As tarefas de João Semedo

porFrancisco Louçã

As duas últimas batalhas - uma nova lei do SNS e a morte assistida - foram as mais difíceis e não conseguiu ganhá-las. Mas não as perdeu. Deixou sementes.

23 de julho 2018 - 23:20
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Já sabíamos, mas como custa que nos morra um companheiro, combativo como poucos: quando o João percebeu que o cancro o tinha vencido, ainda assim nunca desistiu de puxar pelos outros. Ainda há poucos dias acompanhou o debate sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e foi trocando mensagens com vários amigos sobre como proteger a joia da democracia. Conseguir, ele era um homem de conseguir e de nunca desistir.

Uma história ilustre

Como se lembrou neste jornal, ele arregaçou as mangas no apoio à população vítima das cheias de 1967. O que teria dito aquela calamidade a um jovem de 16 anos? Foi assim que percebeu o que era o fascismo, aprendeu mesmo. Estava então já a chegar à Faculdade de Medicina, onde viria a ser dirigente associativo, no caminho esteve preso em Caxias. Ele lá estava, naqueles plenários de homéricas discussões entre correntes políticas antifascistas em Santa Maria, não sei o que teria dito, mas viveu certamente a intensidade desse tempo. Estava, conseguiu. Fez-se à vida, conheci-o depois diretor de hospital, político experimentado. Foi-me apresentado pelo Miguel Portas, que habitou ideias e vontades comuns, com diferenças de geração e com picardias, muita amizade à mistura, naquela lealdade que se forja no sentido comum. O Miguel pediu ao João que representasse os seus amigos no dia em que faltasse.

Semedo foi militante comunista, dirigente, funcionário, nunca cortou a ponte de amizade e camaradagem, sentia-se bem com quem tinha o mesmo coração. Muitos dos seus companheiros do passado estiveram no velório e contaram aquelas histórias apaixonadas de quando discutiam com o seu controleiro um texto ou uma intervenção difícil. Ficou amigo de todos.

Construtor do Bloco de Esquerda, ele sabia como era difícil transformar a esquerda, que conhecia como poucos, mas nunca lhe vi um sinal de abandono. Conseguir, fazer, juntar, aprender, ele sabia por onde ia. Disse, numa entrevista no fim de vida, que foi feliz, fez as escolhas que importam, encontrou quem conta, nunca foi contra o seu instinto, nunca fez nada de que discordasse — e se isso é a definição da liberdade! — e prosseguiu procurando na energia da vontade a força física que lhe faltava. Quem partilhou com ele algum momento dessa vida sabe como gostava de abraçar os amigos, de acompanhar a Ana Maria e o Miguel, seu filho, foi assim que fez o seu tempo.

O que fica por fazer

As duas últimas batalhas de João Semedo foram das mais difíceis e não conseguiu ganhá-las. Também não as perdeu, deixou sementes de soluções que se impõem e que vencerão, mas já não foi com ele, tudo continua.

A última foi a da morte assistida, o direito a escolher o seu tempo para morrer com dignidade quando já é inevitável. Falou com todos, estudou, mobilizou, juntou, fez pontes. Era nisso que era extraordinário. Cinco votos faltaram. A lei que será um dia aprovada terá sempre o seu nome.

A batalha do SNS está ser travada agora mesmo. Era a preocupação da sua vida e, com Arnaut, não hesitou em mostrar os riscos: “O Serviço Nacional de Saúde vive uma crise indisfarçável. Julgamos mesmo que, em rigor, pode dizer-se que há muito que esses limites foram ultrapassados, sobrevivendo o SNS à custa da entrega abnegada dos profissionais de saúde aos seus doentes e serviços. O SNS está em regressão e declínio. Nos últimos anos, tem sido vítima de um arrastado processo de degradação e degenerescência: degradação do seu funcionamento e da resposta às necessidades dos seus utentes, degenerescência dos seus princípios fundadores. Se nada for feito para suster e inverter esta curva descendente, o SNS deixará de ter condições para continuar a ser o garante do direito à saúde e, onde hoje temos um direito reconhecido e consagrado, passaremos a ter apenas negócio e nada mais do que negócio”, escreveram numa mensagem que publicaram no último 25 de Abril.

Foi por isso que Semedo e Arnaut propuseram uma nova lei de bases. Sabiam que não seria fácil e que mesmo dentro das instituições a gangrena vai avançada: “Surpreende por isso e causa-nos profunda inquietação a atitude facilitista e despreocupada e, até, algum tom desculpabilizante, por vezes muito próximo do autoelogio, dos responsáveis pela política de saúde.”

Estavam convencidos de que esta lei é necessária: “Ou a democracia acaba com o assalto dos grupos privados ao SNS ou estes vão concluir o que puseram em marcha há 30 anos: o desmantelamento do SNS. (...) Por isso apresentámos recentemente a proposta de uma nova Lei de Bases da Saúde. Da atual já nada há a esperar, a direita fez dela a sua plataforma para assaltar o SNS — a livre concorrência entre público e privado, a privatização da prestação de cuidados e da gestão dos hospitais públicos, o subfinanciamento, o fim das carreiras profissionais, a precariedade e a desregulação laborais, o desvio de profissionais e de outros recursos, os hospitais-empresas, as PPP, a desvalorização da saúde pública, a secundarização da promoção da saúde e da prevenção da doença, a gestão centralizada e a incapacidade de reformar e modernizar o SNS.”

Ambição imensa, essa de conseguir refazer “um SNS universal, geral e gratuito, de gestão integralmente pública, cuja prestação de cuidados obedeça a padrões de qualidade e humanidade e que se relacione com as iniciativas privadas e sociais na base da complementaridade e não da concorrência. Em resumo, o que pretendemos é uma Lei de Bases da Saúde em linha com a lei do SNS, a lei de 1979”. Não é pouco, é tudo. Era o que lhe pediam colegas e utentes do SNS. Era o sentido da sua vida. É a tarefa que nos deixou.

Artigo publicado no “Expresso” de 21 de julho de 2018

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