Stefano Palombarini é economista, professor e investigador na Universidade de Paris VIII. É membro do “Parlamento da União Popular” que, sob a presidência de Aurélie Trouvé, juntou intelectuais, sindicalistas, militantes dos movimentos sociais e responsáveis da França Insubmissa no quadro da campanha presidencial de Jean-Luc Mélenchon. É igualmente autor, junto com Bruno Amable, da obra L’illusion du bloc bourgeois (Raisons d’agir, 2017) que analisa o neoliberalismo na imbricação das suas dimensões económica, política e sociológica.
A força da sua argumentação reside na proposta de uma interpretação de conjunto da sequência longa que se abriu com a viragem para o “rigor” de Mitterrand em 1982-1983 e na sua análise da evolução da esquerda em direção ao social-liberalismo, depois em direção a um “bloco burguês”, expressão orgânica de uma reforma neoliberal que reconstruiu profundamente a sociedade francesa.
Ao mesmo tempo diagnóstico do falhanço da esquerda de governo e antecipação do macronismo, esta obra traça o caminho de uma alternativa que passa por colocar em causa o quadro da integração europeia e a rutura com as políticas de acompanhamento do neoliberalismo. Nesta entrevista, Stefano Palombarini examina as hipóteses formuladas à luz dos resultados da eleição presidencial de crescimento de uma esquerda de rutura construída à volta de Jean-Luc Mélenchon e a reconfiguração da paisagem política desencadeada pela constituição da NUPES.
Stathis Kouvélakis
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Sucessos e fraquezas do bloco burguês
Emmanuel Macron acabou por ser reeleito. A este nível as coisas passaram-se como previsto. Pode-se falar de uma vitória do “bloco burguês” tal como o tinhas analisado em conjunto com Bruno Amable? Para dizê-lo de outra forma, quais são, no teu entender, as perspetivas da reforma neoliberal em França?
Não é exatamente o mesmo bloco que em 2017, no sentido em que não se trata da mesma aliança social e de que também não é exatamente a mesma estratégia usada para a unificar. Do ponto de vista da estratégia política, a continuidade entre 2017 e 2022 reside na centralidade da questão europeia e da reforma neoliberal. O outro elemento de continuidade é a estrutura da aliança social, essencialmente ancorada nas classes médias e superiores. Basta olhar para os dados eleitorais por categoria de rendimentos: a configuração é muito simples, quanto mais se sobe na escala de rendimentos mais o voto Macron na primeira volta é importante. Continua assim a ser um bloco burguês.
O que mudou foi que Macron em certo sentido antecipou a crise da direita. Fez uma boa análise, a mesma que fizemos no nosso livro, a saber, que o falhanço da direita em 2017 não se deveu aos escândalos de Fillon e a outros fatores contingentes deste tipo. Havia uma crise estrutural do bloco da direita da qual Macron pensou aproveitar-se para ampliar a base do que era e continua sendo um bloco socialmente minoritário.
O problema do perímetro reduzido da sua base colocava-se a Macron em 2017 e coloca-se de novo em 2022. A estratégia que ele seguiu durante o seu mandato visava beneficiar da crise da direita e alargar a sua representação nesta direção.
Para o dizer sinteticamente, o “progressismo” do Macron de 2017, que lembrava o Tony Blair dos inícios, foi completamente esquecido. Ao nível do discurso, da ideologia, houve a reabilitação de Pétain, a proximidade declarada com Philippe de Villiers e muitas outras mensagens deste tipo. Mais concretamente, tivemos uma política que atacou as liberdades públicas, os direitos individuais e reprimiu de forma violenta os movimentos sociais.
O que é preciso ver é que esta política repressiva, que teve efeitos muito concretos, estava também pensada para enviar sinais ideológicos. Do ponto de vista do poder, dominar um movimento social como o dos coletes amarelos era necessário; mas houve uma espetacularização deliberada da sua repressão violenta. O mesmo se passou com a destruição das tendas dos migrantes e a evacuação da praça da República, não era uma obrigação mas uma mensagem destinada ao eleitorado de direita. No mesmo sentido, houve a campanha contra o “islamo-esquerdismo”, a manutenção de ministros como Blanquer e Vidal na educação e investigação ou de Darmanin no Interior.
O efeito desta viragem na composição do bloco social macroniano foi um claro crescimento no eleitorado de direita. Em 2017, metade do eleitorado de Fillon era composto por reformados que representaram 43% do eleitorado em 2022. Assim, a estrutura do bloco burguês renovou-se. É preciso também assinalar que o bloco burguês que tinha permitido a vitória de Macron há cinco anos atrás era composto por metade de antigos eleitores PS. Poder-se-ia pensar que um presidente que seguiu deliberadamente uma estratégia de direita tivesse sofrido perdas desse lado. Efetivamente perdeu alguns votos mas, no fim de contas, não muitos.
Este eleitorado saído da esquerda que ele conseguiu manter vem sobretudo das camadas abastadas que antes votavam pelo Partido Socialista. Por outro lado, ainda que Macron recue um pouco mantém uma base nas categorias populares, nos operários e trabalhadores não manuais. Esta fração de classe é, claro, reduzida, mas não é negligenciável, é mesmo superior à da direita tradicional em 2017. E esse é o pequeno extra que lhe permite no final de contas triunfar nas urnas. Como explicar o facto de 16% a 18% dos operários e trabalhadores não manuais continuem a apoiar Macron?
É difícil explicar. Em 2017, cerca de 12% pontos do total eleitoral de Macron vinha do PS. Ele perdeu dois ou três mas manteve o essencial. Neste eleitorado, há também uma componente popular, ainda que a maior parte venha de categorias burguesas. Uma hipótese consistiria em dizer que é um eleitorado que vive numa espécie de mundo virtual no qual Macron surge como continuador da história socialista, como representante do progresso face à direita.
Uma outra forma de interpretar este fenómeno, a meus olhos melhor fundada, é ler a situação como o anúncio de eventual evolução à italiana da situação francesa. Num tal cenário, a esquerda colapsaria de vez, a crise do bloco de direita continuaria, e teríamos um sistema bipolar, com, de um lado, o bloco burguês e, do outro, uma alternativa construída em torno da extrema-direita.
Poder-se-ia dizer assim que, de certa forma, estas pessoas que veem ainda em Macron alguém que vai defender as liberdades, o progresso etc., são completamente cegas ou, em sentido contrário, que antecipam um movimento que se poderá produzir nos próximos anos. Por outro lado, houve fatores específicos nesta campanha, ligados à pandemia e à guerra na Ucrânia. Agrupar-se à volta do poder quando se está ameaçado por crises deste tipo é um reflexo muito clássico.
Uma nova viragem para a extrema-direita?
Falemos da extrema-direita. No livro co-escrito com Bruno Amable, analisas o distanciamento do neoliberalismo empreendido pela extrema-direita durante os anos 1990, que se acentua quando Marine Le Pen assume a liderança do partido. No entanto, a Marine Le Pen de 2022 não é a Marine Le Pen de 2017. Já não se trata de sair do euro. Ela assumiu que quer pagar a totalidade da dívida francesa. A abolição da lei El Khomri já não se encontra no programa de 2022. Ela recuou na reforma aos 60 anos e as suas medidas sobre o poder de compra não passam de cortes nas contribuições para a Segurança Social e certos impostos que nem sequer dizem respeito às classes populares. Como analisas esta nova viragem? E quais foram as consequências para a campanha e o resultado da candidata da União Nacional?
De facto, a comparação dos programas sugere uma viragem. Na realidade, a mobilização da Frente Nacional relativamente à perspetiva neoliberal ocorreu durante o mandato de Nicolas Sarkozy. Em 2017, a saída do euro já não estava na ordem do dia. A estratégia de Le Pen é simétrica à de Macron. Ambos partem da constatação da derrocada da direita tradicional. A partir daí, Le Pen implementa a normalização da extrema-direita, com o abandono de temas que assinalam uma rutura relativamente à ordem existente. Esta normalização visa permitir-lhe aceder a uma parte do eleitorado de direita.
Este movimento corresponde também, como dizia há pouco, à ideia de sistema neoliberal completo, no qual não haveria mais oposição relativamente às formas institucionais dominantes. Teríamos então um sistema à americana, no qual a “esquerda” designa aqueles que têm mais abertura à troca de bens, circulação de pessoas e isso também no plano cultural, enquanto que a “direita” seriam aqueles que se reconhecem mais em temas identitários com, eventualmente, uma componente protecionista. A alternância entre a “esquerda” e a “direita” deveria fazer-se nestas bases sem meter em causa fundamentalmente a arquitetura institucional neoliberal.
Esta é a perspetiva de Le Pen e também se vê isto nesta campanha legislativa. Macron tudo fez no decorrer do primeiro mandato para apresentar a extrema-direita como o seu adversário legítimo, Le Pen faz o mesmo hoje indicando que é normal que, tendo ganho as presidenciais, Macron disponha de uma maioria no parlamento que lhe permita governar. As duas estratégias validam-se reciprocamente e empurram na mesma direção, a de um sistema neoliberal completo e de um clivagem “esquerda”/“direita” que corresponda a esta configuração.
Há elementos no voto da primeira volta que vão no sentido de uma tal visão, nomeadamente a derrocada do bloco de direita que tinha dominado a vida política francesa desde o fim da segunda guerra. Este bloco era uma aliança que combinava uma componente burguesa e uma popular. Deu lugar a dois blocos quase complementares: de um lado um bloco burguês que integra igualmente uma componente popular minoritária e, do outro, um bloco de extrema-direita, pelo menos o que se agrega à volta de Marine Le Pen, que tem uma componente popular muito mais forte.
O facto de Marine Le Pen assumir agora o abandono da sua oposição ao neoliberalismo e apostar num sucesso de Macron nas legislativas não pode ser lido também como uma reação ao crescimento da esquerda ao redor de Mélenchon e à constituição da NUPES? Não é preciso ver aí um sinal enviado ao bloco burguês para dizer: “não colocamos em causa as vossas políticas públicas e, para nós também, o inimigo é uma esquerda que se reforça e que reagrupa através de uma linha de rutura incarnada por Mélenchon”. Não é uma espécie de piscar de olhos dirigido a Macron cujo sentido é “escuta, temos o mesmo inimigo mas é a tua vez de jogar para o bater”?
Numa entrevista à revista Positions em março de 2021 tinha dito que se continua a haver um cordão sanitário republicano em França é contra Mélenchon, contra a esquerda radical. Vê-se bem que o inimigo número um de Le Pen não é Macron mas a esquerda. O sistema mediático trabalha no mesmo sentido: qualquer acontecimento, mesmo o mais insignificante, será explorado a fundo contra a esquerda. Esta atitude explica-se pelo facto de que há um conflito entre por um lado a esquerda de rutura e, por outro, Le Pen, Macron, e todos os apoios do neoliberalismo que não se situa simplesmente nas escolhas fundamentais em matéria de política pública mas na estruturação do conflito político por vir. Como em todas as situações de crise política, o conflito não se faz simplesmente entre propostas diferentes no interior de um terreno de jogo consolidado mas faz-se também sobre a própria definição deste terreno.
Há um interesse objetivo comum entre Le Pen e Macron de caminhar no sentido de um sistema estruturado à volta de um “polo do progresso” e um “polo identitário”, movendo-se os dois num quadro institucional partilhado. O que obstaculiza esta dinâmica é a presença de uma esquerda de rutura que se junta à volta da França Insubmissa. Ainda que não tenha conseguido estar presente na segunda volta das presidenciais, os resultados de Mélenchon em 2012, 2017 e 2022 mostram uma subida da esquerda de rutura. É assim uma contra-tendência relativamente à transição neoliberal e um verdadeiro problema político para quem a quer implementar.
Se nos colocarmos na perspetiva de Macron e Le Pen, é preciso antes resolver o conflito sobre a estrutura do conflito político antes de poder verdadeiramente combater entre si. E o seu adversário comum nesta luta sobre a estrutura do conflito é a esquerda.
A emergência de uma esquerda de rutura
Não pensas que a constituição da NUPES perturba desde já de forma muito séria este cenário? O facto novo é que agora surge claramente que o inimigo comum de Macron e de Le Pen é a esquerda. E é esta força ascendente, agrupada à volta do seu ator principal, Mélenchon e a França Insubmissa, que desafia o quadro neoliberal enquanto tal, ao ponto de reivindicar uma maioria nas próximas legislativas. Independentemente da vitória desta “aposta da terceira volta” da NUPES não se encontra uma reconfiguração do conflito político e talvez o regresso a alguma coisa mais próxima do conflito clássico esquerda/direita?
Penso que está em aberto. Constatei, tal como tu e outros o fizeram, os três polos que se desenvolveram na primeira volta das presidenciais. A minha análise consiste em dizer que, a prazo, em alguns anos, destes três polos com um peso equivalente só continuarão a existir dois. Há assim duas perspetivas abertas. A primeira é a que tentei esboçar antes e que passa pela derrota da esquerda de rutura. A outra passa, pelo contrário, pela sua afirmação. Se o bloco da esquerda de rutura se consolida, então, mecanicamente, as posições de Le Pen e de Macron vão-se aproximar ainda mais. Teremos um bloco neoliberal com, no seu interior, nuances identitárias e outras que o são menos. Mas, enfim, quando se olha para um Blanquer ou um Darmanin pergunta-se o que os impediria de se tornarem ministros de Le Pen.
Se a esquerda da rutura se afirmar, voltaremos a uma clivagem direita/esquerda mas no sentido de uma direita neoliberal face a um esquerda anti-liberal que propõe algo diferente do neoliberalismo. Neste sentido, propondo constituir-se uma aliança de esquerda, Mélenchon e a França Insubmissa estiveram muito bem. Porquê? Porque se o primeiro esquema se impusesse, os socialistas e o ecologistas tornar-se-iam satélites de um bloco “progressista” burguês. E como a situação está em aberto, se colocarmos estas forças numa aliança com a esquerda de rutura afastamo-las do planeta Macron.
Ao mesmo tempo, aquilo que não sabemos é se, do ponto de vista destes partidos, se trata de uma aliança com uma verdadeira ambição estratégica e programática ou apenas um acordo tático para salvar a casa depois de uma pesada derrota. Se é apenas para eleger alguns deputados, vamos vê-lo muito rapidamente.
Será que estes deputados socialistas, ecologistas e até comunistas se irão envolver numa ação parlamentar comum na perspetiva de uma aliança estratégica? Será o programa da NUPES uma verdadeira base para governar ou até para conduzir uma oposição comum a Macron? Ou, uma vez eleitos, cada um irá para o seu lado?
Deixaste entender que o termo “esquerda antiliberal” não te satisfaz, que se trata de uma esquerda que propõe uma coisa diferente do neoliberalismo. Mas em que consiste essa “outra coisa”? Para dizê-lo de outra forma, que propõe a força dominante atualmente à esquerda, a incarnada por Mélenchon e pela França Insubmissa? De que tipo de objeto político se trata?
Disse que a França Insubmissa, a União Popular, não podem ser qualificadas simplesmente de “esquerda antiliberal”. Têm um programa estruturado como raramente se viu na história política francesa e até para além dela e sobre o qual um trabalho enorme já foi feito. Penso que uma reação eficaz à trajetória neoliberal passa por este trabalho, uma vez que não se trata apenas de o travar ou de o enfraquecer mas de mostrar possível um outro caminho.
O programa da França Insubmissa e da União Popular parte do que é quase da ordem da constatação. Seja do ponto de vista da produção, das condições de trabalho e de vida dos trabalhadores, dos equilíbrios ecológicos e do futuro do planeta, a máquina neoliberal que está em funcionamento desde há quase meio século conduziu-nos a uma situação insustentável. Peguemos no exemplo do ciclo da água que é citado frequentemente por Mélenchon. Alguns pensam que é bizarro falar dele, o tema parece afastado das preocupações imediatas dos franceses. Mas a realidade é que neste verão metade da França estará em seca. Poder-se-iam multiplicar os exemplos deste tipo que mostram que, objetivamente, não se pode imaginar mais um meio século de trajetória neoliberal sem uma série de crises maiores.
Parte-se então desta constatação para se desenvolver uma consciência partilhada. Hoje há um sentimento difuso de insatisfação e de perigo mas ainda não há a consciência política que um ciclo chega ao seu fim. É algo que se deve construir e este processo baseia-se na compreensão da origem de uma trajetória que nos permita evitá-lo e de que não sairemos através de medidas de acompanhamento.
É por isso que chamo a esta esquerda uma esquerda de rutura. Há 30 ou 40 anos poder-se-ia pensar que era possível resolver a questão ambiental andando mais devagar com o carro, baixando o aquecimento, talvez até enviando menos e-mails como propõe a nova ministra da Transição Energética. Estas são medidas de acompanhamento que têm um impacto real mas que não podem mudar a trajetória. A partir de agora sabemos que os efeitos das alterações climáticas são irreversíveis sem uma mudança radical na organização do conjunto das relações produtivas, nos modos de consumo e na relação com a natureza. A meu ver, o mérito de Mélenchon e da França Insubmissa foi ter aberto portas à construção de uma alternativa credível à trajetória neoliberal. Alternativa não apenas no sentido dos interesses sociais que defende mas também, segundo a expressão de Mélenchon, do interesse geral humano. Trata-se de transmitir esta ideia que há uma trajetória que nos faz esbarrar todos contra um muro e que há um interesse coletivo em bifurcar.
Sem dúvida, mas também há interesses poderosos que se opõem a esta bifurcação, o que coloca a questão do horizonte desta rutura. Trata-se de uma rutura que nos conduz a algo de qualitativamente diferente do capitalismo? Neste caso, pode-se conceber o programa do "Futuro em Comum" como aquilo que, numa certa tradição, se chama um programa de transição?
Tal como existe hoje, e falo do que é real e não dos meus desejos, este programa não é um programa de saída do capitalismo. É um programa que pode eventualmente abrir caminho a uma saída do capitalismo mas não necessariamente. Trata-se de um conjunto de medidas radicais, de rutura, que é preciso adotar urgentemente; ao mesmo tempo, integrar num programa de governo um certo número de imperativos obriga a repensar as relações de produção e a organização social de conjunto. O programa está aí, se amanhã formos levados a governar, veremos o que faremos. Mas o que faremos amanhã coloca-nos perante uma reflexão coletivamente que poderá abrir caminho a uma saída do capitalismo. A melhor etiqueta que se pode colocar neste programa é, de facto, que é um programa de transição. Mas em direção ao quê? Isso dependerá de quem se mobilizar.
Fazer frente à União Europeia
Falemos um pouco mais precisamente dos interesses sociais, de classe, que se opõem a este “interesse geral humano” e que são, eles também, humanos no sentido em que as classes dominantes são igualmente constituídas por seres humanos e não robots ou máquinas. Há uma forma institucional que os cristaliza e agrupa ao nível do nosso continente, a União Europeia. Um dos pontos fortes da análise que empreendeste com Bruno Amable foi demonstrares que a integração europeia não é apenas um projeto que permitiu coordenar e bloquear a partir de cima as políticas neoliberais. Permite igualmente legitimá-las e criar as condições da sua aplicação. À escala do continente, a reforma neoliberal é desta forma apresentada enquanto projeto europeísta, um projeto moderno, de ultrapassagem do velho mundo dos Estados-nação e de reconfiguração radical do sistema política. Tornada um pilar deste projeto, a trajetória da social-democracia conduziu à desintegração do bloco social da esquerda e, em França, à deriva de uma parte desta para o “bloco burguês”.
Esta análise permite compreender porque é que a rutura com este projeto europeu era uma das condições para reconstruir alguma coisa à esquerda. No fim do vosso livro, esboçam o perfil do que emergia então em torno de Jean-Luc Mélenchon dizendo que ocupava uma posição claramente hostil ao projeto europeu. Comparando os programas, temos contudo a impressão que, entre 2017 e 2022, alguns dos elementos de rutura foram atenuados, até eliminados. Particularmente o caso do plano B que poderia chegar à saída do euro através da requisição do Banco de França, portanto da saída do próprio quadro da integração europeia, apesar da ideia de que os tratados são um bloqueio para aplicação do programa e o princípio de desobediência continuarem presentes. Como é que analisas a evolução de Mélenchon e da França Insubmissa relativamente à União Europeia?
A tua pergunta tem vários aspetos. Comecemos pela posição de Mélenchon. Se compararmos a campanha presidencial de 2022 à de 2017, a questão europeia está apresentada de forma diferente. Já não se trata de um plano A e de um plano B. Mas se examinarmos concretamente o que dizia o Mélenchon durante a última campanha presidencial era, em traços largos, isto: “irei à Europa para dizer que temos um programa e vamos aplicar. Se não estiverem de acordo aplicá-lo-emos na mesma”. E ficava por aí. Mas se os outros não estão de acordo faz-se o quê? A resposta de Mélenchon era: “vão ver, não se podem opor, somos a França, não nos podem expulsar da União Europeia”.
Mas o que era claro para mim é que se eles disserem “ou respeitam os tratados ou saem”, saímos. Isto continuou em plano de fundo em 2022, em 2017 era mais explícito mas não vejo como poderia ser de outra forma quando conhecemos o posicionamento político de Mélenchon.
Segundo aspeto: a União Europeia de 2022 continua a ser uma construção profundamente neoliberal mas o peso das obrigações que pesam sobre as políticas nacionais não é o mesmo que em 2017. Durante estes cinco últimos anos há um debate muito generalizado sobre não respeitar os tratados até, de certa forma, no que diz respeito ao Banco Central Europeu. Este financia agora as dívidas públicas através da recompra de títulos no mercado secundário, o que é uma forma de rutura relativamente à sua missão tal como está definida nos tratados. Esta menor obrigação explica porque o tema é menos divisório agora do que há cinco anos.
Terceiro aspeto: o contexto da NUPES. Aí há uma verdadeira diferença porque se trata de uma aliança entre partidos que têm posições opostas nesta questão. A França Insubmissa em toda a sua trajetória tem sido um partido com uma grande coerência. Opõe-se a esta lógica de construção europeia e não se desviou disso. O PS e o EELV estão mais do outro lado, o do europeísmo, ainda que estejam muito divididos internamente; mas globalmente não querem ouvir falar de rutura com a União Europeia.
De um modo um pouco paradoxal, o que permitiu a constituição da NUPES foi a vitória de Macron; porque sob a sua presidência, uma série de questões como a saída do euro, não podem ser colocadas. A Constituição atribui ao presidente o poder de negociar e ratificar tratados internacionais, o que implica que as linhas de fratura que atravessam a NUPES são ultrapassadas pelo facto de Macron estar no Eliseu.
Vou fazer de advogado do diabo. Incialmente o programa de 2017 da França Insubmissa pretendia uma saída do euro de facto e não apenas de direito, através de uma saída formal dos tratados que teria a necessidade de ser subscrita pelo presidente da República. Isto passava por uma requisição do Banco de França, e assim a tomada de controlo da moeda, se o BCE reagisse como fez com a Grécia, isto é cortando a oferta de liquidez.
Claro que se pode dizer que a França não é a Grécia, que as políticas orçamentais destes últimos anos se relaxaram, nomeadamente devido à crise da Covid- Há igualmente uma viragem da política do BCE com uma política de compra indireta de dívida pública o que não era o caso em 2010 e 2015. Já não estamos no horizonte austeritário restrito deste período pelo menos no imediato. Contudo, os tratados obstaculizam a aplicação de medidas fundamentais do programa como, por exemplo, a constituição de polos públicos ou de monopólios públicos nos setores estratégicos, porque estão contra o princípio de concorrência livre e não falseada.
Qual vai ser então a reação das instâncias europeias? A política de multas, por exemplo, é um meio extremamente laxista de coerção e, de facto, é pouco provável que seja efetivamente aplicada. Pelo contrário, o BCE dispõe de verdadeiros meios de ação. Opera no mercado interbancário e pode estrangular, se assim o decidir, qualquer sistema bancário na Europa declarando que os colaterais dos bancos deste país não serão mais aceites. A fortiori se, como está previsto no programa da NUPES, os bancos generalistas forem nacionalizados, ainda que o PS e os Verdes não estejam de acordo com esta medida.
Pensas que o BCE, o verdadeiro ariete do projeto neoliberal europeu, vai continuar de braços cruzados face a um governo de esquerda em França que aplique um programa de verdadeira rutura com o neoliberalismo? E, nesta eventualidade, quais são os meios para se defender de um tal ataque?
O BCE pode fazer subir as taxas de juro quando queira, assim tem efetivamente meios de ação poderosos. Fará isso? Não tenho a certeza mas acho que é possível. Estamos de qualquer forma em território desconhecido porque a paisagem europeia seria profundamente modificada com uma vitória eventual da esquerda em França. O meu ponto de vista é que o conteúdo neoliberal da construção é o resultado das estratégicas dos governos nacionais. Não penso que as instituições europeias sejam genética e irremediavelmente neoliberais. São-no porque os governo dos grandes países europeus, nomeadamente França e Alemanha também o são. E isto também vale para o BCE.
Que, ainda assim, é independente de todo o controlo político.
O BCE é independente, claro. O estatuto que lhe foi atribuído era o que sempre existiu na Alemanha, depois na Itália, em França, etc.
De facto é o modelo do ordoliberalismo que foi exportado à escala europeia e que se torna assim um dado estrutural. Uma vez implantadas, estas instituições dispõem de uma autonomia relativa, como se costuma dizer, com a sua eficácia própria.
Tenho tendência para pensar que esta autonomia é muito relativa. A Comissão Europeia e o BCE são capazes de integrar e reagir muito rapidamente a uma mudança de equilíbrios políticos. Evidentemente, isto depende antes de mais do tipo de modificação destes equilíbrios. A França pesa num tal processo. Foi isso que dissemos nas nossas análises feitas em conjunto com Bruno Amable. Não há uma lógica neoliberal que se imponha à França a partir de uma instância exterior, quase-autónoma. O que nos chega da Europa é em parte o que os dirigentes franceses impulsionaram.
Concordo, mas não há uma lógica neoliberal abstrata que paire por cima do mundo real. Há lógicas de classe, de interesses sociais conflituais. A classe dominante francesa não pode ficar sem reagir se uma política de rutura com o neoliberalismo for implementada. Assistiremos a uma fuga de capitais, a uma “greve de investimentos”, a reações patronais, a reações do sistema financeiro. As instituições europeias estão ao serviço destes interesses, não de uma lógica abstrata. Estás a dizer que podemos colocar em causa os interesses sociais das classes dominantes sem provocar uma reação no interior e no exterior do país, onde se encontram os pontos de apoio destes interesses sociais?
Não, nada disso, evidentemente que iria existir uma reação. Mas se um governo de esquerda se impuser em França, isto modificará em profundidade os equilíbrios europeus. Penso que é um erro grave ter na cabeça um esquema como o da Grécia, por exemplo, com um país que tenta desviar a trajetória que lhe é imposta e que faz frente a um bloco monolítico que prossegue encarniçadamente uma estratégia neoliberal. Este bloco responde a equilíbrios políticos. Então claro que estou de acordo contigo, haverá uma reação. Mas para a pensar é preciso refletir na articulação entre a mudança da linha de um governo em França e a modificação dos equilíbrios políticos na Europa que esta mudança implicaria.
Isto não quer dizer que exclua a existência de uma reação muito forte das classes economicamente dominantes. Simplesmente, quando falo de terreno desconhecido, é porque os países que pesam realmente na dinâmica europeia seguem desde há décadas uma trajetória liberal. Se a França, que faz parte desses países, se afastasse, a situação seria inédita. A estratégia das instituições europeias, do BCE por exemplo, integraria necessariamente esta novidade. Talvez o resultado seja de ir ao combate mas isso não é uma certeza.
Uma vez que não se pode excluir uma reação, o que se faz se ela acontecer?
Há uma variedade de respostas. Que vai da renúncia total até à rutura em caso de uma resposta como aquela que foi dada a Tsipras. Como já indiquei, com o presidente Macron o cenário de uma rutura na Europa implicaria uma crise política maior em França. Mas entre a renúncia e a saída, há possibilidades intermédias que não existiam para a Grécia e que se baseiam na capacidade de a França de negociar um compromisso à escala europeia. A França de qualquer forma tem os meios para não ser obrigada a escolher entre uma renúncia total como a de Tsipras e a opção “parto tudo e vou-me embora”.
Nesta eventualidade, onde nos situaríamos? Não faço a mínima ideia. Qualquer compromisso implica evidentemente uma parte de renúncia, que depende da relação de forças que o governo francês conseguisse construir, eventualmente apoiando-se em outras forças europeias. Aí também estou menos pessimista do que tu. Uma vitória da NUPES teria como efeito acordar a esquerda europeia que, é preciso admiti-lo, está em muito mau estado. Um outro fator que pode determinar o grau de renúncia diz respeito ao que dizia há pouco. Será que a NUPES é verdadeiramente uma união à volta de um eixo programático e estratégico, até na questão da desobediência aos tratados, que figura preto no branco no programa? Esta posição implica que se esteja pronto a entrar em conflitos.
Não pensas que isso depende também do grau de pressão popular?
Sim, certamente. Mais apenas em parte porque mesmo com grande pressão popular se pode trair, como vimos no caso da Grécia. Isto não diz respeito apenas às questões europeias. Tens razão em lembrar que quando se fala do interesse geral humano, expressão que compreendo no sentido em que se trata de evitar que esbarremos todos juntos contra o muro, isto não apaga os conflitos de interesses muito profundos, poderosos, até no interior da França. O patronato francês pode estrangular a população francesa tanto quanto o BCE. Tem capacidade e meios para isso. Haverá assim um tempo de conflito, provavelmente na Europa, certamente na França.
Não há garantia absoluta contra renúncias e traições. Os meios para as tornar menos prováveis passam por ter um movimento popular poderoso. Não falo de um movimento de apoio ao governo mas de um movimento com real autonomia e capacidade de distanciamento crítico, que tenha capacidade de reagir vigoresamente quando as coisas não caminhem no bom sentido. Há que não se deixar cegar neste ponto. Historicamente, quando a esquerda ganha há uma parte de delegação, o movimento social perde dimensão porque se imagina que os governos responderam aos interesses populares. Mas a escala do desafio de uma bifurcação da trajetória neoliberal exige simultaneamente um governo de esquerda e um movimento social forte e autónomo.
O desafio da estruturação
Seja qual for o resultado das legislativas, é claro que se inicia um novo período para a esquerda em França e em particular para a “esquerda de esquerda”, para retomar o termo de Bourdieu. Como se coloca a teu ver a questão da estruturação desta esquerda, uma estruturação no sentido de criar uma força ancorada na sociedade, capaz de agir a longo prazo, de construir um projeto, uma hegemonia?
O que é certo é que a esquerda será uma esquerda de rutura ou não será. A partir daqui já não há acompanhamento possível, só dureza, já o tinha dito para as alterações climáticas mas vale também para o conjunto das reformas neoliberais. O que era a esquerda de acompanhamento? Era uma força política que queria empreender as reformas mas tentando atenuar as consequências sociais negativas. Um dos aspetos desta estratégia era o timing das alterações institucionais: as destinadas a criar mais problemas eram deixadas para último. Não se ter feito uma reforma do código laboral nos anos 1980 foi resultado disso. A liberalização financeira e os tratados de livre comércio vieram primeiro, fazendo parte de uma estratégia que implicava mais cedo ou mais tarde atacar a relação salarial e proteção social.
Digo assim sem ironia que foi graças ao PS que os trabalhadores que começaram a sua atividade há 40 anos puderam escapar pelo menos parcialmente durante a sua carreira às consequências nefastas da flexibilização das relações de trabalho. A existência de uma esquerda de acompanhamento tinha esse sentido. Agora estamos no fim de uma trajetória: para completar a transição para o modelo neoliberal é precisamente a relação salarial e a proteção social que é preciso reformar e assim já não existe espaço político para uma esquerda de acompanhamento.
O facto de a burguesia de esquerda, que era o pilar social da esquerda de acompanhamento, tenha apoiado Macron a partir de 2017 é uma consequência do desaparecimento deste espaço político. Durante o seu mandato, esta fração de classe foi submetida a um verdadeiro teste de resistência. Tudo o que poderia fazer reagir foi aplicado: a repressão dos movimentos sociais, a redução das liberdades públicas, a verticalidade do poder, o desprezo do parlamento, as decisões tomadas por um conselho de defesa de forma totalmente antidemocrática… não falo das medidas sociais e económicas mas dos temas aos quais esta “esquerda burguesa” deveria estar ligada. Apesar de tudo isso, permaneceu fiel a Macron em 80%. O que demonstra uma consciência de classe muito aguçada: a burguesia anteriormente “de esquerda”, que queria a reforma neoliberal mas através de um compromisso com uma fração das classes populares, sabe que esta perspetiva desapareceu da paisagem das possibilidades. A esquerda de acompanhamento esgotou o seu papel histórico e todas as tentativas de Hollande, Hidalgo ou Carole Delga de a fazer renascer não irão dar em nada.
Como é que a esquerda de rutura pode oferecer uma perspetiva viável e impor-se duradouramente? É aqui que se coloca a questão da forma-partido. Ainda que possamos ser muito críticos relativamente à organização interna da França Insubmissa, é preciso ver que era uma construção muito estranha. E vou explicar daqui a pouco porque falo no passado. Havia, de um lado, uma forma muito fechada de centralização do poder, num grupo à volta de Mélenchon para o dizer de forma clara, e de outro lado um grau de abertura que acompanha esta centralização da decisão e que nunca tinha visto noutros lados em política.
Esta abertura vemo-la, por exemplo, nas candidaturas às legislativas que são de todo exclusivas dos quadros do movimento. Vimo-la também na elaboração do programa Futuro em Comum. Num partido clássico, para contribuir para o programa é preciso participar nas secções locais, subir nas instâncias, ter delegados num congresso, apresentar moções etc. O programa da França Insubmissa, e depois o da União Popular, foi produto de uma verdadeira construção coletiva, não desceu a partir de uma cúpula, ainda que tenham sido feitas arbitragens, por exemplo na questão europeia.
Sem dúvida, mas não há nenhum espaço de discussão que permita aos simples militantes participar ativamente na discussão.
Posso falar da experiência concreta que tive durante a campanha presidencial como membro do Parlamento da União Popular (PUP). Este parlamento não tem nada de uma construção democrática clássica. Fui integrado por cooptação como todos os outros. Metade é composta por pessoas que não participam na França Insubmissa, como é também o meu caso. Aí nos encontramos com sindicalistas, professores, inspetores de trabalho, responsáveis associativos, etc. enquanto que um mecanismo eletivo teria inelutavelmente conduzido a uma assembleia de militantes. Há, assim, certamente um grau de centralismo muito forte, não democrático se assim o quiseres colocar, mas que permite também um grau de abertura mais importante que nas formações mais tradicionais.
Para me ater à minha experiência, com alguns membros do PUP, conseguimos organizar com toda a liberdade um grupo de uma quinzena de economistas cujas contribuições foram largamente difundidas pela França Insubmissa e que pesaram na campanha. Não estou a defender este modo de estruturação mas simplesmente a dizer que em comparação com um partido que tem um comité central, uma organização piramidal, fizeram-se mais rapidamente uma série de passagens e, num certo sentido, mais livremente.
Certo, mas aí estás a falar num nível de especialização muito elevado que aliás também existiu, ainda que sob outras formas, nos partidos clássicos. A minha experiência como simples membro do Grupo de Ação da França Insubmissa do meu bairro é que, como dezenas de outros membros deste grupo, não temos a menor participação nesta elaboração. Nunca tivemos e até ao momento presente não há nenhum sinal tangível que a possamos passar a ter. Isto é um problema a teu ver? Como avalias esta realidade?
Insisto que relativamente a um partido clássico há dois aspetos que são contraditórios, de um certo ponto de vista, mas que estão ligados. Há um núcleo duro, sem estruturação democrática e, como efeito dessa centralização, uma possibilidade de abertura. Talvez tenhas razão que eu estou a falar de um ponto de vista técnico, sou professor universitário e não posso comparar a minha experiência a essa do “simples membro de um grupo de ação” de que falas.
Mas o meu caso pessoal talvez tenha um interesse mais geral. Encontrei-me com Mélenchon uma única vez na vida, há mais de um ano, nunca troquei e-mails com ele, telefonemas ou mensagens. No nosso encontro falámos sobretudo da América Latina, um pouco de Itália, não muito de França. O que ele disse foi que tinha lido o nosso livro e no fim do encontro disse à sua equipa: “compramos 25 cópias e toda a gente vai lê-lo”.
Esta rapidez é impossível numa organização clássica. Este tipo de poder pode ser exercido, evidentemente, em direções diferentes, é a sua vantagem e o seu perigo. Mas quando vimos, por exemplo, como Mélenchon e o conjunto do seu movimento avançaram numa década na compreensão da temática da ecologia, compreendemos que é este mecanismo que está a funcionar. Esta dimensão ecológica foi integrada em profundidade no programa com uma rapidez que um partido tradicional não teria podido ter.
Esse funcionamento é sustentável a longo prazo?
Não, pelo menos se pensarmos na hipótese de um ascenso da esquerda de rutura. Vou explicar. Num contexto de crise profunda, no qual as estruturas políticas são muito móveis porque há blocos sociais que se desfazem e outros que se formam, a rapidez de que falei é um fator que de certa forma contribui para para que a esquerda de rutura tenha chegado aos 22%, o que não acontece noutros lados. Por outro lado, penso que a forma particular de organização da França Insubmissa não está adaptada a um movimento que tenha por objetivo ter uma presença institucional importante, quer seja ao nível nacional ou ao nível local.
Este tipo de estrutura, com as suas desvantagens e vantagens, é uma espécie de barco pirata. Pode rapidamente fazer uma análise da situação e escolher uma boa trajetória. Comparemos por exemplo com o PCF: este tem a vantagem de ser muito mais democrático, faz congresso, com votações etc. Mas tem a desvantagem de uma enorme inércia e o resultado está à vista. Dito isto, se as legislativas decorrerem como esperamos, este tipo de lógica centralizada vai ter dificuldades em traduzir a riqueza e a diversidade de um movimento que se institucionaliza e que permita talvez a eleição de uma centena de deputados.
Como nos devemos então organizar? Penso que é preciso, de um lado, aumentar o grau de democracia nas tomadas de decisão. Voltamos aqui à insatisfação da tua militância: para alguém que está investido ou se quer investir num movimento, a consideração das suas opiniões é evidentemente fundamental.
Por outro lado, é preciso salvaguardar esta capacidade de reagir rapidamente porque o contexto de crise que estamos a viver vai continuar nos próximos anos, provavelmente até intensificar-se. E a velha estrutura partidária a que eu próprio estou muito ligado? Há aspetos do partido que devem ser absolutamente recuperados, por exemplo, a presença no território. Precisamos de secções locais, isso é algo que falta à esquerda. Quando vemos os resultados da primeira volta das presidenciais, vemos que Mélenchon é muito mais forte nas zonas urbanas do que nos territórios rurais e nas pequenas cidades. Pode-se fazer política através das redes sociais, da Internet e dos canais como o Youtube mas se nos limitarmos a isto, perdemos toda uma parte da população que não está envolvida nestes meios.
É preciso assim mais democracia e presença nos territórios mas também inventar algo que permita ter uma rapidez de adaptação da estratégia à análise da conjuntura. A situação pode evoluir muito rapidamente, em todas as frentes. Estaremos perante uma série de crise, não apenas políticas em sentido estrito. As coisas vão mexer na Europa, na crise climática, na economia, na pandemia… Se for preciso esperar pelo próximo congresso, previsto para daqui a três anos, para apresentar uma moção e esperar ganhar para fazer uma síntese com as moções perdedoras, isto não funcionará. Digo-o tendo consciência que é preciso aumentar o grau de democracia. Não tenho nenhuma boa receita mas vai ser preciso sem dúvida inovar e dar provas de inventidade.
Entrevista feita a 19 de maio de 2022 por Stathis Kouvélakis.
Publicada originalmente na revista Contretemps. Traduzida para o Esquerda.net por Carlos Carujo.