A Seara Nova e a questão colonial

A historiadora Cláudia Castelo afirma que “o programa que une os republicanos em torno da defesa do Império, das colónias como uma condição de sobrevivência da própria nação”, é “um discurso que se encontra na Seara Nova abundantemente”. Mas assinala uma viragem em 1959.

17 de outubro 2021 - 19:09
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No artigo O nacionalismo imperial no pensamento republicanoi, Cláudia Castelo refere que “o republicanismo, como vários estudiosos têm demonstrado, é um movimento plural, que congrega diversas correntes e veicula vários discursos. Porém, à semelhança do liberalismo, encara as colónias como património histórico inalienável, cuja defesa é condição de sobrevivência nacional”.

No que respeita ao grupo da Seara Nova, criado em 1921, a historiadora lembra que este, “desde o Programa Mínimo de Salvação Públicaii, defendia a nacionalização efetiva dos territórios, populações, agricultura e comércio coloniais. Pretendia romper com o círculo vicioso do parasitismo, apontando vias de desenvolvimento económico, social e cultural, quer na metrópole quer nas colónias”.

A 15 outubro de 1925, por ocasião da comemoração do quarto aniversário da revista, Jaime Cortesão lança um alerta sobre os perigos que ameaçavam o país, assinalando que, face às “cobiças que cercam as nossas colónias, base da nossa independência, nunca é demais repeti-lo, a própria segurança nacional corre perigo, a continuarmos na mesma desorganização política e administrativa”iii.

Menos de três meses depois, a 9 de janeiro de 1926, a Seara Nova publica um número especial de 36 páginas, organizado por Jaime Cortesão, que era dedicado ao “Problema Colonial”. Foram incluídos nesta edição artigos de Quirino de Jesus, Armando Cortesão, Álvaro de Castro, Leite de Magalhães, Gastão Sousa Dias, Francisco Aragão e William J. B. Chapman.

No texto de apresentação deste número, a Seara Nova afirma que “entende que a finalidade ideal da Nação, maior e profunda razão da sua independência, se liga indissoluvelmente à missão colonizante e, por consequência, à posse dos seus domínios do ultramar”.

“Destarte, qualquer perigo que impenda seriamente sobre as colónias portuguesas conturba e ameaça a vida em Portugal, no jogo íntimo das suas energias e aspirações essenciais”, acrescenta.

A Seara Nova “não julga isenta de erros e de manchas a administração colonial dos portugueses”. Ainda assim, aponta que “erros e manchas, por vezes mais graves, se podem apontar na administração colonial dos estrangeiros, sem que a opinião pública se alarme por tal motivo”, acrescenta.

“Portugal deve aos indígenas dos seus domínios ultramarinos a proteção mais eficaz e um esforço contínuo de assistência no sentido de uma crescente civilização” e “só com essa condição lhe será lícito manter a soberania sobre os seus vastos territórios”, defende.

A Seara Nova exalta ainda o colonialismo português pela ausência de preconceito racial, ao afirmar que “(…) hoje como ontem, nós podemos afirmar que nenhuma outra nação exerceu obra colonizante mais isenta dos degradantes preconceitos de hostilidade ou de repulsa pelas raças indígenas. Nada na história colonial dos portugueses que se pareça com esse aviltante e desumano desprezo que o anglo-saxão ainda hoje mantém em relação às outras raças”.

“Podemo-nos orgulhar de termos sido no passado os mais nobres criadores da Humanidade Nova; e enquanto o anglo-saxão fundava os Estados Unidos sobre a destruição total das raças aborígenes, nós criávamos o vasto império do Brasil, fundindo com mais humano esforço e em magnífica união os povos indígenas, as raças africanas e europeias”, lê-se ainda na revista.

A Seara Nova reivindica o “direito de soberania” sobre os domínios coloniais: “As outras nações têm-nos negado a possibilidade de firmar a nossa soberania sobre os direitos históricos apenas. Felizmente que a podemos igualmente reclamar pelos direitos de uma ocupação contínua e progressiva”, frisa.

Cláudia Castelo recorda que o editorial da Seara Nova de janeiro de 1926, “num tom algo catastrofista”, alerta que Portugal estava, como 40 anos antes, “numa encruzilhada”: “E hoje, ou toma, apoiando-se nos seus direitos, a consciência forte e ativa dos seus destinos e deveres e delega a sua função governativa em outras mãos, mais dignas e competentes, para dilatar a ocupação económica e o esforço civilizador em África, emendando os erros e castigando as faltas; ou novamente sofrerá um vilipêndio das piores humilhações e, espoliado e escarnecido, dará mais um passo – quem sabe se o derradeiro?! - para a perdição final”.

No documentário “Há 100 anos, a Seara Nova”, de Diana Andringa, transmitido a 14 e 15 de outubro, na RTP2, a historiadora enfatiza que, nos anos 20 e 30, os republicanos “consideravam que havia todo um trabalho de civilização”, apresentando uma ideia profundamente “paternalista”. E preconizavam “a defesa da colonização, quer a colonização portuguesa agrícola”, como por exemplo” no que respeita ao planalto de Angola, “quer também a colonização portuguesa em geral, com uma aposta forte nas obras públicas”, e, por isso, “uma intervenção do Estado para viabilizar essa colonização e para aí se formarem novos ‘Brasil’ em potência”.

A historiadora Cláudia Castelo no documentário “Há 100 anos, a Seara Nova”, de Diana Andringa, transmitido a 14 e 15 de outubro, na RTP2.

“É o programa que une os republicanos em torno da defesa do Império, das colónias como uma condição de sobrevivência da própria nação. É um discurso que se encontra na Seara Nova abundantemente”, destaca.

No ano de 1955, a Seara Nova, por constrangimentos financeiros, apenas publica três números, o último dos quais é dedicado quase exclusivamente a Norton de Matos.

Cláudia Castelo diz ser “curioso que nesse período em que Norton de Matos é candidato à presidência da República” se tenha criado, “de facto, uma certa unidade com pessoas que já eram anti-colonialistas, como é o caso de Agostinho Neto”, então estudante universitário na Universidade de Coimbra.

“E Norton de Matos continua, até ao fim, perfeitamente convicto de que se tinha de defender a Nação una, e que os portugueses eram colonizadores que se conseguiam relacionar com os africanos numa base completamente diferente do que fariam os ingleses ou mesmos os franceses e que isso era, de facto, uma especificidade dos portugueses”, assinala a historiadora.

Cláudia Castelo lembra, por outro lado, que Norton de Matos depois não concorda “com a importância que Gilberto Freyre dava à miscigenação, quer no aspeto biológico quer no aspeto cultural, porque considera que os portugueses em África devem impor a sua cultura, a sua civilização e não propriamente incorporarem qualquer tipo de elemento cultural dos africanos”.

Em 1959, a Seara Nova inclui, nos números de julho e setembro, poemas de escritores de Moçambique e Angola, “alguns dos quais com um claro tom de crítica ao colonialismo”. 

“Mesmo nesta fase, já no final dos anos 50, anos 60, a Seara Nova mantém alguns seareiros um pouco mais antigos, como é o caso de Augusto Casimiro. Mas depois gente nova, com outra maneira de encarar também a questão colonial”, afirma a historiadora.

De acordo com Cláudia Castelo, “a presença daqueles poemas em concreto é uma evidência indiscutível de que a Seara estava mudada. E a referência que é feita, no texto sobre a nova poesia angolana, ao movimento Vamos descobrir Angola já nos mostra uma certa sintonia também com a luta anti-colonial e com a aspiração à independência em Angola e em Moçambique”.


i In A Primeira República e as Colónias Portuguesas, José M. Sardica (coord.) - Lisboa, EPAL/CEPCEP, 2010, 187 p., ISBN 978-972-9045-27-1

ii Publicado a 15 de abril de 1922 no nº 12 da revista Seara Nova.

iii Documentário “Há 100 anos, a Seara Nova”, de Diana Andringa, transmitido a 14 e 15 de outubro na RTP2.

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