PET: Programa de ataque ao transporte público
1. O Governo Passos Coelho/Paulo Portas prepara a maior ofensiva de sempre no pós 25 de Abril contra o transporte público: a privatização de todos os principais operadores de transporte público no país e, em particular, nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.
2. Este programa de ataque ao transporte público está expresso no anunciado “Plano Estratégico dos Transportes (PET)” e confirmado por um documento de 31/10/2011, designado por “Simplificação Tarifária e reformulação da Rede de Transportes da Área Metropolitana de Lisboa - Por uma Mobilidade mais sustentável”, que configura o essencial das medidas desenhadas para a região de Lisboa, e que concretizam as principais orientações inscritas no PET.
3. O PET começa por anunciar um “diagnóstico do sector”, em que o o Governo “estabeleceu a implementação de um vasto programa de reformas estruturais a concretizar no sector das infraestruturas e transportes no horizonte 2011-2015”, mas na realidade trata-se de um um “vasto programa” que incide apenas sobre o Sector Empresarial do Estado (SEE).
4. De facto, o Governo, num sector onde coexistem empresas públicas e empresas privadas, parece ter-se deliberadamente “esquecido” do sector privado e de orientações estratégicas para o transporte na sua globalidade, concentrando-se apenas no sector público empresarial do Estado, como se uma “estratégia” digna desse nome fosse possível tendo apenas por objeto uma das componentes desse sector e não a sua totalidade.
5. Por outro lado, o chamado “diagnóstico do sector” não existe. Para um Plano Estratégico exigia-se uma avaliação estratégica do que foi feito até agora e, que mal ou bem, configuram opções estratégicas que foram definidas por anteriores governos (incluindo governos do PS e do PSD/CDS) e que, aliás, em grande medida, tiveram apoio nas orientações emanadas da Comissão Europeia e, em particular, do Livro Branco dos Transportes.
Todo o documento se concentra num suposto “diagnóstico” do sector público dos transportes, tecnicamente errado e orientado para o objetivo enunciado no próprio documento: “abrir espaço para a iniciativa privada”, o que equivale a dizer, “estender a privatização a todo o sector dos transportes”, em todo o lado onde isso for possível: serviço de transporte urbano e interurbano, rodoviário e ferroviário, fluvial, marítimo e aéreo, bem como no sector das respetivas infraestruturas.
6. Do anterior PET, que chegou a estar em discussão pública em 2009, não há uma linha de avaliação. Do anterior “Livro Branco dos Transportes”, da Comissão Europeia, que orientou uma boa parte da política de transportes em Portugal na última década, nem uma palavra. Da “Política Marítima para o sector portuário para o século XXI” também nem uma reflexão. Do “Portugal Logístico”, que orientou a construção e multiplicação de plataformas intermodais regionais, metropolitanas e transfronteiriças, também zero. Das “Orientações Estratégicas para o sector ferroviário”, igualmente zero. Das discussões e reflexões sobre o futuro do transporte aéreo em Portugal, nomeadamente sobre a construção de um NAL, a única reflexão feita é para justificar as “operações de privatização” quer da TAP, quer da ANA, Aeroportos de Portugal. Já para não falar dos vários Planos de Investimento e documentos de orientação das diversas empresas de transporte, como CP, Metropolitano de Lisboa, Carris, Metro do Porto, etc, como se nada tivesse existido e não houvesse que refletir sobre tudo isso para uma nova estratégia futura.
7. Em segundo lugar, o “diagnóstico do sector” é feito exclusivamente numa ótica financeira e não económica, ou seja, a única “orientação” expressa parece ser de demonstrar o “desequilíbrio financeiro” que o sector dos transportes evidencia, sem qualquer preocupação de explicar as razões “estratégicas” porque razão, mesmo deficitário, o sector dos transportes deve ser uma aposta estratégica para alterar o perfil da mobilidade no sector do transporte de passageiros como de mercadorias.
Programa de auto-estradas, desenvolvido desde 1985,
constitui uma opção estratégica errada
8. No sector das infraestruturas rodoviárias, o PET constata a falência do modelo das PPP na promoção das SCUT, mas não retira daí as consequências necessárias. De facto, o PET ignora um facto essencial: é que o programa de auto-estradas, desenvolvido desde 1985, sistematicamente, por governos PSD/CDS/PS, constitui uma opção estratégica errada porque nunca foi articulado com o desenvolvimento dos outros modos de transporte (ferroviários, marítimos, fluviais e aéreos). O desenvolvimento ininterrupto do Plano Rodoviário Nacional a todo o custo, criou um contexto de política de transportes em que o essencial se concentrou em procurar “justificações sucessivas” para a construção de auto-estradas em eixos rodoviários onde tal parecia dificilmente justificável, com o único propósito de favorecer a iniciativa privada e, em particular, a transferência de rendimentos do sector público para o privado, visando o fortalecimento de grandes grupos económicos de obras públicas, em estreita ligação com a oligarquia financeira que sempre dominou os negócios promovidos pelo Estado nos últimos 20 anos. Essa orientação teve a sua maior expressão na multiplicação de PPPs no sector rodoviário e, em menor expressão, no sector ferroviário, previamente preparadas pela transformação do Instituto de Estradas de Portugal (IEP) em empresa pública Estradas de Portugal, com a faculdade de subconcessionar todas as atividades que, em princípio, faziam parte do seu objeto de constituição, a saber, o planeamento, construção e manutenção das vias rodoviárias principais em Portugal. A criação das PPPs, sob a direção dos anteriores Governos do PS, foi o instrumento privilegiado para promover e “engordar” os grandes grupos económico-financeiros à custa das finanças públicas, através da garantia de rendas milionárias aos privados, com taxas de rentabilidade dos acionistas privados da ordem dos 12-14%, numa operação de sangria sistemática dos cofres públicos, ainda por cima já num contexto de crise económica e financeira generalizada a nível mundial, em particular, na Europa.
9. O PET, apenas refere que “o modelo de financiamento dessas auto-estradas seria realizado apenas parcialmente através de portagens, cabendo ao Estado a remuneração das concessionárias através de pagamentos por disponibilidade”. A consequência não é de impor a revisão de todos os contratos de subconcessão através das PPPs mas apenas para garantir que os trabalhos de “manutenção” que deveriam estar a cargo das Estradas de Portugal passem a ser feitos pela EP e não abrangidos pelas subconcessões em causa (AE Transmontana, Douro Interior, Litotal Oeste, Baixo Tejo, Pinhal Interior, Algarve e Baixo Alentejo). Tudo o resto, incluindo os ruinosos contratos de PPP restantes, continuarão a ser executados, numa clara demonstração de que o que move o Governo nesta questão não é a essência do problema – os contratos de PPPs – mas sim uma perspetiva exclusivamente financista que tem por leitmotiv apenas o de “reduzir mil milhões de euros” na fatura das SCUT quando o que se poderia conseguir, se os contratos das PPPs fossem todos revistos, eliminando os chamados “pagamentos por disponibilidade”, poderiam ser poupanças na ordem dos 7-8 mil milhões de euros. Essa poupança seria mais do que suficiente para mais do compensar a manutenção das auto-estradas em regime SCUT sem portagem por muitos anos.
10. Pelo contrário, o Governo escolhe a opção de continuar a assegurar rendas milionárias aos grupos privados, afundando as despesas públicas, não apenas através dos pagamentos pelo Estado por essa “disponibilidade” (que vão continuar), mas também assegurando a transferência direta das receitas de portagem oriundos dos utilizadores das auto-estradas, que restarem. Entretanto, mais de 50% do anterior tráfego foi “desviado” para a circulação nas estradas nacionais, algumas que já não existem, e outras que se transformaram em autênticas vias urbanas, com todas as más consequências que facilmente se adivinham: congestionamentos, aumento de consumos, maior desgaste dos veículos, mais acidentes, mais poluição, menor produtividade e eficiência económica e social.
11. No plano da resolução do alegado “desequilíbrio financeiro” no sector das infraestruturas rodoviárias, a solução do Governo é só uma: pôr os utilizadores das infraestruturas, as famílias e as empresas a suportar, exclusivamente, o custo do anunciado “reequilíbrio financeiro”, através de mais portagens e do aumento da contribuição do serviço rodoviário, o que é o mesmo que dizer, aumento do ISPP, ou seja, aumento do imposto sobre os combustíveis=combustíveis mais caros.
Transportes públicos de passageiros:
Pôr os mesmos de sempre a pagar (trabalhadores e utentes)
12. Em terceiro lugar, no capítulo dos transportes públicos de passageiros, a análise é a mesma que nas infraestruturas e a receita é também a mesma: pôr os mesmos de sempre a pagar (trabalhadores e utentes).
Com este Governo, isso já não constitui novidade. O que é novidade é o conjunto de “justificações” de que aquele se serve para fundamentar as suas opções de política de transporte, quer ao nível das principais orientações para as empresas de Transportes do SEE, quer ao nível de algumas medidas concretas de cortes drásticos na oferta de transporte público.
Essas “justificações” baseiam-se numa análise exclusivamente financeira de todas as empresas, como se, para cada uma destas empresas, produzir transportes ou produzir sapatos fossem a mesma coisa. Para além dos gráficos financeiros “normais” numa análise financeira (análise de balanços, principais custos e proveitos), o que realmente constitui a demonstração que estamos a lidar com uma equipa ministerial completamente ignorante relativamente à atividade transportadora é o facto de se comparar a oferta anual (lugaresxkm) com a procura anual (passageirosxkm) ou de comparar o custo médio por efetivo da Carris com o custo médio por trabalhador a nível nacional.
Qualquer pessoa minimamente conhecedora da atividade transportadora sabe que a “produção de transporte”, seja ao nível do serviço, seja ao nível da infraestrutura, se dimensiona tendo por referência o período máximo da procura que, no caso dos transportes urbanos, se concentra diariamente nos chamados períodos de ponta (da manhã e tarde) e, dentro destes, na hora de ponta da manhã e/ou da tarde. A grande sazonalidade (isto é, flutuação da quantidade de pessoas que procuram transporte ao longo do dia, ao longo da semana, ao longo dos períodos de férias, no inverno ou no verão) constitui uma característica distintiva da atividade do transporte enquanto atividade económica e, é precisamente por isso, que não se deve comparar simplesmente a oferta anual com a procura anual. Isso pode-se fazer, por exemplo, com uma empresa que produz sapatos, em que, no fim de cada ano se confere os desequilíbrios que pode ter havido entre a oferta e a procura e se adotam as medidas adequadas que se justifiquem. Com uma empresa de transportes, se houver comparações a fazer entre a oferta e a procura essa deve-se fazer, em primeiro lugar, nos horários de “ponta” para se avaliar os possíveis desfasamentos entre quem pretende ser transportado e quem coloca o veículo de transporte à disposição para esse efeito. É por isso que, só por ignorância ou por má fé, se pode entender o exercício contabilístico que o PET inclui na abordagem do sector.
A julgar pelo conteúdo restante do PET pode-se afirmar que se tratará de ambas as coisas. Isto porque as medidas chamadas de “reestruturação” não são para resolver alguns desfuncionamentos e decisões erradas tomadas anteriormente no sector, mas sim para preparar a entrega de todas as empresas de transportes ao sector privado, numa operação de privatização em larga escala, que pretende não deixar pedra sobre perda no SEE-Transportes.
Essa é a orientação que preside a todas as demais medidas que estão em preparação. Para tornar essas empresas mais “apetecíveis” o Governo vai-se encarregar, em 2012, de fazer o “trabalho sujo”, isto é, despedir trabalhadores, reduzir a oferta de transportes (supostamente, para reequilibrar as empresas) e voltar a aumentar o preço dos transportes, visando especialmente os passes sociais e as reduções de custo para os segmentos mais cativos do transporte público urbano, como são os idosos e os jovens.
Alvo da ação do Governo não é racionalizar o sistema:
É simplesmente prepará-lo para a privatização
13. No meio da amálgama de medidas do PET, podem-se encontrar algumas medidas que, em si mesmas, poderiam um caminho adequado para uma efetiva reestruturação do sector dos transportes, eliminando algumas redundâncias e sobretudo, a ausência evidente de integração entre os vários modos de transporte no funcionamento dentro de uma mesma região urbana ou metropolitana. A ideia de integração da Carris/ML, STCP/MP ou da Soflusa/Transtejo seria uma boa direção de trabalho nesse processo de reestruturação se o que viesse a seguir não fosse a sua privatização. Aliás, trata-se de uma ideia que, no toca ao BE, já tem mais de uma década, pois foi na candidatura de Miguel Portas à CML, em 2001, que se defendeu a ideia de que a Carris e o ML deveriam ser integradas e a autarquia deveria passar a ter presença na gestão da(s) empresa(s).
14. Na realidade, é uma verdade quase irrefutável afirmar-se que os transportes no país vivem, em geral, de costas voltadas uns para os outros, e são poucas as medidas que promovem a integração entre os vários modos de transporte. Mas esse problema é uma questão que vem desde o tempo do regime fascista e corporativo, em que os transportes foram precisamente encarados como concorrenciais uns em relação aos outros.
Em Lisboa, tem-se o exemplo caricato de se ter construído uma linha de metro nos anos sessenta a passar por baixo duma linha e estação de Caminho de Ferro (na Av. Roma) e não se ter “pensado” em construir uma estação do metro junto ou sequer em construir um acesso subterrâneo à estação de metro mais próxima…O que se passa com o ML/CP, passa-se em geral com o sistema tarifário existente, especialmente, na região de Lisboa. Nesta região, são mais de 700 os títulos de transporte que um utilizador tem para escolher! Esse é o exemplo supremo existente da desintegração entre os modos de transporte na região de Lisboa e do Porto (neste caso, é menor, apenas porque a escala é também diferente).
Que se atue neste campo é quase uma decisão de bom senso. Mas o alvo da ação do Governo não é racionalizar o sistema: é simplesmente prepará-lo para a privatização. Por isso, o principal alvo é atacar os passes sociais e tentar acabar com eles, mesmo que, em nome de uma ação contra a “desintegração tarifária”, se defina por exemplo, um bilhete único metro/carris ou um passe de cidade que integra metro/carris ou ainda que, com a fusão do ML/Carris ou STCP/MP ou Soflusa/TT se eliminam algumas dezenas de títulos de transporte automaticamente.
15. Do ponto de vista da gestão das redes de transportes urbanos de Lisboa e Porto faz sentido que o Metro/Carris ou a STCP/MP sejam integrados enquanto realidades empresariais. No primeiro caso, trata-se de uma ideia que há muitos anos o Bloco vem defendendo, por se entender que essa seria a melhor de forma de alcançar sinergias e economias de escala numa série de serviços de gestão da oferta, quer ao nível duma maior integração entre modos de transportes, quer ao nível da maior eficiência ao nível de serviços de gestão de recursos humanos e materiais. Só que sempre defendemos que essa unificação (a exemplo do que acontece em algumas capitais europeias como Paris, Londres ou Madrid) deveria salvaguardar o caráter público das empresas e assegurando que as autarquias tivessem uma representação importante na direção da empresa pública unificada, exatamente para pensar e gerir as redes de transportes ao ritmo do desenvolvimento da própria cidade de Lisboa. Se isso já tivesse acontecido seguramente que, por exemplo, já se teriam reduzido o números de títulos de transporte que cada uma das empresas produz isoladamente e já se teria criado há muito o tal “passe cidade” que o Governo pretende agora exibir como uma “descoberta” contra a “desintegração tarifária” existente.
Eliminação do sistema de passes sociais na AML
16. Mas neste plano, o Governo só toma as decisões que vão no sentido de preparar a privatização das empresas e, portanto, de favorecer a prazo a entrada de privados no sector. A principal dessas decisões diz respeito à eliminação do sistema de passes sociais na AML.
Os passes sociais na AML, criados em 1977-78 no período pós-25 de Abril, combinado com um grande esforço de investimento no transporte público, sobretudo no transporte rodoviário, constituíram um grande impulso para o exercício do direito à mobilidade por parte de largas camadas da população que, até ao 25 de Abril, eram obrigadas a serem transportadas em “latas de sardinha” para as suas deslocações quotidianas ou ocasionais. O passe social, na região de Lisboa, democratizou efetivamente o acesso à mobilidade pelas pessoas e representou um acréscimo efetivo na qualidade de vida das populações e no desenvolvimento de novos polos urbanos na região metropolitana.
Hoje, com este PET e com este Governo, é tudo isso que está em causa.
O passe social, apesar de não ser sequer nomeado no PET ou no documento sobre “simplificação tarifária”, já foi pré-anunciado como sendo o alvo principal do ataque da orientação do Governo em termos de política tarifária, quando não apenas se escreve que se pretende com a “reestruturação”, a “adequação dos tarifários ao custo efetivo do serviço prestado”, como também foi anunciado pelo próprio SET a extinção dos benefícios de redução dos passes sociais para “estudantes e reformados”, que equivalia a 50% do preço de custo.
O “argumento” de que esse desconto estaria a ser “aproveitado” pelos filhos dos “ricos” para sacarem benefícios aos cofres do Estado ou pelos pensionistas “ricos” para abusarem do “desconto” que lhes era oferecido, é quase inacreditável de tão “básico” para justificação de uma decisão política por parte do Governo, o qual, face a tudo o que é serviços públicos, tem afinal, a mesma posição de fundo: o acesso a serviços públicos que constituem a arquitetura do Estado Social, tais como a educação, saúde, segurança social, transportes, ambiente, cultura, etc, devem desaparecer, para dar lugar à ideia ultra liberal de que os serviços públicos não devem ser providos pelo Estado mas sim por privados, quem quiser aceder a eles deve pagar, ficando a imensa maioria, que não pode pagar, obrigada a serviços públicos para pobres, de 2ª categoria, má qualidade, escassos e inacessíveis.
Redução brutal dos níveis de oferta de transportes públicos
17. Nos transportes, essa regressão encontra-se em curso com os planos de redução da oferta, a pretexto do “reequilíbrio financeiro” do sector.
A própria ideia de “reequilíbrio financeiro” para se atingir um EBITDA (antes de juros, impostos, depreciações e amortizações) no final de 2012 “para os transportes públicos terrestres” é não só algo de bizarro como bem revelador da inconsistência da equipa do ministério da economia.
Em primeiro lugar, “transportes públicos terrestres”? Será que lemos bem? Saberá o governo as realidades tão diferentes que coexistem a este nível entre uma empresa de transporte rodoviário urbano (como a Carris ou STCP) ou um empresa de transporte ferroviário como é o caso da CP (para já não falar na diferença estrutural existente entre um serviço interurbano de longo curso com o serviço de transporte suburbano em Lisboa e no Porto)? Como é que se conseguirá um EBITDA no fim do próximo ano “equilibrado”, quando se sabe que, em 2010, o défice de exploração das empresas públicas do SEE de transportes ultrapassaram os 300 M€?
Com este Governo, dizer e escrever o maior dos absurdos com o ar mais sério deste mundo entrou no quotidiano da governação. Mas, para além destes aspetos quase anedótico, a verdade é que o que se prepara em termos de oferta de transportes públicos “terrestres” é realmente uma redução brutal dos níveis de oferta que conhecemos, mais uma vez e sempre, preparando a entrada de privados no sector.
Por exemplo, a anunciada eliminação de todas as carreiras urbanas da Carris que tinham extensões nas regiões periurbanas como forma de ajudar à mobilidade de penetração por parte das pessoas a um mesmo custo e tentando responder eficazmente ao alargamento da área de influência direta das grandes cidades, serão eliminadas sob o argumento expresso que essas ligações “ultrapassam” a concessão da Carris, limitada a Lisboa. Ao mesmo tempo, o Governo nada diz do argumento contrário que poderia ser invocado relativamente ao facto de largas dezenas de carreiras de autocarros suburbanos terem uma profunda penetração em Lisboa, muitas delas até ao centro da cidade Marquês de Pombal).
Em qualquer caso, cerca de 30 carreiras ditas “suburbanas” da Carris serão eliminadas ou encurtadas até às periferias urbanas. Algumas, talvez sejam retomadas por privados, mas a maioria irá desaparecer. Com isso, as pessoas verão a sua mobilidade reduzida, mais cara, mais difícil, mais longa, mais incómoda e, em muitos casos, irão optar pelo transporte privado para as suas deslocações. Com a agravante evidente que tudo isso terá, a prazo, muitos maiores custos para cada família e para o país, em termos de aumento dos consumos de energia, maior desgaste de material, mais poluição, maiores congestionamentos e menor produtividade social.
18. No transporte ferroviário, a perspetiva é a mesma. Na ferrovia ligeira, todos os sistemas de metro ligeiro que os próprios partidos da direita invocaram e “defenderam” ao longo dos últimos anos, desapareceram da linguagem do governo e deste PET. Por exemplo, o Sistema do Metro do Mondego ficou definitivamente bloqueado. “O Governo irá rever os pressupostos”, ou seja, ficará para um dia destes se “tratar do assunto”. O desenvolvimento das redes de metropolitano de Lisboa, Margem Sul e Porto, tudo isso foi bloqueado ou mesmo eliminado. Não há nenhuma perspetiva estratégica para o desenvolvimento destes modos de transporte: a única perspetiva é parar, suspender e reduzir.
No transporte ferroviário pesado, aquilo que já tinha sido anunciado pelo anterior governo de Sócrates, será agora concretizado. Mais de 600 kms de linha do serviço ferroviário regional vão ser eliminados, o que significa encerrar de facto o serviço regional e inter-regional de comboios da CP. Algumas linhas, que motivaram até a “indignação” de alguns dos atuais membros do Governo (como a Linha do Oeste) irão encerrar. Outras, cujo encerramento apenas estava oficialmente suspenso (linhas de via estreita do Corgo, Tâmega e Tua), acabam. Outras ainda, que até prestavam um bom serviço às populações e tinham níveis de procura bastante acima da média (como é o caso da linha do Vouga), também irão encerrar.
Ainda na sequência do “trabalho” deixado pela anterior equipa, as linhas suburbanas da CP de Lisboa e Porto, que são já “apetecíveis” para a exploração privada, serão privatizadas.
19. Por fim, na rede de alta velocidade anuncia-se o “fim do TGV”, mas não se diz se o projeto de PPP para a construção da linha Poceirão-Caia vai ser suspenso. O que parece resultar do enunciado pelo Governo é que a linha deixará de ser de Alta Velocidade para passar a ser de “elevadas prestações”, ou seja, passar-se-á para uma linha de AV de tipo II, semelhante às linhas que servem os comboios pendulares que já temos em circulação em Portugal ou em alguns países europeus: linhas que permitem velocidades elevadas de cerca de 250 km/h (mais baixas que os 350 km/h de AV), menores raios de curvatura, maiores inclinações (portanto, menos túneis e viadutos) e, por isso, cerca pelo menos um terço mais baratas face às linhas de AV. Tudo isto soluções que o Bloco já tinha defendido na proposta de Plano Ferroviário Nacional que apresentou na anterior legislatura.
O resto da ferrovia pesada está ainda muito vago e impreciso, exceto numa questão que, aparentemente, enche a boca do governo: é a prioridade para o transporte ferroviário de mercadorias. Não se põe em dúvida que o transporte de mercadorias por via ferroviária é uma das opções estratégicas que, a ser desenvolvida, irá alterar o perfil de mobilidade no transporte de bens, nacional e internacionalmente. Desse ponto de vista, as ligações aos portos em bitola europeia e a operacionalização de várias linhas de transporte internacional de mercadorias com esse objetivo serão essenciais. Mas o que não se percebe é se o que o governo quer desenvolver é só o transporte de mercadorias ou se é o transporte ferroviário de mercadorias e de pessoas. Porque, da mesma maneira que para um país como Portugal, pareceria uma ideia peregrina a aposta no transporte ferroviário de AV só para passageiros (Lisboa-Porto ou Lisboa-Madrid), da mesma maneira este governo parece optar pelo reverso dessa política quando defende apenas a prioridade só para o transporte de mercadorias.
19 de novembro de 2011