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Nas empresas ou em casa: os efeitos da pandemia e as medidas urgentes

O teletrabalho como resposta sanitária passou a ser um mal menor, passando por entre os pingos da chuva. Mas será o paradigma que queremos do ponto de vista laboral? E será que, depois de passar a pandemia, o mundo laboral voltará a ser o que era? Artigo de Nelson Silva
Teletrabalho e almoço? - Foto de bubem/flickr
Teletrabalho e almoço? - Foto de bubem/flickr

É com a austeridade laboral que a troika trouxe e inscreveu na lei, e que o Governo ainda mantém, que a pandemia Covid 19 apanhou os trabalhadores. Com os cortes nos rendimentos por repor, são os cuidados de saúde que ganham uma nova dimensão tornando-se na única prioridade. Por sua vez, as dificuldades na laboração em algumas empresas e o aproveitamento de outras, atiram os trabalhadores para lay-off ou pior, para o despedimento. Os precários foram os primeiros a ser descartados, muitas vezes sem proteção social. Mas os despedimentos coletivos já batem recordes nesta fase também. Como o surto pandémico atinge as diferentes profissões, idades ou localidades, mesmo que de forma diferenciada, as dificuldades familiares aumentaram com o fecho das escolas, levando muitos casais a ficarem em casa para assegurar os cuidados aos seu filhos.

Neste contexto, cresce o teletrabalho, feito muitas vezes com a acumulação dos cuidados aos filhos e com um acréscimo de custos, ou a par da perda de rendimentos dentro da família. O teletrabalho como resposta sanitária passou a ser um mal menor, passando por entre os pingos da chuva. Mas será o paradigma que queremos do ponto de vista laboral? E será que, depois de passar a pandemia, o mundo laboral voltará a ser o que era?

Não acredito. Compete aos trabalhadores e suas organizações representativas, como sempre, tentarem minorar no imediato o impacto do teletrabalho para a vida dos trabalhadores. Embora a legislação atual tenha resolvidos muitos dos problemas de que irei falar, estes parecem não estar claros para as entidades patronais, que abusam muito para lá do que a lei permite, aproveitando a impunidade com que esta é desrespeitada.

é necessário obrigar o patrão a desconectar, a não contactar o trabalhador fora do horário, ou estaremos a legitimar um assédio laboral crescente

O primeiro exemplo é o subsídio de refeição. Alguns dirão que, quando o trabalhador está em casa, não tem direito a esta componente salarial, mas, na verdade, ela está inscrita na legislação atual, que iguala os direitos destes trabalhadores aos dos que estão em trabalho presencial. Outro ponto em que as falhas são constantes é a comparticipação das despesas, sendo certo que, estando a trabalhar em casa, as despesas irão aumentar para o trabalhador e diminuir para o patrão. Os horários praticados em teletrabalho certamente não refletem também, na sua maioria, as horas efetivamente trabalhadas, quer pela ausência de controle, quer pela ausência de legislação que obrigue o patrão à desconexão. Sim, é necessário obrigar o patrão a desconectar, a não contactar o trabalhador fora do horário, ou estaremos a legitimar um assédio laboral crescente. Todos conhecemos casos de trabalhadores que, mesmo nos seu períodos de descanso, foram incomodados pela empresa e, nos casos em que não responderam à chamada, ouviram comentários do tipo, "liguei mas não atendeste", "tens telemóvel da empresa, é para atender" ou, numa abordagem mais elaborada, "sei que estás na tua hora de descanso, mas é urgente".

A ergonomia não pode ser posta de lado, até porque a falta dela reflete-se na produtividade e na saúde dos trabalhadores

Pertinente é também a adaptação da habitação do trabalhador ao teletrabalho. Com a mudança do local de trabalho, a responsabilidade na ergonomia necessária e na implementação do posto de trabalho passa para o trabalhador. Nem sempre a habitação tem condições para alojar o local de trabalho, nem compete ao trabalhador custear essas alterações na sua habitação, mas com toda a certeza deve ter um posto adaptado à sua realidade laboral. A ergonomia não pode ser posta de lado, até porque a falta dela reflete-se na produtividade e na saúde dos trabalhadores.

o distanciamento de colegas e da empresa certamente contribuirá a médio prazo para alterações comportamentais por falta de socialização laboral

Depois teremos certamente um problema social agregado ao teletrabalho: o distanciamento de colegas e da empresa certamente contribuirá a médio prazo para alterações comportamentais por falta de socialização laboral. Por outro lado, muitos dos que foram colocados em casa a trabalhar em tempo de pandemia têm neste momento alterações comportamentais e anseiam pelo regresso à empresa. Certo de que haverá muitos que até querem manter este regime, devemos olhar para a situação de uma forma global. O suporte psicológico deve ser equacionado como medida de apoio aos trabalhadores, e a liberdade de reversão do teletrabalho para trabalho presencial tem de ser garantida, em benefício das relações laborais. As alterações do ambiente profissional e de rotinas diárias não podem ficar de fora da legislação laboral.

O suporte psicológico deve ser equacionado como medida de apoio aos trabalhadores, e a liberdade de reversão do teletrabalho para trabalho presencial tem de ser garantida

Sindicatos e Comissões de Trabalhadores devem olhar para este modelo laboral de uma forma atenta, essencialmente por dois motivos. O primeiro é o contacto perdido com os trabalhadores, que dificulta a atividade sindical, dificuldade que irá aumentar quando a empresa iniciar contratos com trabalhadores que nunca foram à empresa e que as ORT´s desconhecerão. O segundo problema é a falta de clarificação e a interpretação abusiva que é feita pelas empresas do Regulamento Geral da Proteção de Dados, confundindo dados pessoais com dados profissionais. Assim, as organizações representativas dos trabalhadores perderam o contacto com os trabalhadores e as empresas contornam, desta forma, a contratação coletiva e a força da união laboral, contribuindo assim, a prazo, para um enfraquecimento (ou, em casos extremos, uma extinção) sindical nas empresas. Mesmo em tempo de pandemia, as ORT´s deveriam começar já uma ofensiva para evitar esta triste realidade.

Algumas profissões, como a de operadores de call center, estarão ainda mais expostas aos riscos laborais que o teletrabalho trouxe. As relações de trabalho nos call centers, por norma estão revestidas de muita precariedade e poderão passar a ser clandestinas, com trabalhos à peça e com a obrigatoriedade de o trabalhador suportar todas as despesas laborais, quer na aquisição de material, quer nas despesas acrescidas na sua habitação (água, luz, desgaste, etc.). A verdade é que, nesta profissão, o trabalho tem igual grau de desempenho se for feito em casa ou no call center, com o benefício para o empregador de eliminar custos operacionais e, mais importante de todos, retirar estes trabalhadores dos radares da Autoridade para as Condições de Trabalho e das ORT´s. De uma forma simples, as relações laborais frágeis deixariam assim de ser uma relação de trabalho e passariam a ser uma verdadeira e perversa escravatura, em pleno século XXI.

Será que, com todos os riscos que este cenário comporta, os trabalhadores que ficaram nas empresas poderão dizer-se com sorte?

Também não creio. Além da evidente exposição ao risco pandémico, este trabalhadores sofreram alterações nas suas rotinas laborais ao abrigo da Covid 19. Desde alterações nos horários, equipas espelho, trabalho suplementar não pago, alteração de folgas e suspensão de férias, tudo sob o pretexto de "proteção do trabalhador". Assim se testa o incumprimento da legislação laboral. Nas empresas onde vigora um Acordo de Empresa, as direções e entidades patronais rasgaram as regras, até porque, se a ACT sem pandemia tinha já dificuldade em realizar uma fiscalização eficiente, com esta pandemia o seu trabalho fica ainda mais comprometido, até pela necessidade de proteção dos próprios inspetores, pelo confinamento e pelo acréscimo dos abusos.

O fosso e os danos que o trabalho presencial e o teletrabalho criaram entre trabalhadores nestes dois regimes ainda não é conhecido, mas em empresas que têm ambos os regimes, as relações laborais dificilmente voltarão a ser as mesmas. Com o tempo, teremos colegas de trabalho que não se conhecem pessoalmente ou que nunca falaram.

fica evidente a necessidade de alterar a legislação, para que proteja os trabalhadores, quer os que estão em trabalho presencial, quer os que estão em teletrabalho

Em jeito de conclusão, e com o cenário descrito, fica evidente a necessidade de alterar a legislação, para que proteja os trabalhadores, quer os que estão em trabalho presencial, quer os que estão em teletrabalho. Se é previsível que os dois modelos continuem a coexistir, é preciso que isso aconteça com dignidade. Por outro lado, devemos aumentar a fiscalização laboral, para que a legislação existente seja cumprida e a precariedade seja erradicada. As centrais sindicais, os sindicatos e as Comissões de Trabalhadores já deviam estar a apresentar propostas de alteração, em prol dos trabalhadores, antecipando-se assim às investidas patronais. Seria um ganho para os trabalhadores. Nessas alterações, é de extrema importância clarificar o regulamento de proteção geral de dados. Sem essa clarificação, a continuação da atividade sindical estará em risco e, com ela, os próprios direitos dos trabalhadores. Se não agirmos já, corremos o risco de assistir, passivamente, ao desaparecimento de muitos direitos dos trabalhadores, com a precariedade a aumentar e a força laboral organizada a ser irremediavelmente desarticulada.

Artigo de Nelson Silva, coordenador da Comissão de Trabalhadores da RTP, membro do Conselho Nacional da CGTP e dirigente do Bloco de Esquerda

Sobre o/a autor(a)

Coordenador da Comissão de Trabalhadores da RTP, membro do Conselho Nacional da CGTP e dirigente do Bloco de Esquerda
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Neste dossier:

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