Teletrabalho e Saúde Mental

Optar por teletrabalho é bem diferente de trabalhar a partir de casa por "imposição" de uma pandemia que surgiu sem aviso e que, por isso, não deixou alternativas nem deu tempo para que o processo se tivesse organizado como todos desejaríamos. Artigo de Ana Matos Pires.

07 de fevereiro 2021 - 11:50
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“Trabalhando a partir de casa” por Daquella manera/flickr
“Trabalhando a partir de casa” por Daquella manera/flickr

Em rigor, e de acordo com o Código do Trabalho, o teletrabalho é a "prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação". O termo tem sido usado de uma maneira mais ampla como significando "trabalho a partir de casa" e não apenas como "teletrabalho contratualizado". É dessa forma mais generalizada que aqui o usaremos.

Optar por teletrabalho é bem diferente de trabalhar a partir de casa por "imposição" de uma pandemia que surgiu sem aviso e que, por isso, não deixou alternativas nem deu tempo para que o processo se tivesse organizado como todos desejaríamos.

O Barómetro Covid-19 é um projeto de investigação da ENSP da Universidade Nova de Lisboa e o seu grupo da Saúde Ocupacional - António Sousa Uva, Florentino Serranheira e Marta Mello e Sampayo - desenvolveu um questionário dirigido a pessoas que tivessem tido uma experiência de teletrabalho e cuja aplicação decorreu entre os dias 12 de Maio e 3 de Junho de 2020.

Não sendo uma amostra representativa da população geral dá-nos algumas pistas importantes. Os resultados apontaram para a existência "de um elevado nível de resiliência", com uma boa capacidade de adaptação e gestão entre vida pessoal e teletrabalho, ainda que, como referem os autores "A falta de apoio dado por parte das empresas quer ao nível da saúde e segurança do trabalho, quer ao nível de comparticipação de equipamentos e meios de trabalho, indispensáveis para o desenvolvimento do teletrabalho" seja inquestionável.

desenvolver teletrabalho sem ser por opção própria e em confinamento tem, com toda a certeza, consequências substancialmente diferentes e piores sobre a saúde mental das pessoas

Por outro lado, e com resultados que dizem respeito também ao primeiro confinamento, um estudo da Universidade do Minho coordenado por Pedro Morgado mostrou que continuar a trabalhar, mesmo que na forma de teletrabalho, foi um fator protetor da saúde mental quando a comparação é feita com ter parado de trabalhar.

O prolongamento no tempo deste estado pandémico e das consequentes adaptações e readaptações necessárias à prática da atividade laboral obriga a que novas avaliações sejam necessárias para que se responda com sustentação à pergunta "quais os efeitos do teletrabalho na saúde mental dos portugueses?".

Enquanto não temos esses dados parece-me importante deixar algumas reflexões, e alertas, sobre o assunto.

Em primeiro lugar, desenvolver teletrabalho sem ser por opção própria e em confinamento tem, com toda a certeza, consequências substancialmente diferentes e piores sobre a saúde mental das pessoas.

As dificuldades de gerir os períodos de trabalho, de vida familiar e de lazer trazem riscos psicossociais acrescidos

As dificuldades de gerir os períodos de trabalho, de vida familiar e de lazer trazem riscos psicossociais acrescidos. A ausência de condições físicas, nomeadamente habitacionais, para que os diferentes elementos da família desenvolvam o seu trabalho a partir de casa são outro importante fator a ter em conta e comporta riscos acrescidos de tensão familiar. Adultos com maiores níveis de ansiedade e de irritabilidade, "enfiados" numa casa sem condições potencia situações de conflito e mesmo de violência psíquica e física. Se a isso adicionarmos a permanência das crianças no mesmo espaço, já que as escolas estão fechadas e o ensino está a ser feito à distância, e também elas com necessidades acrescidas de supervisão e apoio, nomeadamente para as tarefas escolares, temos um outro fator de risco para desenvolvimento de fadiga, stresse e reações ansiosas e depressivas, por exemplo.

As desigualdades sociais determinam uma menor capacidade de resiliência

Também o aumento do sedentarismo e a diminuição das relações sociais presenciais que existem em locais de trabalho saudáveis contribuem para o agravar o risco de mau funcionamento emocional e consequente prejuízo da saúde mental.

As desigualdades sociais determinam, também elas, uma menor capacidade de resiliência, com consequente prejuízo da saúde mental.

A manutenção das rotinas básicas possíveis nesta altura, com horas destinadas às paragens laborais e ao cumprimento dos horários de refeições, a manutenção do regular ciclo sono/vígilia e o exercício físico dentro ou fora de casa, são dicas que ajudam a proteger a saúde mental e a prevenir a doença

No jornal Público de domingo foi publicada uma reportagem onde era referido que "Sara Falcão Casaca, professora do ISEG-School of Economics and Managment, alerta que esta modalidade de trabalho vem reforçar as desigualdades entre homens e mulheres e espera que os estudos que estão a ser feitos neste momento possam ser um "farol importante" para o conhecimento sobre os impactos de género da pandemia e sobre o efeito do teletrabalho na conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar. "Todos os estudos que vamos conhecendo, a nível europeu e internacional, dão conta de como o trabalho doméstico e relativo ao cuidar tem aumentado com a pandemia", sendo as mulheres quem maioritariamente responde a este aumento da demanda. Este aspeto particular quando se pensa no acentuar de desigualdades merece, da parte de quem trabalha em saúde mental e das entidades responsáveis pelo desenvolvimento de estratégias de intervenção em saúde mental, uma atenção redobrada e o planeamento de resposta direcionadas.

A manutenção das rotinas básicas possíveis nesta altura, com horas destinadas às paragens laborais e ao cumprimento dos horários de refeições, a manutenção do regular ciclo sono/vígilia e os exercício físico dentro ou fora de casa, são dicas que ajudam a proteger a saúde mental e a prevenir a doença. Sensibilizar as entidades empregadoras para que sejam desenvolvidos programas de apoio psicossocial integrados na Saúde Ocupacional, quer já quer quando a tão desejada normalidade pós-pandemia voltar, parece-me absolutamente necessário e julgo que da parte da tutela deverão sair indicações precisas neste sentido.

Artigo de Ana Matos Pires, médica psiquiatra. Assessora do Programa nacional para a Saúde Mental da DGS

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