João

porMarisa Matias

O generoso João garantiu que seríamos muitos mais do que pensávamos a ter essa consciência e prontos para assumir essa responsabilidade.

23 de julho 2018 - 13:29
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Os floristas da Rua da Alegria, no Porto, receberam uma encomenda de cravos vermelhos para o dia seguinte e não havia cravos vermelhos. Pediram para que lhes enviassem alguns do Montijo, onde havia 20, de maneira a estarem no Porto no dia 18 de Julho. Assim foi, chegaram no dia marcado. A pessoa que os encomendou foi buscá-los pela manhã. Ela queria-os todos soltos, para que pudessem, assim livres, passar de mão em mão. Quando foi buscar os cravos, os floristas da Rua da Alegria perguntaram-lhe algo parecido com isto: “desculpe a pergunta, estes cravos são para o funeral do Dr. João Semedo?”. A mulher anuiu que sim. Os floristas da Rua da Alegria não aceitaram um cêntimo pelos cravos, os últimos que encontraram, e que tinham mandado vir no dia anterior do Montijo. Nem pensar. Os cravos eram para o Dr. João Semedo e eles queriam oferecê-los, não havia discussão possível. Os cravos que alguns e algumas de nós levámos na mão eram a prenda dos floristas da Rua da Alegria.

Os amigos que partilharam o hospital com o João, os tratamentos, as dores e construíram amizades improváveis, lá estavam todos em grupo. Estiveram no velório e seguiram caminho até ao crematório. Eram os amigos que, com ele, perderam o som da sua própria voz, mas não a capacidade de falar, o sorriso ou as lágrimas, e lá estavam. Deram abraços. Traziam na cara o orgulho de “era um dos nossos”. Repetiram várias vezes: “ele esteve connosco”.

No cemitério, entrou de rajada a senhora de avental vestido e flor em punho. A senhora, que tão familiar se sentiu, que foi despedir-se sem tirar o avental que trazia de casa. Aproximou-se do caixão, pousou a mão, deixou a flor e disse, com aquele maravilhoso sotaque que sabe a Porto, “o povo do Porto também nunca se esquecerá de si”.

A senhora que estava na fila para assinar o livro de condolências. Quando estava a chegar a sua vez, alguém lhe diz: “avance, é a senhora”. A senhora da fila do livro de condolências disse: “não, eu vou depois, preciso de reflectir mais nas palavras”. A senhora contou que trabalhou com o João Semedo no Hospital, que ele tratava toda a gente por igual e que ajudou muita gente. A senhora da fila, de olhos marejados, queria escolher as palavras certas e ia esperar o tempo que fosse até encontrá-las.

O senhor que, no dia 19, chegou ao terceiro andar do Teatro Rivoli. Saiu do elevador e as lágrimas caíram-lhe sem passar pelo rosto. Esteve assim alguns minutos, depois enxugou-as e sorriu para a fotografia do João que estava no palco. Serenamente, foi procurar um lugar para assistir à homenagem.

Não conheço nenhuma destas pessoas, não sei os seus nomes, nada das suas vidas, e nelas vi tudo o que nos uniu nos dias em que nos tentámos despedir do João Semedo. Tristeza, emoção, solidariedade, teimosia, afectos, coragem, negação e superação. Estávamos todos a dizer “até sempre”, ninguém estava ali para dizer adeus. O teimoso João deixou-nos muito que fazer. O generoso João garantiu que seríamos muitos mais do que pensávamos a ter essa consciência e prontos para assumir essa responsabilidade. Querido João, estamos prontos.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” em 22 de julho de 2018

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