A garraiada académica é apresentada como um evento tauromáquico de convívio, gargalhadas e representações de coragem. Todos os anos várias Universidades e Politécnicos cumprem a dita “tradição” que se diz do ano de 1875. De raiz monárquica, a garraiada une os estudantes da república portuguesa, ora na praça, ora na arena improvisada, em torno de um garraio e de um(as) cervejinhas fresquinha. A festa académica que não se contenta com a união da música e do baile procura na garraiada uma estranha libertação, que só se completa após horas de empurrões, puxões e um animal muito assustado ou morto. Com farpas nas mãos assim se fazem bons doutores, engenheiros e amigos. Na brincadeira esconde-se o abuso, e se esquecem os fundamentos éticos em que a universidade assenta. Com a palavra “tradição” justifica-se a crueldade, e desvia-se o olhar da moral e dos direitos. Homens e mulheres, que partilham iguais, ou semelhantes, princípios de igualdade nas relações humanas, rejeitam o mesmo princípio para as relações que não pertencem à esfera do que é ser humano. Justificam a discriminação no prazer imediato e na incapacidade de definir o que é a dor, reduzindo o direito apenas a si próprios. A embriaguez do especismo, do conforto e do interesse individualista, impede que se aplique o princípio de igualdade à inflição de dor. Não se tem em consideração a dor que se inflige ao animal, nem se consideram os seus interesses. A amnésia da matéria aprendida nas aulas contamina as mentes, ignorando-se princípios biológicos comuns [sistema nervoso], ao mesmo tempo que se contrariam as posições adotadas nos laboratórios de experimentação animal. Nega-se o direito inegável de se sentir, superioriza-se uma existência face a outra, na mesma premissa em que assentou a escravatura no Império Português até 1878.
No sentido de combater esta descriminação, em 2009 membros do Movimento Universitário de Trás-os-Montes e Alto Douro(MUTAD), do qual fiz parte, reuniram um conjunto de assinaturas que levaram o tema à instância máxima de decisão estudantil daquela Universidade, a Assembleia Geral de Alunos. Uma dura campanha de sensibilização para o problema abriu espaço à possibilidade de se apresentar uma proposta de exclusão da garraiada do quadro festivo da semana académica, e o fim do seu financiamento por parte da Associação Académica.
Denunciando os resultados (agressões selváticas e a morte) destas brincadeiras, o movimento reivindicava um ambiente universitário anti violência contra todos os seres vivos. Procurando promover, ao mesmo tempo, o real ambiente universitário de conhecimento, aprendizagem, cultura, progresso e acima de tudo de civilidade. Um ambiente em que os direitos fundamentais de todos os seres são especialmente respeitados, cultivados e acarinhados.
(Re)desconstruiu-se a tradição académica, numa tradição de crítica, progresso e conhecimento.
Assim se aboliu a garraiada na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), fazendo desta universidade a primeira instância de ensino superior a abolir a garraiada do quadro festivo da sua semana académica.
O MUTAD continuou nas suas lutas, mas o movimento que havia ganho força para combater a garraiada dissipou-se com a vitória. Até que em 2011 o impensável aconteceu.
Replicando os recursos anteriormente usados, um grupo de estudantes aficionados levaram novamente a garraiada à Assembleia Geral, desta vez para que ela retornasse.
Pálidos com a notícia, tentou-se combater a corrente aficionada que emergia. Apesar do facto de o movimento só se ter unido dias antes da votação, a segunda assembleia sobre a garraiada conseguiu levar mais do quadruplo de pessoas que a anterior havia conseguido, e duas vezes mais o numero de pessoas que queriam ver a garraiada excluída da semana académica. Mas desta vez o movimento não estava preparado. Em 2011, depois de uma dura secção de debate, onde os argumentos de quem defendia a sua prática permaneciam iguais, a garraiada voltava oficialmente a ser “tradição”. Com ela a UTAD voltava a olhar para o lado contrário da igualdade e dos direitos. Os homens justificaram a prática na força superior do animal face a sua, as mulheres no gostarem de a ver. Estes argumentos levantaram o outro lado da garraiada enquanto prática híper-sexista e masculinizada. Onde a normatividade da prática assume contornos não só especistas, mas também profundamente construtores da heteronormatividade que asfixia muitos e muitas estudantes daquela universidade.
No dia em que a garraiada teve lugar, também os protesto se fizeram ver. Estudantes e não estudantes protestaram de forma pacífica contra a iniciativa. Atualmente este movimento continua unido, não porque é contra mas porque é pelo avanço. Não luta pela proibição, mas sim pela evolução civilizacional, pela igualdade de direitos e dignidade de todos os seres humanos e não-humanos.
A estes, de Vila Real, já se juntaram estudantes do Porto e de Lisboa, que pelas redes sociais tem discutido formas e agir e de lutar localmente nas suas Universidades. É este o movimento que se quer, unido e crescente.