Quando entrei para o Bloco o João Semedo já lá estava, e mal podia imaginar que, quatro anos mais tarde, seria dele o telefonema que me traria para o Parlamento. Passaram mais cinco anos e é agora, enquanto faço as contas ao tempo, que tomo consciência do tamanho do seu contributo.
O João Semedo era meticuloso e determinado, quase obstinado. Escrevia em vários cadernos de apontamentos, acho que quase sempre com as mesmas canetas. Um para cada tema, um para o agora e outro para o depois, um para factos outro para ideias. Era assim que o via preparar-se para as comissões de inquérito que o tornaram tão conhecido. "O Diabo está nos detalhes", dizia, e por isso fazia aqueles esquemas enormes, com as datas, os nomes, as ligações. Por isso me lembro dele a trabalhar pela noite dentro, quando mais ninguém o fazia, e já toda a gente tinha saído.
Tinha um jeito próprio de fazer política, tranquilo, afável, mas nem por isso menos certeiro. Fazia-o porque era o seu jeito, mas também porque sabia que as coisas mais duras devem ser ditas com calma. E a verdade é que quase ninguém, mesmo em campos políticos distintos, resistia à sua gentileza atrevida.
O João Semedo construía pontes com talento, unia gente diferente em torno das coisas mais importantes, como bem vimos nos encontros da Aula Magna. Fazia-o como ninguém, porque podia. Porque não tinha paciência para sectarismos, e porque era precedido pela sua reputação de competência e honestidade.
Esteve 9 anos na Assembleia da República e, do testamento vital à Carta dos Direitos dos Utentes do SNS, não haverá muitos deputados com um legado tão concreto e consistente. Deixou o Parlamento em 2015 e foi já doente que organizou duas das mais importantes disputas do nosso presente: o direito a morrer com dignidade e uma nova Lei de Bases do SNS.
Mostrou-nos que a política não se resume aos cargos, ao protagonismo nem ao poder vazio. É uma forma de viver, um compromisso, e é vontade de construir liberdade e justiça, até ao fim. Obrigada. O privilégio foi todo nosso, João Semedo.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 24 de julho de 2018