O teletrabalho tem sido entendido como uma forma de trabalho em que este é realizado em casa, nos escritórios dos clientes, em espaços públicos ou em ambientes de trabalho não tradicionais usando a Internet, computadores ou outras ferramentas baseadas em tecnologias de informação. No entanto, este não constitui ainda o núcleo dos debates recentes entre os parceiros sociais, apesar de ser um tema que irá ser apresentado no Livro Verde do Futuro do Trabalho que tem estado a ser preparado pelo governo para discussão pública.
A pandemia veio dar um valor muito mais significativo a esta forma de trabalho, embora no início da fase de confinamento (até meados do ano passado) ainda existisse muita confusão e desorientação acerca do teletrabalho e sobre as possibilidades da sua aplicação. Carvalho da Silva dizia que esta forma de trabalho estava a “tornar-se num trampolim de transferência de responsabilidades.” (https://www.jn.pt/opiniao/carvalho-da-silva/no-saguao-do-teletrabalho-12257181.html 30/5/2020), e Fraga de Oliveira diz mesmo que pode degenerar “num fator de perigosa (profissional, pessoal e familiarmente) incompatibilização das condições de trabalho face às condições de vida pessoal, familiar e social das pessoas nessa situação” (em https://www.esquerda.net/opiniao/transicao-digital-teletrabalho-e-direito-de-desligar/72508). Finalmente, Glória Rebelo chamou a atenção para que, “no caso do teletrabalho no domicílio o atual regime de teletrabalho suscita diversas e pertinentes reflexões, pela ambiguidade de algumas das suas disposições. Desde logo, relativas ao facto de, sendo esta uma forma de execução da prestação de trabalho a distância mas controlada pelo empregador, dever respeitar um período normal de trabalho contratualmente definido, com repercussões no plano do exercício dos poderes do empregador no contrato de teletrabalho” (em https://www.publico.pt/2020/06/04/opiniao/opiniao/covid19-transicao-digital-teletrabalho-1919275).
Estão, de facto, em cima da mesa temas muito importantes acerca de uma forma de trabalho quase ignorada pelos parceiros sociais e pela administração pública, mas que, com a pandemia, passou a ser um caso de experimentação em quase todas as empresas e organizações. É uma experimentação temporal, mas pode vir a tornar-se numa forma normalizada e disponível após a pandemia. Existem, no entanto, questões que ainda importa considerar para compreender que o teletrabalho poderá vir a ser, ou não, uma forma de trabalho dominante no futuro.
Os empresários irão enfrentar novos desafios colocados por uma mudança nos acordos de trabalho. Por exemplo, terão de lidar com novas questões associadas à saúde e segurança no trabalho fora do escritório, pelo menos em espaços domésticos. Além disso, as empresas têm colocado a necessidade de monitorar o desempenho e o tempo de trabalho e coordenar remotamente a força de trabalho. Mas este tem sido um aspeto que implica questões éticas sobre o controlo e privacidade.
Os trabalhadores também enfrentam problemas significativos. No pico da pandemia COVID-19 em abril de 2020, um inquérito levado a cabo pela Eurofound revelou que os entrevistados - especialmente mulheres com filhos menores de 12 anos - estavam lutando para equilibrar trabalho e vida pessoal (Eurofound, 2020, Living, working and COVID-19, COVID-19 series, European Union, Luxembourg, https://www.eurofound.europa.eu/publications/report/2020/living-working-and-covid-19). O teletrabalho levou a um aumento no número de pessoas que trabalham em casa, independentemente das suas condições familiares. Isso resultou em dificuldades na gestão de conflitos vida-trabalho sobretudo quando as escolas deixaram de possibilitar a presença dos jovens estudantes. Gerou ainda um aumento na incidência de horas extras porque as empresas incluíram a necessidade de trabalhar em função de objetivos assumindo que haveria mais tempo disponível quando se trabalha a partir de casa. Houve também a necessidade de considerar as despesas incorridas pelos trabalhadores para poderem configurar as suas estações de trabalho e ligações de internet, assim como as despesas de energia associadas. Muitas dessas questões exigem discussão entre os parceiros sociais e podem exigir nova legislação.
Estes diversos sinais mostram que esta pandemia deu velocidade à transição digital, com a adoção do teletrabalho. Assim, tentando responder a uma questão colocada em artigo anterior (https://www.esquerda.net/opiniao/teletrabalho-em-tempos-de-pandemia/68404), o teletrabalho não é uma forma de trabalho que voltará a ser esquecida quando a pandemia terminar. Mas será que virá a ser uma dominante forma futura de trabalho?
O acordo-quadro da UE sobre teletrabalho é de 2002 (ETUC-UNICE-UEAPME-CEEP, European Framework Agreement on Telework, Bruxelas, 16 Julho 2002). Vários países têm estabelecido instrumentos legislativos com base neste acordo, que acabou por constituir a principal referência para a regulamentação do trabalho virtual por meio de negociação coletiva e regulamentação estatal.
Este acordo europeu não tem sido aplicado a todos os setores de atividade laboral. Refere, por exemplo, que o teletrabalho deve ter um caráter voluntário. Mas deveria oferecer os mesmos direitos que as condições de emprego dos restantes trabalhadores
Este acordo europeu não tem sido aplicado a todos os setores de atividade laboral. Refere, por exemplo, que o teletrabalho deve ter um caráter voluntário (quer para o empresário, quer para o trabalhador envolvido). Mas deveria oferecer os mesmos direitos que as condições de emprego dos restantes trabalhadores, ou o empregador deveria providenciar o equipamento e a sua manutenção para o teletrabalho, a menos que o teletrabalhador queira utilizar o seu equipamento. Estas questões ainda são tema de controvérsia, ou de disputa laboral.
Com efeito, proteção de dados, privacidade, proteção na saúde e segurança, organização do trabalho e do tempo de trabalho, prevenção do isolamento dos teletrabalhadores, e acesso à formação e às oportunidades de desenvolvimento da carreira, são ainda questões que poderiam proteger os trabalhadores que se integram nesta forma de trabalho. Porém, são temas que não têm sido incluídos na agenda sindical, e muito menos na agenda empresarial para iniciar o processo de negociação.
Normalmente, os sindicatos afirmam que a regulamentação do teletrabalho não é uma ferramenta adequada para proteger estes empregados, e que os efeitos negativos nas condições de trabalho são visíveis. As organizações de empregadores também parecem relutantes em regular estas novas formas de trabalho. No entanto, nem uns nem outros têm produzido conhecimento empírico suficiente para validar essas posições. Acabam por revelar diretivas e orientações conservadoras receosas de qualquer mudança.
Como refere Glória Rebelo “o teletrabalho será uma boa alternativa para manter atividades e executar trabalho, salvaguardando a saúde dos trabalhadores e evitando uma paralisia da atividade económica. Em ambiente de aumento crescente da competitividade, as empresas vêem-se obrigadas a explorar todas as potencialidades em matéria de produtividade e de eficácia, e a capacidade de proceder a adaptações em situações imprevisíveis torna-se condição importante para um consequente êxito económico” (Público, 4.6.2020). Contudo, estas novas necessidades não são fundadas em avaliação de experiências, nem mesmo na sua negociação. Há ainda uma “navegação” em zonas obscuras ou cinzentas de ausência de acordos entre os diferentes parceiros sociais, e os trabalhadores continuam a não ter o apoio devido. Estas foram também as conclusões de um estudo europeu em que Portugal participou através do CICS.NOVA da Universidade Nova de Lisboa (projeto DeepView, www.deepview-eu.org/), e que analisou os desafios colocados por esta forma de trabalho às relações laborais e ao papel dos parceiros sociais.
Com a pandemia do CoViD19 houve um maior recurso à forma de teletrabalho, o que se revelou ser um novo fenómeno. Inicialmente, apenas se terá aplicado em alguns setores de serviços e na administração pública e educação, e mais tarde foi estendido a outros setores.
O potencial da sua extensão a outros setores foi verificado nesse estudo europeu, por exemplo, aos cuidados de saúde, ao setor financeiro e no setor das tecnologias de informação. São setores com experiências ainda muito limitadas, mas que têm vindo a ganhar fôlego no período de confinamento devido à pandemia.
a passagem a teletrabalho a partir de formas convencionais não foi negociada, não foi preparada, não foi avaliada
Mas, a passagem a teletrabalho a partir de formas convencionais não foi negociada, não foi preparada, não foi avaliada. Parece também que os parceiros sociais não estão ainda informados da importância dessa avaliação, uma vez que a experiência de utilização de teletrabalho foi muito alargada. E existe ainda receio sobre a utilização desta forma de trabalho em muitos setores produtivos.
Todavia, a expansão massiva do teletrabalho durante a pandemia pode ser considerada uma experiência em grande escala na organização do trabalho. Existiu, sem dúvida, uma resposta improvisada ao nível das empresas e das organizações do estado perante uma restrição geral à mobilidade com imposição de distanciamento físico para poder conter a pandemia. Muitos trabalhadores foram obrigados a trabalhar em casa. Mas, certamente, à medida que as nossas sociedades voltam gradualmente à normalidade, por pressão dos consumidores e dos empresários, muitos trabalhadores irão retomar a rotina de deslocamento para o local de trabalho convencional. É muito provável que a incidência de teletrabalho “em tempo integral” venha a diminuir novamente.
A utilização tão generalizada desta forma de trabalho produziu certamente um legado. Muitos trabalhadores conseguiram gerir melhor os seus tempos de trabalho e lazer com a diminuição drástica dos tempos gastos em transporte casa-trabalho-casa. Muitos empresários verificaram benefícios em alterar os arranjos de contratualização com recurso ao teletrabalho permitindo melhor utilização das suas instalações. Eventualmente, os decisores políticos poderão refletir estas experiências para compreender melhor os meios de regulação das formas de trabalho.
É possível mesmo que o recurso ao teletrabalho tenha produzido um melhor conhecimento da importância em se organizar de modo mais racional e com melhores condições o trabalho. Em muitos países, as empresas aproveitaram para organizar ou disponibilizar atividades formativas aos seus trabalhadores durante o período de confinamento. O recurso à formação poderá manter-se como uma necessidade mesmo no período pós-pandemia.
Neste último ano assistimos ainda a uma preocupação maior com a necessidade de se providenciarem infraestruturas de telecomunicação e serviços de comunicação compatíveis com o teletrabalho. Isso provocou um maior envolvimento das empresas de telecomunicação e das entidades municipais em manterem ou aumentarem a qualidade dos seus serviços e de ferramentas de teletrabalho (meios de colaboração online, videoconferência, aplicações para equipas virtuais, etc.). O impacto ambiental derivado de alguma redução de tráfego derivado da deslocação casa-trabalho-casa foi verificado em algumas regiões e países.
Existe, de todos os modos, uma aprendizagem significativa e generalizada sobre os benefícios e limites do teletrabalho. Novos dispositivos legais foram estabelecidos ou estão a ser discutidos, como é o caso do Livro Verde do Futuro do Trabalho que o governo se propõe discutir em breve.
Ainda assim, existe ainda pouca investigação sobre esta temática. Ainda não se conhece a relação desta forma de trabalho com a produtividade, nem com a melhoria das condições de trabalho. Sabe-se também muito pouco sobre se as empresas desenvolveram ou não planos de contingência integrando esta forma de trabalho. Ou ainda se consideraram a possibilidade de articularem as suas instalações com centros de teletrabalho dispersos geograficamente, ou se os teletrabalhadores poderiam encontrar melhores condições em centros de teletrabalho.
Com efeito, não temos ainda os estudos científicos e empíricos indispensáveis para este conhecimento e para esta avaliação. E seriam urgentes para sabermos em que direção as relações laborais poderiam estabelecer novos acordos, ou em que enquadramento poderão ser aplicadas novas iniciativas. Será muito difícil voltarmos à situação de pré-pandemia, mas teremos de aprender bastante mais como estas formas de trabalho poderão contribuir para a melhoria da qualidade de vida no trabalho, impedindo que más práticas dominem num contexto já tão fragilizado pelo isolamento e confinamento gerado pela pandemia.
Artigo de António Brandão Moniz, professor na FCT da Universidade Nova de Lisboa e investigador no CICS.NOVA