No final da década de 60, como muitos dos meus amigos, lia a Seara Nova com especial atenção à informação internacional (quando lograva escapar à Censura) e, sobretudo, à secção Factos e Documentos, em busca dos sempre saborosos nacos de prosa do “Venerando Chefe de Estado” de então, Almirante Américo Tomás, que a revista reproduzia para gáudio dos leitores. Leitura obrigatória, a desses discursos em que o citado fazia de uma visita presidencial a primeira, desde a última, e ao inaugurar uma obra adiantava esperar que em breve fosse insuficiente e tivesse de ser substituída.
Evidentemente, esta leitura de riso fácil e artigos escolhidos não me classificou para ser uma conhecedora da história seareira – nem mesmo do sempre referido “pensamento seareiro”.
Aqui estavam, no entanto, uma revista que durante anos se esforçou por difundir o conhecimento, defender a liberdade, a democracia, a justiça social, e um punhado de homens (a que se foram somando algumas mulheres) que, em nome desse ideal e da crença no poder das ideias e na importância das palavras, arrostou durante décadas com prisões, exílios, perseguições várias, para já não falar dos múltiplos cortes de Censura, que por vezes inviabilizavam mesmo a saída do número da revista. Mereciam, certamente, ser lembrados. E foi assim que, sem grande fé na minha própria capacidade, aceitei o desafio do Luís Andrade de fazer um documentário sobre a Seara Nova.
Para lá das leituras indispensáveis, da revista e sobre a revista, socorri-me das defesas habituais: ordem cronológica; entrevistados conhecedores; bons textos; um bom leitor que lhes desse voz. Mesmo assim, para lá das páginas da Seara Nova e de jornais da época, de algumas, poucas, fotografias, faltavam, naturalmente – sobretudo em relação aos primeiros anos – imagens de sustentação. O leitor tornou-se por isso personagem, percorrendo os caminhos e locais andados pelos seareiros: a rua António Maria Cardoso, onde foi a primeira redação (e onde, anos mais tarde, seria a sede da PIDE, que prendeu tantos colaboradores da revista), o café A Brasileira, ali tão próximo, a Cadeia do Aljube. Juntaram-se-lhe alguns figurantes que, no início do documentário, deram voz às preocupações seareiras sobre a situação da República – e apoiaram o texto da “Nota Oficiosa” da Seara Nova sobre o golpe militar de 28 de Maio de 1926. E, obviamente, os rostos e as vozes dos entrevistados, permitindo traçar não só a história da revista, mas dos tempos que atravessou – e, por vezes, tornar mais claro aos espectadores de hoje o pensamento dos seareiros dos primeiros tempos, fosse explicando a razão de algumas polémicas fracturantes que atravessaram a revista e dividiram os seareiros – desde questões claramente políticas a literárias ou científicas – a evolução das posições da revista sobre a questão colonial, o denodado combate dos seareiros contra a ditadura, ou, até, tornando mais próximos acontecimentos quase centenários, ao pensar a participação de militares no golpe de 28 de Maio de 1926, recordando os anos de 74/75.
Num documentário sobre uma revista, a palavra escrita teria de ser, ela própria, uma personagem, ganhar vida, tornar-se imagem – o grafismo era, pois, componente indispensável do documentário.
Alguns textos, como a carta de princípios com que a Seara se apresenta aos seus leitores, eram de escolha evidente. Outros foram surgindo à medida das leituras, da sua ligação com os acontecimentos históricos – o assassinato de António Granjo, escassos dias depois da saída do 1º número da revista, o 28 de Maio de 1926, a substituição de Salazar por Caetano – dos cortes de Censura que os vitimaram… E ainda houve os que surgiram quase por acaso, num virar de página, e se impuseram pela beleza e a justeza das palavras – caso do poema “Presença”, de António Ramos Rosa…
Aliás, ao longo das leituras para o trabalho, concordando ou discordando dos escritos, impressionou-me sempre o extraordinário uso das palavras, o domínio da língua portuguesa, tão diferente do reduzido léxico que domina hoje a vida política e a comunicação social portuguesa, recordando-me o aviso de um professor metodólogo de Português, professor Joaquim Rosa:
“Parece, muitas vezes, que no tempo da ditadura, que mais não fosse para fugir à Censura, se era muito mais rigoroso e criterioso no uso da palavra. Paradoxo dos paradoxos, dir-se-ia que nós, portugueses, depois de nos ter sido permitida a liberdade, deixámos de cuidar do lugar eminente onde a liberdade se alberga e manifesta. Dir-se-ia que, malgré soi, a ditadura, ao obrigar à vigilância do discurso, cuidou mais da liberdade do que a democracia. Se assim é, acautelemo-nos, pois estamos maduros para nova ditadura.”
Outros lembraram-me que, se muito daquilo por que os seareiros lutaram se realizou (tristemente após a morte dos seus fundadores), muito está ainda por realizar e parece por vezes voltar a estar em perigo.
Um desses textos, de Raúl Proença, escrito em 1926, chegou a ser lido e gravado, mas sacrificado ao tempo útil do episódio televisivo. A sua justeza, a sua actualidade, merecem que o recorde aqui:
“Chama-se Liberdade de Imprensa o direito exclusivo que têm certos potentados ou certos malfeitores, graças à sua fortuna ou às suas chantagens, de influir na opinião do país. O problema não está, evidentemente, em impedir a liberdade desses homens, mas em pôr a imprensa ao alcance de todos, de maneira a que os argentários não continuem a possuir o monopólio da opinião… Chama-se liberdade económica à liberdade que têm alguns indivíduos de se oporem, em nome dos interesses criados, à liberdade de todos os outros.(…) A democracia encontra-se viciada no seu próprio âmago enquanto não resolver estes três problemas capitais: liberdade de educação para todos, direito de imprensa para todos, independência económica para todos. (…) Creio que cada dia se imporá com maior clareza que o liberalismo económico é uma das formas mais revoltantes do privilégio e do despotismo.”