bom apoio, segundo as sondagens, a Frente Ampla negou-lhe a possibilidade de concorrer a presidente da Câmara de Montevideu, o que aconteceu em 2015 vencendo a eleição. Sendo ministro (2009) entrou na Grande Loja da Maçonaria. Na sua participação pública, insiste em defender o que foi feito por governos progressistas e critica fortemente a negatividade da oposição. O slogan da sua campanha é "Manter o bom, fazer melhor". Paradoxalmente para um candidato de "esquerda", ele expressou repetidamente que um dos desafios estruturais do Uruguai é criar uma cultura empreendedora. Além de ser candidato, Martínez lidera a renovação geracional da Frente Ampla e é propenso a montar as suas próprias equipas sem dar grande importância aos equilíbrios interno, nem às referências históricas (Vázquez, Mujica e Astori), sendo isto notório na conformação dos grupos de assessores temáticos que ele constituiu durante a campanha. Surpreendeu ao promover Graciela Villar à vice-presidência, contradizendo a opinião de Astori e substituindo Carolina Cosse, a candidata do setor de Mujica que tinha ficado em segundo lugar nas eleições internas. Até então, Villar era uma militante desconhecida fora das estruturas partidárias. Os movimentos de Martinez estão a preocupar a estrutura e os equilíbrios internos. Inicialmente, os dois principais setores da Frente Ampla diminuirão o seu peso eleitoral, a ala direita da coligação do ministro da Economia Danilo Astori e o setor do ex-presidente Mujica. Apesar disso, esses grandes braços da coligação continuarão a funcionar, a confirmarem-se as sondagens, o setor "progressista" do ex-presidente do Banco Central Mario Bergara e as alianças em torno do sindicalista da construção civil e membro do Partido Comunista Oscar Andrade serão as duas principais forças da bancada parlamentar da Frente Ampla. As principais propostas de Martinez são atravessadas por uma aura modernizadora e desenvolvimentista, que propõe efetivamente dar continuidade ao modelo de promoção do investimento privado para não parar de crescer. O plano é que o Estado crie os benefícios necessários para que a atividade económica cresça indefinidamente e uma parte muito menor desse crescimento possa ser transferida para serviços públicos e políticas compensatórias, sempre focalizadas.

Luis Lacalle Pou
Luis Lacalle Pou

Luis Lacalle Pou é o candidato mais jovem, filho de Luis Alberto Lacalle Herrera, presidente entre 1990 e 1995, e atual líder do setor fundado pelo seu bisavô Luis Alberto de Herrera. Lacalle representa o retorno às políticas neoliberais pró-mercado, embora o seu discurso se matize quando expressa o seu apoio a várias das políticas sociais da Frente Ampla. Propõe uma redução drástica dos gastos públicos (um choque) para conter o défice fiscal e flexibilizar as negociações salariais por setor, de acordo com as particularidades de cada empresa.

Ernesto Talvi
Ernesto Talvi

Ernesto Talvi, economista formado em Chicago e apadrinhado pelo último presidente colorado, Jorge Batlle, falecido em 2016. Foi assessor do Banco Central entre 1990 e 1995. Desde o final dos anos 90, dirige o CERES, uma fundação que assessora produtores agropecuários e empresários. Talvi identifica-se como liberal e tenta fazer a ligação com a tradição da excepcionalidade uruguaia e a ideia da "Suíça da América", usando como slogan da campanha uma frase de Batlle e Ordoñez, a principal figura do seu partido no século xx: "um pequeno país modelo". Apesar disso, a sua agenda, formação e trajetória é de clara orientação neoliberal.

Guido Manini Ríos
Guido Manini Ríos

Guido Manini Ríos é uma novidade antiga. Uma novidade porque ele entrou no partido há apenas alguns meses e junta 12% do eleitorado (em ascensão). Antigo, pois provém de uma família de políticos do setor riverista (extrema direita) do Partido Colorado. O seu avô Pedro era deputado, senador, ministro do Interior e chanceler. Também foi Ministro das Finanças na ditadura de Terra (1933-1938). O seu tio Carlos era deputado, senador, ministro do governo pré-ditatorial de Pacheco, embaixador durante a ditadura e ministro do Interior do primeiro governo de Julio María Sanguinetti. Manini era comandante em chefe do exército a partir de 2015, quando foi nomeado por José Mujica, até 2019. Nesse ano, foi destituído pelo presidente Vázquez depois de violar a proibição constitucional dos militares intervirem em assuntos de política nacional: primeiro dando a sua opinião sobre a alteração da passagem à reforma dos militares e posteriormente por criticar a justiça pelo tratamento dado aos militares envolvidos em crimes contra a humanidade. Vivendo bem, ele estudou no Liceu francês, depois fez carreira militar e estudou história na Universidade Católica. Foi observador militar no Irão (1988), no Iraque (1989) e em Moçambique (1993 e 1994). Um ano (2010) antes de ter ascendido a general, foi adido militar na embaixada dos EUA. Enquanto servia como comandante do exército, mostrou-se próximo de membros do governo, principalmente do ministro da Defesa, ex-tupamaro Fernández Huidobro. É lembrada a sua participação no funeral de Huidobro, quando sustentou que este tinha sido um dos melhores ministros da Defesa na história do Uruguai. Em 2017, foi acusado por organizações de direitos humanos de fornecer pistas falsas sobre os desaparecidos. A figura de Manini lembra Mario Aguerrondo, um militar que era chefe de polícia em Montevidéu no início dos anos 60, ultra-nacionalista e anticomunista, fundador da loja paramilitar dos tenentes de Artigas, que se apresentou nas eleições em 1971 pelo Partido Nacional e obteve uma percentagem semelhante ao apoio que Manini terá, 13%. O uso do artiguismo na sua versão militar-nacionalista, o facto de pertencer ao exército, as posições de “mão dura” e os setores sociais de apoio ligam Aguerrondo e Manini.

Como é notório, apesar do esforço de se apresentarem como propostas renovadoras e relativamente alheias à "política profissional", todos os candidatos estão familiarizados com diferentes grupos de poder e com as principais tradições políticas. Neste contexto, o que se espera para as próximas eleições é uma viragem mais ou menos leve para a direita, com ou sem progressismo.

Contra o desânimo das lutas sociais: força em si mesma e luta por nós

No meu ambiente, que é principalmente de militantes sociais sem filiação partidária, o processo eleitoral não gera mais expectativas, mas trocam-se comentários de preocupação. Alguns argumentam que convém que o progressismo perca e que isso clarifique a relação das lutas com o Estado. A experiência argentina parece contradizê-los: quatro anos depois, com exceção da vitalidade feminista, o resto das forças populares aguarda o retorno de um kirchnerismo descafeinado. Seria desolador encontrarmo-nos nessa situação em 2024. Outras posições entendem que é preferível que exista um governo menos hostil às posições das lutas: uma expressão apática de "o menos mau".

Para além destas especulações, o problema das lutas está no seu terreno próprio e, embora importe quem vence, o relevante é como retoma protagonismo depois de 15 anos de conflitualidade controlada. Como retomamos a melhor tradição das nossas lutas de ser uma força em si, governe quem governar?

Com exceção das lutas feministas e ambientais, o resto desenvolve-se num terreno amplamente delimitado pelo que se apresenta como possível a partir das esferas governamentais. O movimento sindical, que é muito importante no Uruguai até ao momento, restringe a sua ação à defesa de algumas conquistas importantes, mas claramente insuficientes, como por exemplo a manutenção de negociações salariais coletivas. Teremos que aprender com as lutas que conseguiram ir mais longe, promovendo uma relação não ideológica com o Estado (pragmática), não centrada no estado: lutas para obrigar os governos e os patrões a nos obedecer. Essa será a maneira de dissociar os desejos e anseios populares das sempre tíbias concessões governamentais.

A Frente Ampla, nos seus três governos, abandonou qualquer indício de tentar realizar transformações relevantes das injustiças e dominações que nos atravessam. É comum celebrar as notas ou medições de investidores que demonstram a boa saúde do nosso capitalismo dependente. Isso não significa ignorar as melhorias materiais, mas são insuficientes e fundamentalmente insustentáveis. Depender de um modelo que requer investimento estrangeiro e a intensificação da desapropriação dos bens naturais para crescer é como comprar uma corda adaptada ao pescoço. Poderá reativar-se a legitimidade do modelo, momentaneamente, com o crescimento de 2% do PIB que promete a instalação de uma segunda fábrica de produção de celulose (UPM 2), mas e daí? Outro investimento em condições mais leoninas?

Entre o progressismo liberal e a restauração conservadora, não encontraremos uma solução para os problemas das nossas vidas: empregos precários e mal pagos, alugueres que recolhem mais de metade do salário no primeiro dia de pagamento, serviços públicos caros e de baixa qualidade, violência ampliada em todas as suas expressões e variantes, e uma extensa lista que terá expressões diferentes e concretas de acordo com quem a redigir. Não existe uma lista universal, assim como não há sequer um sujeito universal e abstrato que a possa apresentar e conquistar. Os tempos que se aproximam exigem amplos processos de composição política de sujeitos heterogéneos. Onde ninguém deixa de ser o que é para partilhar a luta com os outros.

A crise da esquerda em torno das estratégias de transformação é antiga e profunda. Os desafios são de longo prazo, é sempre tempo de recomeçar. Nos próximos meses, só escolheremos o próximo governo, as nossas alternativas estão em outro lugar, para encontrá-las, é precisa procurar diferente. Não se trata apenas de querer um governo melhor, é necessário dar forma a experiências políticas que nos permitam assumir o controle direto dos meios de vida. Fortalecer os existentes e criar novos processos organizativos autónomos para a gestão da água, da habitação, dos serviços de educação e saúde, etc. Formas que nos permitam produzir reequilíbrios, deformando os modos de governo e as suas formas de gestão mercantil da vida.

Artigo de Diego Castro Vilaboa1, publicado em la tinta. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

1 Diego Castro Vilaboa é docente na Universidade da República do Uruguai e doutorando em Sociologia da Benemérita Universidade Autónoma de Puebla, México

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