Este artigo pode também ser ouvido no Alta Voz, o podcast de leitura de artigos longos do Esquerda.net. Para isso basta carregar nesta ligação.
A eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos ilustra uma das tendências políticas mais perigosas do mundo atual. Políticos autoritários de extrema-direita chegam ao poder, como Modi na Índia, Orban na Hungria e Bolsonaro (atualmente afastado do poder) no Brasil. Apelam abertamente ao atiçar de sentimentos nacionalistas e racistas e prosseguem políticas reacionárias contra o aborto, os direitos LGBTQI+, com a negação das alterações climáticas, tudo isto num contexto de austeridade neoliberal. A nova administração Trump irá, sem dúvida, perturbar as relações intra-imperialistas, prestará assistência e apoio à guerra de Netanyahu em Gaza e à sua expansão no Líbano, ao mesmo tempo que ameaça transferir o apoio dos EUA à Ucrânia para a Rússia.
Embora tenha reivindicado uma vitória esmagadora, tornou-se claro, à medida que os votos finais foram contados, que Trump, embora tenha ganho a maioria do Colégio Eleitoral, não recebeu a maioria do voto nacional [1]. Porém, Trump e o seu partido, os republicanos, que mantiveram a maioria na Câmara dos Representantes e obtiveram a maioria dos lugares no Senado, tencionam governar como se tivessem uma maioria esmagadora.
Trump concentra todos os poderes
Com uma sólida maioria conservadora no Supremo Tribunal, Trump e o seu partido controlam os três ramos do governo, o que limita a capacidade dos democratas de se oporem às políticas que serão postas em prática. Trump e os seus aliados, incluindo os autores do documento ultra-reacionário do Projeto 2025, poderão assim adotar numerosas medidas reacionárias que vão desde a destruição das proteções ambientais e dos direitos sindicais até à abolição dos direitos reprodutivos, ao aumento da exploração de combustíveis fósseis, ao enfraquecimento do ensino público, o assédio às pessoas LGBTQI+, especialmente às pessoas transgénero, e muito provavelmente um ataque ao Medicare, ao Medicaid – programas federais de saúde para reformados e pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza –, à Segurança Social e às pensões do governo para reformados, criadas em 1935.
Uma nova ronda de reduções fiscais enriquecerá os ultra-ricos e reduzirá os programas públicos. É provável que os estudantes que protestam contra o apoio dos EUA ao ataque de Israel a Gaza, especialmente nas universidades, enfrentem uma maior repressão. E, no futuro imediato, Trump está a ameaçar usar o exército dos EUA e unidades da Guarda Nacional para reunir e deportar milhões de imigrantes sem documentos.
A dispersão da base social dos Democratas
A vitória de Trump é o resultado de vários processos políticos e sociais. Em primeiro lugar, o sistema bipartidário nos EUA, que entrava as tentativas eleitorais de partidos alternativos, cria uma dinâmica em que os governos em exercício são responsabilizados pelos problemas quotidianos, em benefício da oposição. Além disso, durante estas eleições, Harris, atual vice-presidente de Biden, foi visto como representante do status quo e, portanto, como responsável pela inflação persistente e pelas dificuldades dos americanos em pagar as suas faturas quotidianas. A repulsa pelo apoio da administração Biden-Harris ao ataque genocida de Netanyahu a Gaza custou a Harris e aos democratas um apoio fundamental, particularmente no Michigan, onde vive um grande número de americanos de origem árabe.
Estas eleições marcaram também a continuação da dissolução da grande aliança que constituía o Partido Democrata, a dos sindicatos e dos afro-americanos, formada nos anos trinta. As políticas de austeridade neoliberal dos democratas enfraqueceram a sua base eleitoral tradicional a favor dos republicanos, ainda mais neoliberais. Os negros e os hispânicos abandonaram gradualmente o Partido Democrata. O machismo também desempenhou um papel importante: os eleitores masculinos do Partido Democrata, em particular os homens de cor, dividiram-se entre os votos a favor e contra Harris, que é birracial (filha de imigrantes jamaicanos e indianos) e teria sido a primeira mulher presidente dos Estados Unidos. 19% dos homens negros votaram em Trump (em comparação com 5% das mulheres negras), um aumento de seis pontos relativamente ao nível já elevado de 2016. 36% dos homens hispânicos – também um aumento de seis pontos – votaramtr em Trump.
A ameaça racista e guerreira
A eleição de Trump vai certamente reforçar os elementos mais racistas e chauvinistas da sociedade americana. Grupos nazis já marcharam em Columbus, no Ohio, uma cidade com uma grande população de imigrantes haitianos que tem sido alvo de ataques racistas e anti-imigrantes desde que Trump e o seu companheiro de campanha, J.D. Vance, afirmaram, durante a campanha presidencial, que “as pessoas que vêm [do estrangeiro] comem gatos. Comem os animais de estimação dos habitantes”.
Embora a retórica de Trump seja fortemente isolacionista, a sua chegada ao poder aumenta o risco de um confronto militar com o Irão. Os protestos hipócritas da administração Biden sobre a guerra em Gaza darão lugar a um apoio inabalável a Netanyahu em Gaza, na Cisjordânia e no Líbano, e aumentarão o perigo de guerra com o Irão. Ao escolher Tulsi Gabbard para Diretora dos Serviços Secretos Nacionais, Trump demonstrou mais uma vez que é favorável à invasão criminosa da Ucrânia por Putin.
Em termos mais gerais, as tiradas de Trump contra a NATO ameaçam a aliança entre os EUA e os regimes capitalistas e neo-imperialistas da Europa Ocidental, conduzindo a uma maior instabilidade internacional. A obsessão de Trump com o défice comercial com a China e a sua intenção, proclamada em voz alta, de introduzir tarifas, particularmente sobre as importações chinesas, agravará a inflação global para os trabalhadores dos EUA e, com ela, a ameaça de guerra.
As perspetivas para os socialistas
A ausência de um partido político de massas com ligações estreitas ao movimento operário continua a ser um aspeto essencial da especificidade dos EUA e um obstáculo à defesa das conquistas passadas e dos avanços futuros. A construção de um tal partido continua a ser uma tarefa histórica para o movimento socialista dos trabalhadores. Entretanto, socialistas, sindicalistas e ativistas de movimentos sociais nos EUA e em todo o mundo têm a possibilidade e a responsabilidade de construir campanhas de frente unida para resistir ao ataque de Trump ao meio ambiente, aos direitos das mulheres, às minorias LGBTQI+ e racializadas, e continuar a construir um movimento internacional de solidariedade com a Ucrânia e a Palestina.
Quando Trump ganhou o seu primeiro mandato em 2016, as organizações de mulheres convocaram manifestações em todo o país, incluindo uma em Washington, com a participação de um milhão de pessoas. Estima-se que cerca de vinte e seis milhões de pessoas marcharam contra o policiamento racista como parte do movimento Black Lives Matter em 2020. Nos últimos anos, greves impressionantes demonstraram a capacidade de vitória dos trabalhadores e dos seus sindicatos. Estudantes de dezenas de campus universitários enfrentaram a repressão para exigir o fim da guerra genocida contra Gaza e o apoio dos EUA a Israel. Estes exemplos de ação de massas militante são exatamente o que é necessário para lutar contra a agenda política e social reacionária de Trump, dos seus aliados e da classe dominante no seu conjunto.
Nota:
[1] Com 77 milhões de votos, Trump obteve 49,9% dos votos, contra 47 milhões (48,3%) de Harris, sendo os restantes divididos entre Jill Stein (Verdes), Robert Kennedy e Chase Oliver, que obtiveram cerca de 0,5% dos votos.
Kay Mann é professora de Sociologia na Universidade do Wisconsin e membro do Solidarity.
Texto publicado originalmente no Inprecor.