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Política, mentiras e vídeo

Um homem ligado aos negócios e à política tentou subornar um deputado na recente eleição para presidente. Nada lhe aconteceu, o que mostra bem o estado da corrosão da austeridade nas instituições gregas. Artigo de Nikos Smyrnaios.
O ator Pavlos Haikalis - aqui numa capa e revista em 2010 - denunciou com provas ter sido alvo de corrupção mas deve acabar por ser ele o acusado... por calúnias ao primeiro-ministro.

A Grécia avança para eleições antecipadas num clima nauseabundo. O complexo político-financeiro e mediático que governa o país há 40 anos dá um triste espetáculo. O último episódio deste drama patético foi a tentativa de subornar um deputado, registada em vídeo. Esta é a última reviravolta no processo de desintegração do sistema político tradicional que, apesar disso, dá esperanças de mudança.

O ator no coração do drama político

Pavlos Haikalis é deputado de um pequeno partido nacionalista e anti-austeridade “Gregos Independentes” desde as eleições de maio de 2012. Mas é sobretudo um comediante popular, que desempenhou papéis de comédia no cinema, teatro e em várias séries de televisão. Agora o seu destino foi assumir o papel mais importante da sua carreira no átrio de entrada de um hotel de Atenas, sobo olhar de uma câmara oculta. O papel de Haikalis era o de apanhar o seu interlocutor.

No vídeo, lançado pelo seu partido numa conferência de imprensa a 19 de dezembro, aparece sentado com Giorgios Apostolopoulos, homem das finanças, ex-executivo do Deutsche Bank e assessor político na sombra. O financeiro oferece a Haikalis vários milhões de euros. Em troca pede-lhe para votar no candidato do governo para o cargo - honorífico - de presidente da República. O objetivo da manobra é alcançar a maioria parlamentar qualificada de 180 em 300 deputados e assim evitar as eleições antecipadas.

A confusão ou como abafar um assunto de Estado

Num país “normal” estas revelações teriam sido um terremoto. Os políticos ter-se-iam demitido; a Justiça teria detido o agente corruptor; os principais meios de comunicação teriam destacado o facto nas suas capas, investigando a verdade sobre os patrocinadores do agente. Mas na Grécia não. Após quatro anos de austeridade extrema as instituições metem dó e o conplexo político-financeiro e mediático que governa o país está disposto a utilizar todos os meios ao seu alcance para permanecer no poder.

Por isso, o primeiro-ministro Samarás anunciou que apresentou uma queixa-crime contra Haikalis (!!) por calúnias, numa pura e simples tentativa de intimidação. Por seu lado, o magistrado ouviu o agente corruptor na qualidade de testemunha, sem o deter. Os meios de comunicação dominantes - canais de televisão e jornais pertencentes aos magnatas do país - informaram amplamente a sua versão.  Eles atacaram Haikalis, destacando todos os elementos que pudessem apoiar a versão de uma “montagem”. Sendo assim, para o cidadão comum a confusão é total.

Vídeos em abundância

Os nazis da Aurora Dourada, cujos principais dirigentes estão na prisão, também participam nestas fugas de informação. Por duas vezes foram conhecidas comunicações que implicam o primeiro-ministro com um dos seus assessores mais próximos.

Porém, este não é o primeiro caso que envolve audios e vídeos comprometedores, feitos nos dois anos desde a chegada de Samarás ao poder. Os extratos das escutas policiais, no contexto de uma investigação por corrupção no futebol, revelaram a proximidade de poderosos homens de negócios com jornalistas e políticos. Aprendemos, por exemplo, que o chefe da equipa do Olympiakos, o poderoso armador Marinakis, teve influência em 2012 na eleição dos deputados do partido do primeiro-ministro, através de uma estrela do jornalismo. As escutas envolvem o próprio Marinakis e os seus próximos em negócios que vão do arranjo de resultados nos jogos de futebol ao tráfico internacional de heroína.

Os nazis da Aurora Dourada, cujos principais dirigentes estão na prisão, também participam nestas fugas de informação. Por duas vezes foram conhecidas comunicações que implicam o primeiro-ministro com um dos seus assessores mais próximos. No primeiro vídeo, datado de outubro de 2013, o deputado Takis Baltakos, próximo de Samarás, discute amigavelmente com o porta-voz da Aurora Dourada e comentam as diferentes abordagens do governo junto do poder judicial, ora para proteger ora para perseguir os nazis, segundo os interesses do momento.

No segundo extrato ouve-se o próprio primeiro-ministro supostamente a dar ordens à Procuradoria para pôr os líderes da Aurora Dourada em prisão preventiva. É a altura em que, após a morte de Pavlos Fyssas, há uma mudança da atitude do governo face à Aurora Dourada: em vez de pedir o seu apoio para enfrentar a chegada dos “comunistas” do Syriza, agora trata-se de destruí-los pela via judicial para recuperar os seus “eleitores enganados”.

A estratégia do medo, bis repetita placent

Apesar de todos estes casos e apesar da sua política ter levado o país a um beco sem saída, Samarás e seus compinchas - os socialistas gregos - ainda estão no poder. Graças a operações de propaganda em grande escala perpetradas com a ajuda dos meios de comunicação, de homens de negócios poderosos, mas também das autoridades europeias que nunca deixaram de apoiar ese governo.

Desde que surgiu a perspetiva de eleições antecipadas, a estratégia do medo, usada com êxito em 2012, foi posta em marcha. O principal argumento: a chegada do Syriza ao poder conduzirá a uma catástrofe económica, à saída do euro e uma corrida aos bancos! O próprio Governador do Banco da Grécia disse isto, afastando-se da reserva imposta pelo cargo. Mas acontece que este Governador é Yannis Stournaras, o ex-ministro da Economia de Samarás e arquiteto da austeridade.

Na Europa os artigos alarmistas da imprensa financeira, os bancos e as agências de notação ditam a pauta. Muitos funcionários seguem-na. Assim, Jean-Claude Juncker não esconde o seu apoio a Samarás para dizer que preferia ver “caras conhecidas” no poder na Grécia e evitar a chegada ao poder de “forças extremistas”, numa alusão apenas velada à esquerda radical do Syriza.

O “parêntesis de esquerda”

Mais que a estratégia do medo, o establishment parece ter pronta uma solução de recurso: o “parêntesis de esquerda”. Constatando a dinâmica do Syriza, que o conduz inevitavelmente ao poder, tudo é feito para que ele não dure.

Mais que a estratégia do medo, o establishment parece ter pronta uma solução de recurso: o “parêntesis de esquerda”. Constatando a dinâmica do Syriza, que o conduz inevitavelmente ao poder, tudo é feito para que ele não dure. Por isso, o governo avançou com a eleição do presidente após completar uma extensão de dois meses do Memorando (acordo de financiamento em troca do compromisso de austeridade e desregulação). Num cenário de eleições parlamentares antecipadas ganhas pelo Syriza, chegaria ao governo num momento em que todo o financiamento vindo da troika seria suspenso ou perto disso. Uma forma dos credores poderem pressionar os novos governantes.

Outras revelações inquietantes do portal de notícias independente The Press Project da jornalista Vassiliki Siouti: o governo e os credores estão a bloquear 11 mil milhões de euros, que constituem o saldo da linha de recapitalização dos bancos. O Syriza conta com esse dinheiro para pôr em marcha um programa contra o que apelida de “crise humanitária” que vergasta o país. O possível congelamento do dinheiro faria com que uma das suas medidas emblemáticas se tornasse inaplicável.  Finalmente, nos últimos dias, o pânico do governo e dos seus deputados leva-os a votar inúmeras emendas em despesas sem cobertura, para satisfazer os seus clientes e colocar o futuro governo ante o facto consumado.

Apesar de tudo isto, a campanha do medo desta vez não está a funcionar como em 2012. Boa parte dos gregos já decidiu romper com este sistema. Mas a tarefa do Syriza no pode não será fácil. O seu governo vai precisar de muita coragem e sobretudo do apoio crítico da sua base para não se desviar da sua linha. Porque a curto prazo o Syriza constitui o único raio de esperança nesta paisagem política devastada.


Nikos Smyrnaios é douturado em Ciências da Informação e Comunicação pela Universidade de Toulouse e escreve em blogues gregos e franceses sobre temas da atualidade. Publicado no portal Sin Permiso a 21 de dezembro de 2014. Tradução de Luís Branco para o esquerda.net.
 

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Neste dossier:

O que fará um Governo Syriza?

A três semanas das eleições gregas, o esquerda.net publica as linhas gerais do programa eleitoral e as opiniões de economistas e dirigentes do Syriza sobre os caminhos da mudança política no país e na Europa. Com a dívida e o memorando da troika no centro do debate, apresentamos também alguns relatos dos efeitos da austeridade na vida da população e como a solidariedade tem servido de antídoto à pulverização da resistência. Dossier organizado por Luís Branco.

Tsipras: Em 26 de janeiro, o governo da maioria das pessoas!

A direção do Syriza aprovou por larga maioria as bases do programa de Governo para discussão a Conferência Permanente da coligação. Leia aqui os principais pontos. Artigo do diário Avgi.

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O economista Yanis Varoufakis, conselheiro económico do Syriza, defende nesta entrevista que a recuperação grega nunca aconteceu para além da propaganda e que a saída do euro não fará parte da estratégia negocial de um governo liderado por Alexis Tsipras. Publicado em L'Antidiplomatico.

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Yorgos Stathakis é apontado como possível ministro das Finanças de um governo Syriza. Defensor de uma viragem keynesiana e de um New Deal europeu, quer renegociar a dívida e sair do memorando para dar resposta à crise humanitária na Grécia. Publicado no jornal La Vanguardia.

33 razões por que Atenas (e a Grécia) ainda está em depressão profunda

Neste artigo publicado no blogue Histologion, Mihalis Panagiotakis apresenta os dados concretos dos efeitos da austeridade na vida do povo grego, que se refletiram na capital do país.

Depois dos Merkozy... os Tsiglesias?

Káki Balí, editora de economia do diário Avgi, analisa as reações da imprensa económica internacional ante o cenário de uma vitória da esquerda na Grécia.

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Aqui há uns anos, a Nova Democracia escolhia o novo líder que iria suceder a Kostas Karamanlís. Os candidatos eram a filha de Mitsotákis (o fundador do Partido Liberal) e Antónis Samarás vindo do partido Primavera Política. O resultado é conhecido. Artigo de Rias Kalfakákou.

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O governo e o primeiro-ministro tanto exploram a arma do medo, que acabam por conseguir o efeito contrário. Ninguém pode aceitar a lógica absolutamente egoísta do "ou eu ou o caos" ou considerar o direito de voto como uma insignificância. Artigo de Kalyvis Alékos.

"A vitória do Syriza servirá como locomotiva para a esquerda radical na Europa"

O professor de filosofia política e membro do Comité Central do Syriza Stathis Kouvélakis, que afirma acreditar que o partido liderado por Alexis Tsipras vencerá as eleições de forma contundente, defendeu que o velho sistema político bipartidário "entrou em colapso”.

“O Syriza precisa de um mandato claro e forte nas eleições”

Argiris Panagopoulos, jornalista e membro do Syriza, falou ao esquerda.net sobre a situação política grega no momento em que o governo de Samarás ainda tentava eleger o seu candidato presidencial.

Manifesto alemão contra a “campanha do medo” na Grécia

Declaração subscrita por personalidades do meio sindical, cultural e político da Alemanha contra a ingerência de Berlim e Bruxelas nas eleições gregas.

Austeridade arrasou sistema público de saúde na Grécia

Num país onde faltam profissionais, medicamentos e material médico e hospitalar, 3 milhões de pessoas não têm acesso a cuidados médicos. Para encher os cofres dos seus credores - aos quais pagou 63 mil milhões de euros em 2013 - o governo grego promoveu um verdadeiro saque fiscal e cortou drasticamente nas áreas sociais, como a Saúde e a Educação.

Solidariedade contra a austeridade: o exemplo da saúde na Grécia

A Clínica Comunitária Metropolitana de Helliniko é um exemplo de resposta cidadã e mobilização social pelo direito à saúde. Relato de uma visita efetuada no verão de 2014.

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Filmado em julho de 2013 na região de Atenas, este mini-documentário dá a conhecer algumas das redes de solidariedade e ajuda mútua erguidas pelas vítimas da austeridade e pela esquerda grega. Realizado por Jorge Costa e Bruno Cabral.