Seara Nova: A consciência crítica da República

porLuís Farinha

A Seara Nova afirmou-se desde o início como a face visível de um projeto cultural e político que balizava a sua ação pela construção de um pensamento crítico, inspirador para as elites que governavam o país e escola de civismo para a nação republicana. Por Luís Farinha.

17 de outubro 2021 - 19:10
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Horácio Biu (pároco que não fazia parte do grupo fundador da Seara Nova), Faria de Vasconcelos, Raul Proença e Câmara Reys (da esq. para a dir., de pé); Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão (sentados).

A Seara Nova nasce num momento crítico da República

O seu nascimento, assinalado pela publicação do número 1 da revista Seara Nova, em 15 de outubro de 1921, deverá associar-se, contudo, ao contexto de uma República instável, com um alto grau de ingovernabilidade e um défice profundo de participação democrática. As eleições de julho de 1921 tinham dado a maioria ao Partido Liberal, numa mudança de turno que aparentava sinais de democraticidade, com afastamento do PRP, dominante durante todo o regime, em função de eleições que passaram a ser vistas como atos pouco transparentes.

Na verdade, a ascensão do Partido Liberal de António Granjo ocorrera no mesmo quadro eleitoral, sob o domínio de uma lei eleitoral restritiva e a influência de caciques locais vindos das forças políticas tradicionais da República. Nada mudara, a não ser a orientação da linha política concreta, embora muito limitada pelos constrangimentos financeiros do pós-guerra e por uma profunda crise de subsistências. Enquanto António Granjo, líder do Partido Liberal e Primeiro-Ministro se procurava afirmar, setores muito diferentes do republicanismo preparavam, às escâncaras, substituí-lo por um “Governo de Salvação Pública”. Quatro dias depois da publicação do primeiro número da Seara Nova, rebentava mais uma revolta, sob o comando do histórico coronel Manuel Maria Coelho, um dos heróis do “31 de Janeiro de 1891” no Porto. O Presidente António José de Almeida levou tempo a reagir – demitindo o governo legítimo e nomeando o governo saído do golpe militar -, e assim dava lugar a um vazio de poder por onde vagueou a “Camioneta Fantasma” que, comandada por marinheiros, soldados da GNR e civis armados, perpetrou os crimes da designada Noite Sangrenta de 19 de outubro de 1921.

É nesta República com um alto grau de ingovernabilidade e de democraticidade débil, onde grupos políticos se arvoravam do direito de “moralizar o regime” com “governos suprapartidários” e onde a plebe urbana, arredada das decisões e sob uma frustração crescente, se fazia ouvir por “atos de explosão” como aquele que ocorrera na Noite Sangrenta, que os Seareiros (Raul Proença, António Sérgio e Jaime Cortesão, os mais nomeáveis) se decidem, em 1922, pela publicação de um “Programa Mínimo de Salvação Pública”, onde propunham um Governo de competências e suprapartidário para levar por diante uma política democrática e reformada. Embora a contragosto, acabarão por participar nos governos de Álvaro de Castro e de José Domingues dos Santos, em pastas onde acreditavam que era urgente uma reforma da República: António Sérgio na pasta da Instrução (governo de Álvaro de Castro, 1923-24) e Ezequiel de Campos na pasta Agricultura (governo de José Domingues dos Santos, 1924-1925).

Ingovernabilidade e debilidade democrática

No pós-guerra, a República mostrara-se incapaz de sujeitar-se a uma redemocratização – do Parlamento, do ato eleitoral e dos partidos políticos -, embora tivessem surgido numerosos e diversos campos políticos que tentaram reorganizações partidárias à esquerda e à direita do “partido dominante”: Partido Popular, Partido de Reconstituição Nacional, Partido Radical (reorganizado), Partido Liberal e, mais tarde, o Partido Nacionalista e a União Liberal Republicana. No campo da esquerda, o Partido Socialista definiu uma clara posição intervencionista (no campo governamental) e surge ainda o Partido Comunista Português.

Estiveram em gestação diferentes soluções políticas, à direita ou à esquerda da linha dominante, umas mais tecnocráticas e outras mais genuinamente de direita liberal. Chegou mesmo a almejar-se a constituição de um “Bloco” ou “Conjunção das Esquerdas”, visando trazer para a área do poder as esquerdas extra-parlamentares. Nas eleições de 1925, a Esquerda Democrática de José Domingues dos Santos chegou a constituir alianças eleitorais com o Partido Comunista, em Beja e em Lisboa.

Estas soluções partidárias, algumas tornadas experiências governamentais, nunca tiveram autonomia suficiente para levar por diante o seu projeto político. A “crónica” vitória eleitoral do PRP, em 1919, 1922 e 1925 (com exceção de 1921) e as suas maiorias parlamentares permitiam-lhe “reinar” por sobre essas experiências temporárias de governação: quase sempre conseguiu meter pessoal seu nesses governos (todos de conjunção republicana) e, mesmo nestas circunstâncias, fazia cair esses governos no Parlamento, em função da sua maioria parlamentar. O Presidente da República, com fraca capacidade de intervenção (embora com capacidade de dissolução das Câmaras desde 1919) tentou influenciar a constituição dos governos (especialmente o Presidente Manuel Teixeira Gomes, 1923-1925), mas sem poder suficiente para impedir a “tirania” do Parlamento – o “derruba governos” da República. Entre 1919 e 1921 – o “Biénio Revolucionário” da República – dos 16 governos em funções, 10 foram comandados por militares, sob a consigna da “Ordem” e um deles liderado por Liberato Pinto, um ex-comandante da GNR, força que na altura rivalizava com o Exército na influência que as armas passaram a ter nos destinos da República no período pós-guerra. A instabilidade governativa era, por isso, muito acentuada: os governos duraram em média um mês e meio, mas houve alguns que tiveram a duração de 5, 10 ou 20 dias.

O “mal” estava no Parlamento

Duplamente dependente do Parlamento (através dos poderes diminuídos do PR e dos convénios necessários para a sua constituição e manutenção através das forças representadas no Congresso), o Governo jogou sempre um papel menor: comparecia quase diariamente nas Câmaras, era normalmente compósito, tinha dificuldade em ver aprovado o seu programa ou em legislar (mesmo em matérias tão sensíveis como a aprovação do Orçamento) e era muitas vezes apeado através de moções de desconfiança por membros dos partidos apoiantes. As autorizações legislativas eram diminuídas e de curto alcance: em resultado, ou não governava ou era apeado na primeira oportunidade, acusado de “governar em ditadura”.

Para além do grau de democraticidade reduzido por um sufrágio capacitário, a inorganicidade da fórmula governativa fixada na Constituição de 1911 foi a causa mais evidente de uma governabilidade frágil e de uma turbulência social e política muito forte, fonte de descrédito do próprio regime e causa da sua agonia e queda. Governo e oposições – mais o primeiro que as segundas -, mantiveram esta situação até à queda por imobilismo. Imobilismo do partido dominante, empenhado na sua manutenção e ausência de alternativa das oposições, sempre pequenas e divididas – “muitos generais para poucos soldados” nas palavras de Cunha Leal, um dos paladinos da mudança pela via liberal de centro-direita.

A revisão constitucional de 1925 – segundo José Rodrigues Miguéis

Para além de uma tímida revisão constitucional em 1919, as outras pequenas alterações foram sempre circunstanciais (1916, 1918). Ao contrário do que podia esperar-se – e apesar da iminência da queda do regime numa ditadura militar -, os partidos eleitos na Legislatura de 1925, com poderes de revisão constitucional, prepararam-se para ignorar uma tal solução. O PRP, muito assediado pelas forças à sua direita, procurava a todo o custo não alterar o quadro constitucional para poder “durar”, como acontecera até aí. Tinha feito uma aliança pré-eleitoral com o Partido Socialista que, nessa altura, tinha como bandeira a generalização do voto, designadamente às mulheres. Esta era uma discussão que continuava a não interessar ao partido do poder. À direita, os nacionalistas – a principal força da direita parlamentar democrática – já mostrava descrença na solução democrática e parlamentar. Começava a sonhar com governos fortes e nomeados/destituídos por um Presidente da República que não dependesse do Parlamento. Ora, essa era uma solução que não cabia na via parlamentar e que só um golpe de força poderia vir a impor.

Caberá a José Rodrigue Miguéis, um jovem seareiro com prestígio – pelo menos até rutura que se daria em 1930 -, a defesa da necessidade absoluta de uma revisão constitucional séria e substancial1.

Medalhão com busto de José Rodrigues Miguéis (Cemitério do Alto de São João, Lisboa)

Um dos problemas detetados na altura era o da existência de duas Câmaras – o Parlamento e o Senado – com uma composição e funções semelhantes e sobrepostas, o que redundava num empastelamento das decisões, sem nenhuma vantagem para a eficácia legislativa do Congresso. Neste sentido, Rodrigues Miguéis defendia a substituição do Senado por um Conselho com caráter orgânico, de modo a “combater a esterilidade dos debates parlamentares”. Ao mesmo tempo, Miguéis advogava uma mais nítida separação entre poder legislativo e poder executivo, de modo a corrigir o regime de autorizações e a queda constante dos governos, por efeito de votações negativas no Parlamento. Nos mesmos textos, defendia uma correção do Regimento do Congresso, de modo a impedir “intermináveis debates”, em favor da discussão e aprovação das propostas ministeriais e a vinda do Governo ao Parlamento para apresentar contas e para responder a interpelações sintéticas, já que era muito raro o dia parlamentar em que não estavam presentes membros do Governo e mesmo o Primeiro-Ministro. Miguéis defendia ainda a redução do número de parlamentares – uma reivindicação muito cara à direita parlamentar -, e a atribuição de uma “irrevogável prioridade” para a discussão dos orçamentos. Para a provação destes últimos, defendia ainda a marcação de prazos certos, findo os quais se considerariam aprovados, mesmo se não concluída a discussão. Lembremos que, em muitos anos, a República viveu sem orçamento aprovado, por obstrução das oposições parlamentares e quedas de governo.


1 As suas ideias viriam a ser expostas em dois artigos: “Revisão Constitucional”, in Seara Nova nº 49, julho de 1925 e “Salvemos o Parlamentarismo, in Seara Nova nº 70, 16.1.1926

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