Obrigada, João

Teve intervenção política por inteiro até ao fim. Perguntou, sugeriu, alertou. Discutimos tudo o que ia acontecendo, nenhum tema deixou de o ocupar.

22 de julho 2018 - 11:50
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Quando conheci o João Semedo, ele era o rosto da denúncia do gangsterismo financeiro do BPN. O país conhecia horrorizado o assalto financeiro perpetrado pela elite cavaquista e o João não deixava pedra sobre pedra. Ponderado, exato, determinado.

O João que passava os dias em comissão parlamentar de inquérito era o mesmo que passava os fins de semana no Porto a dirigir campanha, dar-nos força, distribuir tarefas, fazer propostas, inventar caminhos novos, juntar gente. Uma energia inesgotável e aquele sorriso ternurento, mesmo quando confessava estar “estoirado”.

A política, esta coisa de tomar em mãos a responsabilidade coletiva de desenhar futuro, de disputar relação de forças para construir caminhos novos, é o que contava para ele. Queria fazer, transformar, não se contentava com palavras ocas. E o João foi incansável nessa tarefa de fazer. Juntou gente e construiu pontes.

Quando coordenamos o Bloco em conjunto, logo no primeiro dia após a Convenção em que fomos eleitos, reunimo-nos e o João disse-me: agora temos de decidir como vai ser isto depois de nós. E assim foi. Antes da Convenção já tínhamos passado horas a “pensar sobre isto”, depois passámos a pensar sobre isto agora e o que vai ser a seguir. Passámos momentos difíceis e partilhamos decisões ainda mais difíceis. Mas fizemos os dois, mesmo quando não concordamos em todos os detalhes, e não sei se teria sido possível partilhar aquele caminho com mais alguém. O João não só teve a generosidade de se colocar numa situação quase impossível como também a enorme disciplina de saber que o partido é mais do que qualquer um de nós e que a nossa responsabilidade é muito maior do que a resposta à nossa circunstância. A sua política não era do autocontentamento, da tomada de posição, do discurso. Ele construía e era forte e grande na vontade de abrir portas, de fazer caminho.

O João respondeu pelo presente e pelo futuro. Defendeu um Serviço Nacional de Saúde centrado nos utentes e capaz de responder pela dignidade nos momentos de maior vulnerabilidade. Pela sua mão passou a ser possível ter companhia quando se recorre às urgências, conhecer e exigir o cumprimento de tempos de espera no acesso à saúde, saber o preço dos medicamentos, optar pelos genéricos, levar a medicação necessária para casa depois da alta médica. Defendeu o direito das mulheres ao aborto legal e seguro e o alargamento do acesso às técnicas de procriação médica assistida, bateu-se contra todas as discriminações e por um SNS que fosse garante de igualdade e de avanços. Devemos-lhe o Testamento Vital e o caminho que nos trará, mais cedo do que tarde, a despenalização da eutanásia.

Quando as causas fraturantes ainda não tinham nome, já o João quebrava rotinas e preconceitos para garantir direitos. Como médico, nos anos 90, trabalhou com toxicodependentes e um pouco mais tarde, já a dirigir o Hospital Joaquim Urbano, inovou no tratamento do VIH, da SIDA e das hepatites.

Antes disso, antes mesmo de eu nascer, já tinha apoiado as vítimas das cheias de 67, construído movimento estudantil, combatido a ditadura. Foi militante comunista, e já depois do 25 de abril participou na alfabetização de adultos, fundou o FITEI e o Sindicato dos Médicos do Norte. Foi diretor da Cooperativa Árvore, que o recebeu na despedida desta semana. Construiu o Estado Social na intervenção política e como médico. Nunca despiu nenhuma das suas condições: médico de profissão, ativista político de convicção. Em qualquer dos casos, a cuidar agora e a cuidar do futuro. A cuidar de quem está vulnerável, na ação política e em cada encontro da vida.

Para o João a vulnerabilidade nunca foi fraqueza, mas condição de ser humano. Não conheço muitas pessoas que amparem ombro a ombro quem está mais vulnerável. O João era assim. Andou sempre de braço dado. Parece-me que será isto a fraternidade.

Não foi preciso estar doente para o João se colocar na posição de quem está nessa condição de especial vulnerabilidade. E talvez por isso nunca escondeu a sua doença. Nem estar doente o paralisou.

No último ano, já depois da notícia de que o cancro tinha regressado e que tudo seria mais difícil, escreveu a proposta de Lei de Bases da Saúde que publicou com António Arnaut e foi motor do movimento pela despenalização da eutanásia. Juntou gente, correu o país em sessões públicas, fez livros. Nada o podia calar e ele queria deixar o trabalho feito, as batalhas planeadas, a vontade forte.

Teve intervenção política por inteiro até ao fim. Perguntou, sugeriu, alertou. Discutimos tudo o que ia acontecendo, nenhum tema deixou de o ocupar. Por bicuda que fosse a questão, se “pensássemos sobre isso” haveríamos de encontrar uma saída. Foi sempre assim desde que nos conhecemos e nunca deixamos de pensar os dois sobre o que se passava dentro e fora do país, dentro e fora do Bloco.

Quando já não havia esperança de boas notícias sobre a sua saúde, deixou de falar disso e eu também. Era a única questão em que por muito que “pensássemos sobre isso” não chegaríamos a lado nenhum. Mas continuamos a conversar sobre tudo o resto. Quando o João já estava muito cansado, preocupava-se em garantir que eu não estava. Gostava das visitas, mas eu que me poupasse e que voltasse a casa a tempo de jantar com as miúdas. Fui-lhe garantindo que sim. Só não consegui preparar-me para esta coisa estranha de o João não estar, logo agora que eu estou mesmo a precisar de “pensar sobre isto” de ele não estar.

Artigo publicado no “Expresso” de 21 de julho de 2018

Termos relacionados: João Semedo (1951-2018)