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Todos diferentes, todos animais

De um ponto de vista histórico, sempre menosprezámos os que não considerávamos iguais. Os vencedores impõem os seus valores aos vencidos e a bitola da cultura dominante é usada para medir os graus de civilidade. Assim, para a cultura ocidental, o padrão já foi o homem europeu, branco, detentor de poder que, com base nisso, discriminou as mulheres, os indígenas, as crianças, os velhos, os pobres, os deficientes, os animais, os judeus, os homossexuais. Agora tudo isto nos parece extremamente longínquo e essa postura completamente aberrante, mas não fazemos o exercício completo que é ir à base do preconceito; i.e., mudam apenas as vítimas da discriminação e não a atitude discriminatória propriamente dita. Nós, os humanos, não temos nenhuma capacidade que nos torne particularmente dotados - há quem nos chame o aborto da natureza que, malgré tout, conseguiu sobreviver e dominar - por isso desenvolvemos a palavra e o raciocínio. Organizámos a sociedade de forma a termos as necessidades básicas - como a alimentação e a segurança - asseguradas, para nos podermos dedicar ao desenvolvimento intelectual.
Nós, cidadãos urbanos ocidentais, consideramo-nos mais cultos, mais inteligentes, detentores de um raciocínio mais elaborado do que um pigmeu da selva amazónica que enfia argolas no nariz. Se é verdade que largar um pigmeu numa metrópole será uma operação que ele provavelmente pagará com a vida (atropelado a atravessar a Av. Liberdade para encontrar referências nas plantas dos separadores centrais) ou, pelo menos, com muita dificuldade, por não dominar a semiótica do lugar - não conhece a língua, não percebe a simbologia dos semáforos, os códigos de circulação do trânsito, como é que se arranja comida, o significado do dinheiro, etc.; não é menos verdade que os nossos pergaminhos civilizacionais de pouco ou nenhum uso seriam se nos largassem na selva amazónica: não saberíamos construir um abrigo, seguir um trilho, orientarmo-nos sem sol, evitar as cascaveis; na busca de comida correríamos o risco de ingerir uma planta venenosa, morrer nas mandíbulas de um crocodilo ao lavar as mãos à beira do rio; enfim, se sobrevivêssemos as primeiras 24horas já seria uma lança em África. O que não quer dizer que não tentássemos - nós e o pigmeu, cada um à sua maneira - tentar descodificar esse ambiente hostil e elaborar esquemas de sobrevivência.
Quero com isto dizer que as espécies que resistiram até hoje foi porque conseguiram aplicar-se na interpretação do seu meio e adaptar-se às alterações e aos desafios permanentes que estas constituem, de formas por vezes insólitas.
Isto passa-se com todos os outros animais, como é lógico, independentemente da complexidade dos seus raciocínios lógicos. Os animais de companhia esforçam-se por perceber a nossa linguagem uma vez que vivem connosco: reconhecem diversos gestos, diferentes tipos de chamamento, interpretam a nossa expressão corporal (percebem perfeitamente se estamos com disposição para brincar ou se é melhor passarem despercebidos, se precisamos de mimo por estarmos tristes, se nos estamos a preparar para sair e esquecemos de os alimentar). Comunicam entre si e connosco através de diversos tipos de vocalizações, expressões dos olhos, posição das orelhas, comportamento da cauda e posição relativa do pêlo (acamado é sinal de que estão calmos, meio levantado significa desconforto, e em pé quer dizer que estão altamente desestabilizados - por medo ou fúria, a interpretar em conjunto com outros factores). Não é preciso nenhum estudo científico para validar a experiência que advém da partilha de vida.
Uma das hediondas experiências comportamentais publicadas, demonstra que os ratinhos têm dilemas morais: ao accionar a alavanca da comida, o rato do compartimento contíguo sofre uma descarga eléctrica e o primeiro rato anda literalmente às voltas com o seu problema de fome, porque não quer accionar a alavanca e provocar dor no vizinho.
As abelhas conseguem transmitir uma localização exata através de coordenadas perfeitas. Em Animal Einsteins, Weiss descreve uma experiência feita pelo biólogo James Gould, em que ele leva um grupo de abelhas até um barco repleto de néctar que ele teria ancorado no meio de um lago. As abelhas regressaram pelos seus meios à colmeia e explicaram às outras a localização do "el dorado" descoberto no meio do lago. Assim como se alguém nos dissesse que a dependência x do banco y está a oferecer notas de 500€ novas em troca de notas de 10€ usadas, as outras abelhas não perderam tempo sequer a tentar verificar a veracidade da informação, tal o grau de improbabilidade da mesma. Quando Gould repetiu a experiência, mas colocando o barco junto à margem oposta do lago, e as abelhas fizeram a sua dança de transmissão de coordenadas, as outras imediatamente atravessaram o lago e dirigiram-se ao barco. O psicólogo Marc Hauser interpreta este estudo como exemplificativo de que as abelhas não só conseguem construir mapas mentais através de linguagem simbólica, como utilizam a ferramenta do cepticismo.
Estes pormenores extraordinários só se tornam visíveis a quem observa de perto mas, quando o objetivo é discriminar negativamente, a distância é fundamental.
Somos todos diferentes e o problema não é reconhecer e admitir a diferença, mas sim hierarquizar os outros com base nessa diferença. A inteligência é a capacidade de resolver novos problemas e isso não é exclusivo dos humanos. Aliás, se as capacidades cognitivas fossem razão para o não reconhecimento de direitos, teríamos que largar mão dos deficientes profundos, dos comatosos, dos fetos e das crianças até aos 2 anos que, comparados com as capacidades de qualquer toupeira, saíriam a perder.
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