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Sarah Maldoror: “guerreira das ideias”, “poeta das imagens”

‘Guerreira das ideias’, ‘poeta das imagens’ ou ‘realizadora romancista’, assim foi Sarah Maldoror e será possível apreciá-la, em todo o seu esplendor, em Monangambé e Sambizanga. As sessões serão apresentadas pela filha de Sarah Maldoror, Annouchka de Andrade. Texto de Tânia Leão
Monangambé
Monangambé

Sarah Maldoror (1929?-2020) nasceu Sarah Ducados, em ano e localidade incertos, filha de mãe francesa e de pai antilhano. Guadalupe ou o Sul de França serão as zonas de nascimento mais prováveis. Sarah adotou o pseudónimo Maldoror em homenagem ao poeta surrealista Lautréamont, autor de Os Cantos de Maldoror. Próxima de Aimé Césaire, ligou-se a várias outras figuras fundamentais na afirmação da Négritude, um movimento social, cultural e político de afirmação da cultura e identidade negras, indissociável da luta anticolonial e do pan-africanismo.

Antes de se iniciar no cinema, foi cofundadora, em Paris, da Companhia de Arte Dramática Les Griots — a primeira companhia totalmente composta por atores africanos e afro-caribenhos. Griots são os contadores de histórias ou guardiões das palavras africanos, uma tradição assente na oralidade, determinante na circulação de saberes e conhecimentos em países africanos, conceito resgatado por Maldoror. O objetivo da companhia era dar a conhecer as obras e a literatura de autores negros, autonomamente, desprendida do meio artístico tido por legítimo, promovendo, desse modo, a afirmação de uma cultura sistematicamente oprimida e invisibilizada.

Este primeiro ato revolucionário é bastante eloquente de um posicionamento que esteve sempre presente no percurso de Maldoror: o de valorizar e promover a perspetiva dos povos negros sobre a cultura e os acontecimentos históricos.

No início dos anos 60, Maldoror afasta-se do teatro com o desejo de participar mais ativamente nas lutas de libertação africanas. Abraça o cinema por considerar que esse seria um veículo mais eficaz para envolver uma população maioritariamente analfabeta e para nela despertar a revolta e consciência políticas.

Nessa mesma altura, ganhou uma bolsa da União Soviética para ir estudar cinema no Gorki Studio, em Moscovo. Aí aprendeu os fundamentos do cinema soviético, o seu aprimoramento técnico, começando a trabalhar como assistente de realização de Mark Donskoi (a par, por exemplo, de Ousmane Sembène).

Finda a formação em Moscovo seguiu para a Argélia, mais concretamente Argel, onde se travavam as lutas pela libertação do domínio colonial francês. Aí, e antes de se estrear no cinema como autora, foi adquirindo experiência como assistente de realização em obras emblemáticas da luta pela independência africana e da afirmação negra. Foi assistente de Gillo Pontecorvo no memorável La Battaglia di Algeri (1966), drama político que documenta a revolução argelina e a guerra que culminou na independência em relação à França, e que venceu o Leão de Ouro do Festival de Veneza nesse mesmo ano. Em 1969 trabalhou com William Klein no documentário Le Festival Panafricain d’Alger, um filme de culto, engajado, que regista a primeira edição de um evento que pretendia celebrar a ideia de uma África livre, cruzando-o com imagens de arquivo e fortes manifestos políticos anticoloniais. Décadas mais tarde chega a colaborar com Chris Marker — que terá tido um papel central ao incentivá-la a fazer a transição do teatro para o cinema — em ‘Sans Soleil’ (1983) e em ‘L´Héritage de la Chouette’ (1989).

Foi companheira de Mário Pinto de Andrade, poeta angolano e fundador do MPLA, com quem teve duas filhas. Desta relação resultou a aproximação ao contexto português, com uma repercussão evidente nos temas e objetos tratados, razão para o cinema de Sarah Maldoror ser indissociável do passado colonial português.

Enquanto cineasta, é comum considerar-se Maldoror a primeira mulher negra a assinar uma longa-metragem. Porém, numa História feita de apagamentos e invisibilizações, outros alertam para existência de contemporâneas como Thérèse Sita-Bella, dos Camarões. Não há, a esse respeito, um consenso absoluto. Sobre uma outra dimensão, porém, não restam dúvidas: apesar de ter trilhado um percurso inspirador e de inabalável qualidade artística, Sarah Maldoror jamais usufruiu de um reconhecimento equiparável ao dos seus pares masculinos.

Até porque o cinema de Maldoror é o exemplo de um cinema militante, embora com traços de grande singularidade. As suas opções nem sempre foram recebidas de braços abertos, antes esbarraram em doses generosas de incompreensão. A cineasta guerreou contra tentativas de cerceamento da sua liberdade artística, por parte de quem considerava ser mais frutífero um cinema frontal, pedagógico e que apelasse à militância no MPLA. De facto, o cinema militante da época assentava no formato do documentário e no cinema direto, mas Maldoror privilegiou a ficção e forjou um cinema político com uma componente estética apurada. Opção sustentada num olhar que fora, afinal, educado pela escola soviética e pela sua própria experiência como mulher negra. Era a sua visão de cinema militante e foi também por ela que lutou.

Os filmes Monangambé e Sambizanga, em exibição no Desobedoc deste ano, são, nesse sentido, absolutamente exemplares. Ambos os filmes inspiram-se em obras do poeta luso-angolano José Luandino Vieira —Monangambé transpõe para o ecrã o conto ‘O fato completo de Lucas Matesso’ e Sambizanga adapta o romance ‘A Vida Verdadeira de Domingos Xavier’.

A curta-metragem Monanganbé (1968) é a estreia de Maldoror na realização. Distingue-a o facto de ser a primeira representação no ecrã, com recurso à ficção, da luta de libertação da África lusófona. O filme retrata a visita de uma mulher ao seu companheiro detido, Lucas Matesso, e o tratamento a que o prisioneiro será sujeito após o guarda que vigia o encontro de ambos escutar uma troca de palavras entre o casal, que considera crípticas e, portanto, suspeitas. O filme pretende desmascarar a ignorância do povo colonizador sobre a cultura angolana, bem como a violência com que procuravam subjugar os presos políticos. E fá-lo embalado em poesia e na música jazz avant-garde do Art Ensemble de Chicago.

Sambizanga (1973), primeira longa-metragem de Sarah Maldoror, situa-se no período da guerra de libertação em Angola e tornou-se um dos mais aclamados filmes sobre a resistência africana. Sambizanga é o nome de um bairro operário situado em Luanda onde ocorreu a primeira sublevação armada contra o regime português. O mote para o filme, que contou com Mário Pinto de Andrade como coargumentista, é a figura de Domingos Xavier, o operário que foi também resistente anticolonial, preso e torturado até à morte, em 1961, pela polícia política portuguesa. Todavia, a obra é narrada na perspetiva de Maria, a mulher de Domingos, que parte para Luanda no seu encalce. É um filme político sem ser um filme de guerra. Ao invés, é um ensaio intimista que visa salientar o papel das mulheres na luta pela libertação, fazendo contrastar a brutalidade da polícia política portuguesa com a harmonia familiar, com a sensibilidade dos cuidados e com o poder da perseverança feminina naquele contexto.

‘Guerreira das ideias’, ‘poeta das imagens’ ou ‘realizadora romancista’, assim foi Sarah Maldoror e será possível apreciá-la, em todo o seu esplendor, em Monangambé e Sambizanga. As sessões serão apresentadas pela filha de Sarah Maldoror, Annouchka de Andrade, a quem agradecemos o apoio valioso ao longo do processo de programação e de obtenção dos filmes.

A curta-metragem Monangabé foi digitalizada pelo Arsenal – Institute for Film and Video Art database, tendo por base a cópia de 16 mm do seu arquivo. A longa-metragem Sambizanga será apresentada numa versão restaurada. O restauro de Sambizanga faz parte do projeto do Património do Filme Africano, uma iniciativa criada pelo Projeto de Cinema do Mundo da Film Foundation, pela Federação Pan-Africana de Cineastas e pela UNESCO, em colaboração com a Fundação da Cinemateca de Bolonha, para apoiar na localização, restauro e divulgação do cinema africano.

Fontes:

Ascensão, Joana (2021). Sarah Maldoror, a poesia da imagem resistente. Buala. https://www.buala.org/pt/afroscreen/sarah-maldoror-a-poesia-da-imagem-resistente .

Lança, Marta (2020). Sarah Maldoror e o Cinema Africano. Buala. https://www.buala.org/pt/afroscreen/sarah-maldoror-e-o-cinema-africano .

Piçarra, Maria do Carmo (2017). Os cantos de Maldoror: Cinema de libertação da realizadora romancista. Mulemba, Rio de Janeiro: UFRJ, v. 9, nº 17, p. 14-29.

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