Chile: “Roubaram-nos tanto, que até nos levaram o medo”

28 de October 2019 - 17:20

O poderoso levantamento do povo chileno contra o custo de vida e as desigualdades sociais não esmorece, apesar de sofrer uma repressão sem precedentes desde o fim da ditadura. Por Jérôme Duval

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Forças Especiais da Polícia disparam sobre os manifestantes, Plaza de los Héroes de Rancagua, 20 outubro 2019. Cc Wikipedia
Forças Especiais da Polícia disparam sobre os manifestantes, Plaza de los Héroes de Rancagua, 20 outubro 2019. Cc Wikipedia

Enquanto no Equador uma insurreição popular levada a cabo pelo movimento indígena pôs termo a uma medida económica, imposta pelo FMI, que implicava uma subida espectacular do preço dos combustíveis, e por consequência do preço dos alimentos, o presidente do Chile, por vezes denominado “Berlusconi Chileno”, viu-se obrigado a renunciar a uma subida do preço dos transportes, face à contestação. Pela primeira vez desde o fim da ditadura, o Governo recorreu ao estado de emergência, pondo o exército em campo em todo o país, determinado a sufocar a revolta em curso contra o modelo neoliberal dos Chicago boys.

O Chile entrou em período insurreccional desde 18 de outubro. Nesse dia multiplicaram-se as acções de “borla massiva” [acto de protesto dos estudantes que consiste em passar em massa por cima das cancelas do metro, sem pagar]1, acabando por impor a interrupção total do serviço. A cólera da população estudantil intensificou-se a seguir contra o aumento, de 800 para 830 pesos, do preço dos bilhetes de metro em Santiago, no seguimento de um aumento de 20 pesos em janeiro passado. O metro da capital chilena, que tem a rede mais extensa da América do Sul (140 km), transporta diariamente cerca de 3 milhões de passageiros, numa área urbana com 7 milhões de habitantes.

Extensão do domínio da luta

O presidente Sebastián Piñera – uma das cinco pessoas mais ricas do Chile, com fortuna feita durante a ditadura e atualmente estimada em 2,8 mil milhões de dólares, segundo a revista Forbes,2 acabou por ceder. A 19 de outubro anunciou a anulação da subida de preço dos bilhetes do metro e dos autocarros Transantiago, medida que, desde o seu anúncio a 6 de outubro, provocou um vasto movimento de protestos em todo o país. Mas esta concessão de Piñera chegou tarde: o aumento de 30 pesos foi a gota de água que fez transbordar a cólera popular, expressa no slogan “Não é por 30 pesos, é por 30 anos” («No es por 30 pesos, es por 30 años»), que mostra a exasperação do povo chileno em resultado das contra-reformas neoliberais anti-sociais levadas a cabo desde o fim da ditadura. Ultrapassado pelos acontecimentos, o presidente decide nesse mesmo dia colocar os militares nas ruas; foi o mesmo que soprar as brasas de um conflito em plena propagação. De facto, o envio do exército para as ruas da capital, onde foi declarado o estado de emergência – alargado, durante a noite, a duas outras regiões, Valparaíso (centro) e Conceptción (sul) –, agitou profundamente os ânimos num país traumatizado pela ditadura militar de Augusto Pinochet (de 1973 a 1990) – falecido em 2006 sem ter sido julgado pelos seus crimes, que fizeram mais de 3200 mortos e desaparecidos e 38.000 torturados.3

Helicóptero do Exército chileno sobrevoando Santiago durante o estado de emergência, 19 outubro 2019. Cc Wikipedia.

O exército viria a intervir noutras 11 regiões, onde o estado de emergência foi declarado na segunda-feira, enquanto a revolta alastrava como rastilho de pólvora. O slogan “Piñera cagón, me paso por la raja tu estado de excepción” (“Piñera, sacana, caguei no teu estado de emergência”) ressoa em todo o país. Os cacerolazos (batucada de panelas) trazem à rua bairros inteiros, levantam-se barricadas por toda a parte e as concentrações multiplicam-se nas principais cidades, para exigirem a retirada das tropas e a abolição imediata do estado de emergência. Entretanto, as reivindicações dos manifestantes alargaram-se contra um modelo económico de privatizações que asfixia a vida quotidiana e reduz o cidadão a um simples consumidor: o acesso à saúde, à educação, à água ou à energia (o preço da eletricidade aumentou 10% em setembro) resulta quase exclusivamente do setor privado e o sistema de reformas por capitalização, criado em 1982 por Pinochet, propõe na maior parte dos casos uma reforma inferior ao salário mínimo de 301.000 pesos (371 euros).

O modelo económico chileno, laboratório do neoliberalismo sob a égide dos Chicago boys, foi imposto durante a ditadura e poucas alterações sofreu durante o regime democrático, que de resto nem sequer alterou a Constituição. Muito elogiado pela sua estabilidade económica, o Chile é hoje um dos países com maiores desigualdades em todo o mundo, segundo a OCDE. Segundo as Nações Unidas, 1% dos Chilenos detém mais de 25% das riquezas do país.

Portagem da Estrada 78, na região de Peñaflor, destruída em 19 outubro 2019. Cc Wikipedia

Portagem da Estrada 78, na região de Peñaflor, destruída em 19 outubro 2019. Cc Wikipedia

Mais de 13 mortos e 88 feridos por armas de fogo

Apesar da presença de mais de 9.500 militares rodeados de carros de patrulha nas ruas da região metropolitana e na cidade de Santiago, onde o comando da capital foi entregue ao general Javier Iturriaga, a população desarmada esvaziou os supermercados e durante a noite várias pessoas morreram nos incêndios, como foi o caso no Lider, da cadeia norte-americana Walmart, em San Bernardo, nos arredores da capital. As instalações do maior quotidiano chileno, El Mercurio – conhecido por ter apoiado o regime militar de Pinochet à época – foram atacados pelos manifestantes em Valparaíso; a sede da sociedade Enel Chile – gigante da eletricidade – foi destruída pelas chamas no centro de Santiago. O balanço oficial, no sábado 19 e domingo 20 de outubro, é pesado: 8 mortos, mais de 65 feridos, quase mil prisões e umas 40 instalações comerciais assaltadas.

As atitudes do ministro do Interior, Andrés Chadwick, membro da Juventude Militar durante o regime de Pinochet, são inquietantes, enquanto o balanço dos confrontos se foi tornando mais pesado a cada hora, chegando aos 13 mortos e 88 feridos por armas de fogo, segundo o Instituto dos Direitos Humanos (Instituto Nacional de Derechos Humanos, INDH). A ex-chefe de Estado do Chile e presidente da Comissão dos Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, pediu a abertura de investigações independentes sobre a repressão em curso.

Domingo 20 de outubro, mais de 20.000 pessoas convergem pacificamente na Plaza de Los Heroes. Muitos criticam a cobertura mediática. Cc Wikipedia
Domingo 20 de outubro, mais de 20.000 pessoas convergem pacificamente na Plaza de Los Heroes. Muitos criticam a cobertura mediática. Cc Wikipedia

Jogadores de futebol de renome, como Arturo Vidal (FC Barcelona), Claudio Bravo (capitão da equipa nacional chilena e guarda-redes suplente do Manchester-City) ou Gary Medel (vencedor da Copa América 2014 e 2015), apelam aos dirigentes para que escutem o povo; numerosos artistas apoiam a cólera popular, como é o caso da cantora chilena Anita Tijoux, que encoraja as batucadas de panelas com um novo videoclip que se tornou viral, Cacerolazo4. Enquanto para as Pussy Riot os manifestantes do Chile representam uma bela inspiração e uma lição para todos os povos do mundo, na luta contra a injustiça dos ricos, o presidente milionário Piñera, rodeado de militares, declara: “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém”. A isto responde Gary Medel: “Uma guerra precisa de dois campos, mas nós somos um só povo que quer a igualdade”.5

Várias organizações estudantis convocaram com carácter de urgência assembleias de estudantes nas universidades, apelando à greve geral. No seguimento, uma centena de organizações agrupadas sob o nome de Unidade Social do Povo Chileno (Unidad Social del Pueblo Chileno) convocaram uma greve geral a nível nacional para 23 e 24 de outubro6. Enquanto o Chile desperta ao som das botas, surge um novo slogan: “Roubaram-nos tanto, que até nos levaram o medo”.

Artigo de Jérôme Duval, publicado em cadtm.org, tradução para português de Rui Viana Pereira


Notas:

1 Ver por exemplo um vídeo de borla massiva: “Nueva evasión masiva: Estudiantes derriban reja del metro Santa Lucia”, La Cuarta, 17 outubro 2019: https://www.lacuarta.com/cronica/noticia/nueva-evasion-masiva-estudiantes-derriban-reja-del-metro-santa-lucia/417323/

2 Sebastián Piñera ocupa o 804º lugar na classificação mundial dos milionários estabelecida pela revista Forbes: https://www.forbes.com/profile/sebastian-pinera/?list=billionaires#5270c5aa7a75

3 “Suman 10.000 víctimas más al régimen de Pinochet”, Vladimir Hernández, BBC Mundo, 18 agosto 2011.

4 “Cacerolazo: La canción de Ana Tijoux dedicada a las protestas sociales”, El Observador, 21 octobre 2019. http://web.observador.cl/video-cacerolazo-la-cancion-de-ana-tijoux-dedicada-a-las-protestas-sociales/. O videoclip (ver abaixo) também está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=tVaTuVNN7Zs

5 Gary Medel: “Una guerra necesita dos bandos y acá somos un solo pueblo que quiere igualdad”, 21 outubro 2019, Tele13. https://www.t13.cl/noticia/deportes13/gary-medel-protestas-chile-21-10-2019

6 Entre outras organizações da Unidad Social del Pueblo Chileno: Central Unitaria de Trabajadores (CUT), Coordinadora No Más AFP, Asociación Nacional Empleados Fiscales (ANEF), Confusam, Fenpruss, Confederación Coordinadora de Sindicatos del Comercio y Servicios Financieros, Confederación Bancaria, Sindicato Interempresa Líder, Colegio de Profesores, trabalhadores portuários e Federación de Trabajadores del Cobre y FENATS Nacional. Organizações que aderem ao apelo à greve: Cones, Confech, Chile Mejor Sin TLC, Cumbre de los Pueblos, FECh y Fenapo.