“As legislativas francesas são uma verdadeira terceira volta das presidenciais”

Se Mélenchon for eleito primeiro-ministro, abrir-se-á um novo ciclo com uma refundação profunda das instituições e do seu papel no cenário internacional. Caso Macron ganhe é provável que a sua situação fique insustentável porque o seu projeto antipopular não pode ser realizado sem grandes tumultos defende Jean-François Deluchey.

11 de junho 2022 - 16:50
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Cartazes da primeira volta das eleições presidenciais francesas. Foto de CHRISTOPHE PETIT TESSON/EPA/Lusa.
Cartazes da primeira volta das eleições presidenciais francesas. Foto de CHRISTOPHE PETIT TESSON/EPA/Lusa.

Jean-Luc Mélenchon alcançou o terceiro lugar nas eleições presidenciais francesa, deixando de ir à segunda volta por muito pouco. Mas o seu apelo para as esquerdas se unirem para disputar as eleições parlamentares, entre 12 e 19 junho, como uma “terceira volta”, funcionou. Socialistas, comunistas, verdes e insubmissos uniram-se na Nova União Popular Ecologista e Social (NUPES), que tem estado muito bem nas sondagens, disputando a liderança com os liberais macronistas, cujo partido se chama agora Renascença, e à frente da extrema-direita de Marine Le Pen.

Foi justamente a falta de união entre as esquerdas que permitiu que a candidata de extrema-direita, Marine Le Pen, disputasse a segunda volta das presidenciais com o liberal e atual presidente, Emmanuel Macron, que no fim foi reeleito. Se Mélenchon, bem ou mal, obteve sua melhor colocação histórica, comunistas e socialistas foram devastados eleitoralmente, o que os levou a moverem-se.

O trunfo dessa união para as legislativas é poder vencer a eleição parlamentar e, assim, gerar a chamada “coabitação”, isto é, produzir uma maioria contrária ao presidente em exercício para indicar o novo primeiro-ministro – que seria Mélenchon. Este fenómeno já foi mais comum na França, quando os gaulistas perderam a hegemonia completa da Quinta República nos anos 1980, com os socialistas a disputar cabeça a cabeça a presidência — o que gerou parlamentos de direita com presidentes de esquerda e vice-versa.

François Mitterrand, primeiro presidente socialista eleito, teve de aceitar o direitista Jacques Chirac como primeiro-ministro entre 1986 e 1988 e, também, Édouard Balladour entre 1993 e 1995. Depois, Chirac foi eleito presidente e teve de aceitar o socialista Lionel Jospin entre 1997 e 2002 como primeiro-ministro.

Em 2002, no entanto, as eleições para presidente e parlamento passaram a ocorrer sempre no mesmo ano, o que se repete com o encurtamento do mandato presidencial para cinco anos. Disputada poucos meses depois da eleição presidencial, as eleições parlamentares passaram a ter pouco apelo, sobretudo entre os eleitores das forças derrotadas nas presidenciais.

Portanto, Nicolas Sarkozy, François Hollande e Emmanuel Macron tiveram grandes – e artificiais – maiorias no parlamento, tornando a Assembleia Nacional Francesa uma extensão do gabinete presidencial – algo, inclusive, facilitado pelo histriónico sistema eleitoral distrital puro de duas voltas, retomado em 1958 para diminuir o espaço do Partido Comunista Francês, até então uma das maiores forças, em termos relativos, do Parlamento.

Desta forma, os três últimos governos franceses foram arautos do neoliberalismo em estado puro, negando a tradição francesa de autonomia nas relações internacionais e de um capitalismo “social” e mediado pela República – o que foi facilitado pela falta de oposição parlamentar. Mélenchon, desta vez, faz um movimento decisivo para emparedar a falsa polaridade entre neoliberais vitoriosos e a extrema-direita e, assim, ameaçar a artificial tranquilidade de Macron.

Para entender este cenário, a Jacobin Brasil conversou com o cientista político e professor da Universidade Federal do Pará Jean-François Y. Deluchey, para nos ajudar a analisar as possibilidades, significados e caminhos dessa disputa política num mundo cada vez mais conflagrado.

Entrevista de Hugo Albuquerque.

 

Depois de uma eleição presidencial decidida entre o liberalismo de Macron e o neofascismo de Marine Le Pen, agora as maiores forças da esquerda francesa juntaram-se para as eleições legislativas. O que isso significa?

Nas eleições presidenciais francesas do 10 de abril 2022, o neoliberal Emmanuel Macron (28%) e a neofascista Marine Le Pen (23%) qualificaram-se para a segunda volta mas o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, obteve 22% dos votos, ficando apenas 420.000 votos atrás da Le Pen. Os partidos que tradicionalmente se revezavam no poder, os Republicanos (direita) e o Partido Socialista (social-democrata), quase desapareceram do mapa eleitoral com respetivamente 4,8% e 1,75%. Nestas condições, três blocos encontram-se em luta no cenário político francês: a direita liderada por Macron com 33% dos votos, a extrema-direita de Le Pen e Éric Zemmour com 32%, e a esquerda liderada por Mélenchon, que somou 31%.

Na segunda volta das presidenciais, no dia 24 de abril, graças aos votos dos eleitores de esquerda, Macron venceu com 17% de diferença (58%), mas esse voto não significou uma adesão ao programa político antissocial de Macron. Os franceses apenas quiseram evitar que Le Pen ocupasse o palácio presidencial durante cinco anos.

Neste contexto, as eleições legislativas da França estão previstas para os dias 12 e 19 de junho. Temos de lembrar que a França é um país semiparlamentarista. Isto significa que o presidente é o chefe de Estado, das Forças Armadas e assina os tratados internacionais, mas por outro lado, o primeiro-ministro, com maioria no Parlamento, é quem dirige de facto a política governamental. A França já conheceu vários períodos de “coabitação” entre presidentes e primeiros-ministros opostos ideologicamente: o presidente socialista Mitterrand com Chirac e Balladur (entre 1986 e 1988 e entre 1993 e 1995), e o presidente Chirac com Jospin entre 1997 e 2002. Ainda assim, estas experiências sempre foram consideradas atípicas na história da Quinta República francesa, inaugurada pelo General de Gaulle em 1958.

Na noite da primeira volta da eleição presidencial, no último dia 10 de abril de 2022, aconteceu um evento inusitado na história republicana francesa. Face à divisão do país em três blocos, Jean-Luc Mélenchon convidou os franceses a continuar na luta eleitoral na terceira volta das eleições presidenciais, isto é, nas eleições legislativas de junho.

Ninguém antes tinha designado as eleições legislativas como uma terceira volta das eleições presidenciais porque, tradicionalmente, espera-se que os eleitores franceses deem uma maioria no parlamento ao presidente eleito. Desde então, Mélenchon conseguiu criar uma dinâmica positiva ao redor do seu projeto, pedindo aos eleitores: “elejam-me primeiro-ministro!” Como os outros partidos de esquerda apenas tinham reunido entre 0,7 e 4,6% dos votos, Mélenchon conseguiu reunir à sua volta uma Nova União Popular Ecológica e Social, a NUPES, para apresentar candidatos comuns nas 577 circunscrições legislativas do país.

A NUPES formou-se em 14 dias, após rondas de negociação acirradas entre a França Insubmissa do Mélenchon e os outros partidos de esquerda. Pela União, todos concordaram em nomear Mélenchon como primeiro-ministro caso fossem vitoriosos e elaboraram uma estratégia e um programa político comum para as eleições legislativas de junho. Pela primeira vez da história da Quinta República, a esquerda francesa irá apresentar candidatos comuns e apresentar-se unida frente aos eleitores com um objetivo: impor uma coabitação ao presidente Macron.

 

Como avalia as oportunidades dessa união dentro de um sistema eleitoral complexo como o francês?

O desafio é grande. A França Insubmissa saiu vitoriosa da sua campanha na primeira volta das presidenciais, apesar de ter ficado em terceiro lugar. Partindo de longe nas sondagens de opinião (11%), conseguiu duplicar o seu potencial eleitoral, disputando a passagem à segunda volta, sem ter apoio de nenhum outro partido de esquerda (nem do Partido Comunista Francês que tinha apoiado a candidatura do Mélenchon em 2012 e 2017).

Sem aliados, a estratégia de Mélenchon consistiu em convocar uma União Popular pela base, buscando convencer os abstencionistas (26-28% dos eleitores) a apoiar um projeto político de transformação profunda da sociedade francesa: uma 6ª República mais igualitária e ecologicamente responsável. Esta estratégia funcionou porque Mélenchon conseguiu reunir 22% dos votos, isto é, os dois terços do total dos votos da esquerda.

Dois ensinamentos claros saíram da primeira volta, dando razão à estratégia adotada. Primeiro, os eleitores de esquerda escolheram um programa de rutura e rechaçaram as tradicionais propostas social-democratas do Partido Socialista. Segundo, revelou-se certeira a estratégia de tentar mobilizar setores da sociedade francesa que não estavam mais interessados em participar dos processos eleitorais, particularmente os jovens e os residentes das periferias urbanas.

Agora, existem alguns obstáculos e algumas forças que, dependendo do que ocorra entre 12 e 19 de junho, podem confirmar um parlamento submisso a Macron ou eleger uma nova maioria, qualificando Mélenchon como primeiro-ministro. Entre os obstáculos, alguns são comuns ao Brasil. O primeiro são os meios de comunicação social hegemónicos que são completamente favoráveis a Macron e defendem visões políticas de direita e extrema-direita.

Como reação a uma possível vitória da esquerda nas eleições legislativas, os meios de comunicação social franceses mobilizam diariamente os temas da imigração, da guerra na Ucrânia, da insegurança urbana, da defesa dos valores cristãos contra a “ideologia woke”, os “islamo-esquerdistas”, e contra uma fantasiosa “grande substituição” dos brancos cristãos pelos árabes muçulmanos. Por outro lado, Mélenchon conseguiu também impor alguns dos seus temas na agenda mediática: aquecimento global, poder de compra, desigualdades sociais e déficit democrático.

O segundo obstáculo, ligado fortemente a este primeiro, é um ambiente social depressivo que leva o eleitor a procurar segurança e estabilidade. A França, como o Brasil, conhece uma degradação acelerada do poder de compra. Junto com a guerra na Ucrânia, esta degradação criou na população francesa um grande medo em relação ao futuro. Dependendo da dinâmica da campanha, este obstáculo pode se tornar uma força para uma esquerda que propõe uma rutura com a política antissocial de Macron.

O terceiro obstáculo é a desmobilização eleitoral entre as eleições presidenciais e legislativas. Se a juventude e as periferias francesas foram bem mobilizadas pela campanha da primeira volta de Mélenchon, é possível que, com a recente vitória do Macron, ocorra uma desmobilização daqueles que tradicionalmente se abstêm de votar. Por isto, a estratégia de Mélenchon de convocar o povo francês para uma terceira volta, na própria noite dos resultados da primeira volta, foi acertada.

Mélenchon quis dar continuidade à dinâmica que o levou a reunir 22% dos votos, e encarnar o principal opositor a Macron, apesar da qualificação de Le Pen para a segunda volta. A questão da mobilização eleitoral é certamente a chave principal para ter sucesso e conquistar o governo no final de junho.

O quarto obstáculo poderia ser ligado ao tipo de escrutínio utilizado nas eleições legislativas francesas: um sistema maioritário de duas voltas, no qual os dois (ou três) candidatos mais votados concorrem na segunda volta. Para se manter como candidato entre as duas voltas, há que ter pelo menos 12,5% dos votos do total dos eleitores inscritos no registo eleitoral. Nestas condições, há possibilidade de ter três ou quatro candidatos a concorrer na segunda volta em certos círculos eleitorais.

Este sistema tem duas consequências. Primeiro, favorece os “notáveis” e a sua implantação local, em detrimento de considerações ligadas à defesa de um projeto político nacional. Isto pode trazer problemas ao partido de Mélenchon cujo ponto forte é a qualidade do programa político e cuja fraqueza é a falta de representantes eleitos nos territórios (municípios, departamentos e regiões).

Para amenizar esta fraqueza, Mélenchon ofereceu 100 das 577 circunscrições ao Partido Socialista francês que, apesar de ter reunido menos de 2% em volta do seu programa social-democrata, tem uma implantação muito maior de que a França Insubmissa nos territórios.

Por fim, o grande desafio é a existência destes três blocos. Quem, de Macron ou de Mélenchon, conseguirá captar melhor os eleitores cujos candidatos forem desqualificados na primeira volta? Será que os eleitores de Le Pen votariam para Macron ou para Mélenchon? Esta vai ser outra situação interessante de se observar nas eleições legislativas francesas.

 

Quais os principais impactos do conflito entre Rússia e Ucrânia para a França e como isso tem ressoado no debate político?

O impacto foi, evidentemente, enorme! Várias coisas interessantes aconteceram nas eleições presidenciais em relação à guerra na Ucrânia. Primeiro, Macron que não fez campanha e nenhum debate na primeira volta, conseguiu aproveitar-se da guerra para construir para si uma imagem de protetor da nação. Ajudado pelos meios de comunicação social que transformaram os horrores da guerra numa novela macabra, Macron apareceu como um chefe de Estado enquanto os seus opositores apareciam como meros competidores, ou até como amigos do Putin.

Os meios de comunicação mainstream da França tentaram desqualificar sistematicamente qualquer análise não maniqueísta sobre o conflito. A guerra beneficiou claramente Macron, criando para ele a oportunidade de não entrar em nenhum embate direto com os outros candidatos, embate que poderia ter exposto o caráter antissocial do seu programa político. Por outro lado, a guerra conseguiu pautar a eleição para bem longe dos temas tradicionais da direita que são a insegurança e a imigração. E cada candidato pôde ser visto como possível ocupante do palácio presidencial, com diferentes propostas, algumas fantasiosas, outras bem interessantes.

 

O que pode mudar na relação entre França e NATO, a depender do resultado das eleições legislativas francesas?

Esta eleição legislativa é fundamental deste ponto de vista. Os dois candidatos que podem ganhar a eleição, Macron e Mélenchon, têm duas posições completamente opostas em relação à NATO. Macron quer consolidar o papel da França na NATO, em detrimento, por exemplo, da criação de um sistema de defesa comum da União Europeia. Mélenchon, por sua vez, quer que a França saia da NATO, que considera como uma organização obsoleta do tempo da Guerra Fria, que coloca a França em posição de subordinação em relação aos Estados Unidos.

Não sabemos, aliás, o que vai acontecer em caso de coabitação entre Mélenchon e Macron, mas o presidente Macron, enquanto chefe de Estado, terá toda possibilidade de vetar a saída da França do comando da NATO. Nessas condições, e tomando em consideração que os sociais-democratas que compõem a nova união eleitoral se opõem a este projeto, Mélenchon informou recentemente estar disposto a voltar atrás de seu projeto de saída da NATO.

Quero lembrar que a França foi fundadora da NATO em 1949, mas o General de Gaulle saiu do seu comando unificado em 1966 para inaugurar uma política de independência da França no cenário internacional. O socialista François Mitterrand e o gaullista Jacques Chirac deram continuidade a esta política até os anos 2000. Foi o neoliberal Nicolas Sarkozy que reintegrou a França no comando da NATO em 2009, seguido por François Hollande e Emmanuel Macron. Desta forma, temos um claro redirecionamento da política de defesa francesa entre os soberanistas de de Gaulle a Mélenchon, e os neoliberais e social-liberais que escolheram atrelar a França à política externa dos Estados Unidos.

Entre Macron e Mélenchon, há uma oposição forte de visão sobre o papel que a França deve desempenhar no cenário nacional. Macron quer uma França atrelada aos Estados Unidos e parte ativa de uma União Europeia pouco democrática e concentrada numa pauta neoliberal. Neste contexto, Mélenchon recusa a obediência aos tratados europeus que obriguem o governo francês a adotar políticas antissociais e anti-ecológicas. Ele quer que a França desenvolva uma posição “não-alinhada” e desenvolva uma “diplomacia altermundista” com os países do Sul Global, nomeadamente com a América Latina (que ele considera como modelo de experiências políticas), e com as Áfricas do norte e subsaariana. Mélenchon quer também atuar na consagração do ar e da água como bens comuns mundiais e da criação de uma moeda universal que substituiria o dólar.

Em relação à segurança internacional, Mélenchon defende uma defesa nacional autónoma e soberana apoiada, para além da dissuasão nuclear, nas novas tecnologias para fazer frente às novas ameaças sobre a soberania: proteção do mundo marítimo (França tem o segundo domínio mundial), soberania digital, controle do espaço e das telecomunicações por satélite e etc.. Mélenchon tem vindo a militar desde há anos por soluções diplomáticas e, especialmente, propôs uma grande conferência mundial sobre as fronteiras na Europa para resolver os múltiplos problemas diplomáticos pendentes na região. Neste aspeto, a invasão da Ucrânia pela Rússia deu-lhe razão.

 

Macron parece esgotado e só tem alguma força por contraste com a extrema-direita. Mesmo do ponto de vista da política convencional, o que teria ele para oferecer pelos próximos cinco anos?

Eu acho que a sua análise está correta: há muito tempo que não víamos, em França, um presidente recentemente eleito com tão pouco apoio popular para executar a sua política, apesar da sua eleição confortável contra Le Pen. A realidade é que o Macron não fez campanha e não foi claro na exposição do seu projeto político durante as eleições presidenciais. O povo francês não sabe muito bem o que ele tem em mente, mas esta falta de clareza foi propositada.

Em plena campanha eleitoral, Macron não podia mostrar a natureza profundamente antipopular do seu projeto político. As poucas reformas que anunciou durante a campanha são todas antissociais: elevar a idade mínima para se aposentar para os 65 anos, impor um trabalho forçado aos beneficiários do rendimento social mínimo, flexibilização das leis do trabalho, privatização progressiva do setor da educação, política fiscal de forte austeridade para reembolsar os gastos públicos contraídos no início da pandemia de Covid-19 e etc.. A sua política, fragilmente dissimulada, é claramente uma escolha neoliberal, de apoio ao rendimento do capital contra o rendimento do trabalho. O caráter violentamente antipopular desta política poderia colocar em xeque a obtenção de uma maioria governamental no parlamento para o Macron.

Para contrabalançar estas políticas antissociais, Macron fez anúncios puramente de marketing. Primeiro, reafirmou que a igualdade entre homens e mulheres iam ser uma prioridade do seu governo. O problema é que ele tinha prometido exatamente a mesma coisa em 2017, sem sucesso. Para além disso, no novo governo da primeira-ministra Elisabeth Borne, vários ministros estão a enfrentar uma onda de denúncias de violências sexuais contra mulheres. No plano da reforma política, Macron voltou a propor instaurar as eleições proporcionais para o parlamento, o que também tinha prometido em 2017 e não realizou. Também disse que a questão ecológica ia ser prioridade do seu governo apesar de ter adotado políticas profundamente anti-ecológicas nos últimos cinco anos.

Macron até propôs realizar uma “planificação ecológica”, projeto extraído do programa de… Jean-Luc Mélenchon! Também irá propor uma grande lei de apoio ao poder de compra, mas planeia promulgá-la somente depois das eleições legislativas. Essa aparente falta de consistência programática e o caráter visivelmente antissocial do seu projeto governamental para os próximos cinco anos podem ser decisivos nas futuras eleições.

 

O que explica a sujeição da Europa aos Estados Unidos sem maiores questionamentos? O quanto essa dinâmica se sustentaria ao longo dos próximos anos?

É muito difícil responder à sua pergunta. Eu que sou francês, e moro no Brasil há 20 anos, aprendi muito sobre o lugar da França no mundo observando-a de fora. Os franceses que moram em França têm uma visão muito eurocentrista e ocidentalista, visão reforçada pelos meios de comunicação social hegemónicos. Como já referi, a aliança entre esses meios de comunicação social ideológicos e a sucessão de governos neoliberais e social-liberais na França nos últimos tempos deixou os franceses atordoados em relação aos grandes equilíbrios mundiais, geopolíticos e económicos. Parece que existe apenas uma via, um modo de governança possível, emancipado da polémica política e da comparação necessária entre diversas visões do mundo.

Desde 2009, na sequência da crise de 2008, a governamentalidade neoliberal impôs-se de forma avassaladora. Esta fase também teve de ser relacionada com os atentados feitos nos anos 2000 contra a soberania popular dos europeus e a influência crescente das instituições europeias e da diplomacia norte-americana na escolha das políticas governamentais dos países da Europa.

Devo lembrar, por exemplo, que os povos francês e holandês, por via de referendo, tinham recusado o projeto de Constituição europeia em 2005. Em 2007, os governos europeus preparam outro tratado (Tratado de Lisboa) retomando as principais proposições do projeto de Constituição, e o presidente Nicolas Sarkozy modifica a Constituição francesa via parlamento em 2008 para impor aos franceses um projeto constitucional que eles tinham recusado por via democrática.

Em 2007, os governos europeus, sem passar pelo voto popular, aumentaram o número de países da União Europeia de 17 para 27, integrando grande parte dos países da Europa Oriental. Em janeiro de 2015, em plena crise da dívida grega, Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão Europeia disse esta frase chocante: “Não pode haver escolha democrática contra os tratados europeus.”

A esta descrença generalizada na soberania popular, acrescenta-se em França uma confusão sobre o que está em jogo na disputa político-ideológica e particularmente nas eleições. A alternância entre os governos de Sarkozy, Hollande e Macron foi extremamente danosa para a confiança dos franceses no processo eleitoral. Em 2012, quando François Hollande, candidato à presidência pelo Partido Socialista, anuncia que ia lutar contra a finança, esse grande adversário “sem nome, sem rosto e sem partido”, nada levava a crer que o governo dele ia ser tão marcado à direita. Em 2017, o seu ministro das Finanças, Emmanuel Macron, lança a sua candidatura à eleição presidencial, arguindo que o seu projeto político não é “nem de esquerda nem de direita”. Estas confusões ideológicas contribuíram para esvaziar o conceito de “esquerda” e a polarização ideológica entre dois campos ideológicos, bem como para desacreditar que o voto podia trazer qualquer diferença em termos de política governamental na França.

Também devemos lembrar que, desde os atentados terroristas de 2015, França vive sob estado permanente de emergência, o que foi até incorporado na legislação comum francesa no mandato do presidente Hollande. Esta situação também contribui para o ambiente social degradado da França e para o desenvolvimento de medos sociais, especialmente em relação à população muçulmana e imigrante.

Face a esses medos e a essa perda de referências ideológicas, houve também sinais de resistência. O “apartidário” movimento dos coletes amarelos, que lutou em 2018 e 2019 contra os ataques do Macron ao poder de compra dos trabalhadores foi violentamente reprimido pela polícia francesa. Os coletes amarelos expressaram uma revolta social que aliava os habitantes conservadores das áreas rurais e periurbanas com a juventude dos centros urbanos e das periferias.

Parcialmente, foi esta cólera popular que mobilizou os eleitores nas últimas eleições para votar por Le Pen (zonas rurais e regiões industriais degradadas) ou por Mélenchon (juventude e periferias urbanas). Somando os 32% do bloco de extrema direita aos 31% do bloco de esquerda, temos dois terços da população francesa que se opõem ao projeto europeu tal como está desenhado e que se opõem ao projeto de Macron de atrelar cada vez mais a França à política externa norte-americana.

O problema é que, pelo escrutínio maioritário, e pela organização política da República francesa, estes dois terços da população podem sofrer uma política contrária aos seus desejos durante os cinco anos por vir. Eis o maior desafio que França irá enfrentar nas eleições legislativas de 12 e 19 de junho.

Caso Mélenchon seja eleito primeiro-ministro, poderemos assistir a um novo ciclo sócio-político e uma refundação profunda das instituições francesas e do seu papel no cenário internacional. Caso Macron ganhe a eleição, é provável que a sua situação fique rapidamente insustentável socialmente, porque o seu projeto antipopular não poderá ser realizado sem grandes tumultos sociais e políticos ao longo dos próximos cinco anos. Face a estes desafios, podemos entender melhor porque as eleições legislativas representam uma verdadeira terceira volta das eleições presidenciais.


Jean-François Y. Deluchey é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Pará, conselheiro eleito da Assembleia dos Franceses do Estrangeiro e militante do movimento Franca Insubmissa e da Nova União Popular Ecológica e Social.

Hugo Albuquerque é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

Entrevista publicada originalmente na Jacobin Brasil. Editada pelo Esquerda.net para português de Portugal.

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