“Plataformas digitais são balão de ensaio para novas formas de exploração capitalista”

O investigador Nuno Boavida falou com o Esquerda.net sobre o projeto europeu CROWDWORK - Encontrar novas estratégias para organizar trabalhadores de plataformas digitais na economia Gig (2019-2021), do qual é líder científico. Por Mariana Carneiro.

30 de maio 2021 - 18:03
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Trabalhador da Uber Eats em Lisboa. Foto de Mariana Carneiro.

O universo de Plataformas Digitais de Trabalho em análise - que engloba situações com e sem presença física do trabalhador - é muito diverso. Cada plataforma acaba por ser uma realidade distinta. Pode fazer uma breve caracterização das empresas em análise no vosso projeto?

Este é um projeto de investigação competivo, financiado pela DG - Employment, e liderado por mim, que estuda a situação das plataformas digitais em quatro países europeus – Portugal, Espanha, Hungria e Alemanha. A primeira é a Uber ou semelhante nos outros três países. Por exemplo, em Espanha chama-se Cabify e é, essencialmente, constituída por táxis. A Uber tem pouca expressão. Na Hungria chama-se Bolt, uma empresa sueca sem muita expressão. E na Alemanha estão praticamente proibidos, só podem existir em determinadas faixas e segmentos de mercados específicos, limusines e coisas desse tipo. Portanto, chamar-lhe-ia mais um setor, apesar de que aquilo que nós queremos estudar é o fenómeno Uber. 

Em primeiro lugar, isto mostra bem a diversidade entre países. Em segundo lugar, também a diversidade entre plataformas. 

Para além da Uber, estudámos também plataformas de entrega de comida. Em Portugal, foi o caso da Glovo e da Uber Eats. 

No nosso projeto estudámos ainda a Upwork, que é um segmento de mercado mais qualificado, normalmente. Envolve profissionais engenheiros informáticos, web designers, tradutores, pessoas ligadas a campanhas de marketing… Chamamos-lhe o setor de freelancers. Há mais uma ou duas plataformas semelhantes, mas a que tem expressão, em particular em Portugal, é a Upwork.

Estas três plataformas digitais / setores são comuns em todos os países e estão agora a ser comparadas.

José Soeiro
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Cada país estudou mais uma plataforma específica. Em Portugal optámos por não só estudar mais uma, mas sim duas, porque a informação que existia sobre o papel dos sindicatos ou de outras organizações representativas era muito escassa, para não dizer quase nula. Decidimos estudar também a Airbnb, talvez a primeira a chegar a Portugal e que tem muita expressão no país. E ainda os call centers, que, com a covid, passaram para casa e o trabalho passou a ser feito através de plataformas.

Portanto, em Portugal estudámos a Uber, Glovo e Uber Eats, Upwork, Airbnb e os call centers em casa.

Assinalam um crescimento acentuado, desde 2016, das Plataformas Digitais de Trabalho, ainda que com significativa volatilidade. Mas as Plataformas Digitais de Trabalho têm sido apresentadas como uma forma atípica de trabalho. O que conclusões tiraram?

Tudo depende das definições do que é uma forma atípica de trabalho. Do ponto de vista das relações laborais enquanto são entendidas e discutidas cá em Portugal, não. Já teremos ultrapassado essa atipicidade. Fizemos um cálculo por alto e, sem envolver os call centers, apontamos para 80 mil pessoas que se dedicam a este tipo de atividades. E 80 mil pessoas já é uma realidade com alguma expressão. Não sabemos de quantas mais estamos a falar, podemos estar a falar em 81 mil ou em 160 mil, em particular devido à pandemia. Há aqui uma dinâmica que também não nos permite ter dados muito concretos, no entanto, temos a certeza de que estamos a falar de mais de 80 mil. Isso já não é uma forma atípica.

Mas, mais importante do que isso, estas plataformas são uma espécie de balão de ensaio capitalista para empresas que venham aí. O que acontece com elas, tendo já a expressão que têm nos mercados europeus, acaba por ser um balão de ensaio para novas formas de exploração capitalista.

Para nós é importante compreendê-las e perceber qual foi a reação em cada um destes países. Não é por acaso que, na Alemanha, a Uber, simplesmente, não entrou. Há uma lei que determina que a Uber não pode entrar. E há um conjunto de instituições, de organizações que, cooperando entre eles, bloquearam a entrada da multinacional naquele país. Aquele não é um mercado para a Uber, por oposição a Portugal. Aqui a Uber chega, começa a trabalhar ilegalmente e diz que constrói um centro tecnológico com mais de 400 ou 600 pessoas, não se sabe bem. Essencialmente, começam a penetrar no mercado português, em parte por falta de força das instituições e das organizações em Portugal, mas também apoiadas pela sociedade portuguesa. 

Aqui há uns anos atrás falávamos dos call centers como um balão de ensaio para uma precarização extrema das relações laborais. Mas no vosso estudo, comparativamente, é nos call centers que se vão encontrar relações e condições de trabalho mais estáveis. Plataformas como a Uber e a Glovo são então os novos balões de ensaio? São os seus trabalhadores os mais precários dos precários?

Eu diria que foi um balão de ensaio e que hoje em dia é um campo de batalha de relações laborais, de relações industriais. Nós detetámos a presença de cinco sindicatos no setor dos call centers a convocarem greves, a convocarem protestos, alguns deles a utilizarem os meios de comunicação social e as redes sociais de forma bastante agilizada. Até existia uma espécie de competição entre eles para ganhar esse novo espaço, esse novo mercado de trabalho. 

Os call-centers foram um balão de ensaio há uns anos atrás, e agora estamos a assistir a outro balão de ensaio. Se calhar é um pouco cedo para tirar conclusões sobre estes vários balões de ensaio. Mas eu diria que tivemos uma boa surpresa, de que não estávamos à espera, e que também resulta da intervenção do Estado, que é o caso do STRUP, da CGTP. Este sindicato tradicional, que, de repente, em seis meses, mobilizou e agregou um setor difícil, o dos TVDE, em que alguns se sentem empresários, e conseguiram ser recebidos pela Uber. Não tenho notícias disso ter acontecido em Portugal noutro momento. É um bom exemplo.

Mas também há outros exemplos em que o balão de ensaio não está a funcionar tão bem para as organizações coletivas dos trabalhadores e os trabalhadores estão à procura de uma voz que os represente. É o caso dos Glovo e Uber Eats. Há dois ou três anos houve um esforço do Sindicato de Hotelaria do Norte para os informar e os mobilizar. Depois desistiram. A história não é bem clara, porque existem alegações de que poderá haver máfia paquistanesa envolvida. Aqui em Lisboa há trabalhadores brasileiros a tentarem organizar-se junto do Sindicato de Hotelaria do Sul, mas esta estrutura tem algumas dificuldades em mexer-se nestas áreas. Há várias explicações possíveis. Primeiro, tem a ver com a CGTP e com o ponto de partida de que o trabalho deve ser estabelecido com uma relação contratual e não com uma relação ocasional ou um frete. Em segundo lugar, talvez devido à inabilidade dos próprios sindicatos de se conseguirem movimentar junto de uma força de trabalho com estas características: há muita rotatividade no trabalho; muitos deles são imigrantes, alguns não regularizados; há esquemas entre eles de subaluguer de conta e para perverter o algoritmo que confirma as suas caras… É todo um mercado de trabalho onde é difícil penetrar. 

Existem associações e movimentos alternativos que tentam preencher essa lacuna?

Há alguns coletivos que se têm tentado aproximar, com dificuldade. Falo, por exemplo, das associações de imigrantes aqui em Lisboa, dos Precários Inflexíveis, essencialmente. Mas a estrutura interna que têm é muito fraca para se poderem movimentar enquanto uma força que dá voz a um conjunto de trabalhadores. Também, às vezes, não é esse o propósito. Os Precários Inflexíveis têm encontrado alguma voz, algum eco, dentro do Parlamento, o que também é importante que se diga. Mas têm capacidades e estruturas muito frágeis, não são grandes associações.

Uma das hipóteses que levantámos no nosso estudo é a de que a conjunção de várias vozes junto do Parlamento pode levar à regulação. Isto é, sindicatos da hotelaria, Precários Inflexíveis, associações de imigrantes, ou outros coletivos ligados a esta área poderiam, coletivamente, ser ouvidos no Parlamento e, com isso, conseguir avançar alguma coisa. Mas é um pouco especulativo. Eles têm interesses diferentes, géneses diferentes, e pretendem fazer trabalhos diferentes. 

Em relação à regulação, tem defendido que o setor, onde “reina o caos”, requer intervenção e regulação. A que questões se deve dar especial atenção e que problemas considera não serem de fácil resolução?

Estamos a falar só de Glovo e Uber? Porque cada plataforma gera um mercado de trabalho específico com características específicas. 

Eu não falei, por exemplo, da Airbnb, que gera representações coletivas ao nível de associações empresariais. A Upwork gera-se em ambientes essencialmente urbanos, de pequena dimensão, muito digitais, e que têm outro tipo de interesses, mais ligados aos freelancers.

No caso da Glovo e da Uber Eats, não é propriamente uma situação fácil. Por um lado, é bom saber que um imigrante chega a Portugal e consegue encontrar uma forma de se sustentar facilmente. Há uma franja de trabalho à qual ele tem acesso. Por outro lado, ao fim de um ano, essas pessoas têm de começar a pagar e a fazer descontos. Isso gera contas falsas, gera empréstimo de contas, que, na verdade, são comissões, ou seja, mais um intermediário. Para além daquele que é o aluguer da mota, ou da bicicleta. No fundo, há uma sobre-exploração deste imigrante que chega a Portugal. Durante a pandemia, esta situação também abrangeu bastantes portugueses. 

Basicamente, na Uber Eats e na Glovo, encontrou, em regra geral, os trabalhadores mais vulneráveis, que precisam de assegurar a sua subsistência básica, o que abrange muitos imigrantes e aqueles que tiveram uma queda abrupta de rendimento durante a pandemia…

Sim, é exatamente isso. Talvez, do ponto de vista dos trabalhadores, com uma pequena nuance, que é bastante importante para a organização sindical, que é o facto de muitos deles gostarem de ter a liberdade de se ligarem e desligarem quando lhes apetece. Isso dá-lhes a ilusão de serem autónomos no seu trabalho. Na realidade, depois não é isso que nos relatam nas entrevistas, Acabam por trabalhar 10, 12, 14 horas por dia, fins de semana inclusive. Essa liberdade é como um engodo para uma realidade que depois não é assim tão fácil, muito pelo contrário. Sai fora das regras laborais portuguesas em todos os sentidos. Como qualquer pessoa pode compreender, um trabalhador com covid nestas circunstâncias não vai deixar de trabalhar. Só se não puder mesmo. Ficaria sem o mínimo para se assegurar.

A regulação nesta área tem de ser extremamente sensível. Nesta e em qualquer uma das outras áreas. 

Na sequência, inclusive, do que aconteceu nos outros países, está em cima da mesa a possibilidade de flexibilizar a presunção de laboralidade, permitindo criar uma terceira via para estes trabalhadores, que preferem trabalhar quando lhes apetece, em teoria. Alguns analistas têm dito que isto é perigoso porque pode levar à generalização de todos os precários em Portugal recorrendo a esta terceira via. A CGTP também se mostrou frontalmente contra, porque é uma forma encapotada de esconder um contrato de subordinação que existe. E a própria CIP veio afirmar-se contra esta terceira via. Depois também não é solução para as suas empresas que são, essencialmente, da economia tradicional. 

Na realidade, o que nós vemos são os parceiros sociais desconfortáveis com esta terceira via. 

Creio que concorda que falar de um trabalhador da Glovo ou Uber Eats como se de um empresário individual se tratasse foge muito àquela que é a realidade no terreno…

Sim. A ministra espanhola declarou há umas semanas atrás que “um ciclista com uma mochila às costas não é um empresário”. Essa expressão capta um pouco essa realidade. Há um engodo em que algumas pessoas caem, de que são empresárias por conta própria. Esse engodo é perigoso. 

Mas eu queria chamar aqui à atenção que cada caso é um caso. Cada plataforma gera um caso.

Neste caso estávamos a falar concretamente sobre Uber Eats e Glovo.

Sim, sobre esses trabalhadores eu creio que é claríssimo. Há uma relação de subordinação. Penso que será difícil argumentar, juridicamente até, o contrário. 

Mas pode haver debate e pode até haver alguma regulação. É a tal terceira via. Como existe subordinação mas ela é parcial ou pontual têm de ter salário mínimo, descontos para a Segurança Social, etc. Pode haver uma regulação nesse sentido. E talvez essa regulação acomode os interesses dos próprios trabalhadores que trabalham para a Glovo e para a Uber Eats, porque eles próprios gostam de poder desligar e fazer outra coisa, ou de estarem ligadas a várias plataformas ao mesmo tempo. Essa regulação pode acomodar, de alguma forma, os interesses desses trabalhadores que são talvez os mais frágeis. O problema é depois todo um precedente que se cria. 

Para falar dos 'estafetas' da UberEats e Glovo evocou o livro "Esteiros", do escritor Soeiro Pereira Gomes, para caracterizar o seu trabalho. Pode explicar-nos esta escolha?

É um livro que toca. Continuo a achar que, mesmo que com uma capa de sofisticação em cima, continua a ser intemporal. Mostra como, se não houver cuidado, as coisas podem chegar a um extremo. O extremo de esperar na praça principal até que passe o capataz para escolher a dedo aqueles de que gosta mais e os outros não terem direito a trabalhar, a trazer comida para casa. Essa realidade está sempre subjacente. A principal clivagem da sociedade contemporânea continua a ser a problemática da distribuição da riqueza. 

E o capataz passou a ser aqui o algoritmo.

O algoritmo é aqui uma capa um pouco mais espessa. O algoritmo não nasceu, alguém escreveu o algoritmo, programa-o em determinada direção. A gestão de recursos humanos continua a ser feita, só que agora é através de uma capa opaca. Não sabemos quem está por trás do algoritmo e só nos relacionamos com o algoritmo para tentar ter algum frete.

É uma espécie de caixa negra, como os engenheiros gostam de dizer. É verdade que, às vezes, quem escreve o próprio algoritmo tem dificuldade em descrever as conclusões que o algoritmo tira. Mas isso ainda torna mais incómoda a relação, porque antigamente sabia-se quem era o capataz e quais eram os seus interesses. Que gestão de recursos humanos está a ser feita com o algoritmo? É algo que não sabemos.

Recentemente, as atenções concentraram-se em Odemira, com a sobre-exploração a que são sujeitos os imigrantes e a existência de máfias. Creio que no vosso estudo encontraram situações que poderiam ser comparáveis até certo ponto. Falo em termos dos horários e ritmos de trabalho e até da existência de redes que exploram esses trabalhadores.

Foi transversal a algumas plataformas como a Uber, Glovo e Uber Eats a desregulação dos tempos de trabalho. Alguns trabalhadores diziam que estavam a fazer 12h por dia, sete dias por semana porque a Uber só conta o tempo de viagem com passageiro e tinham de trabalhar noutra plataforma para completar. Nunca atingiam o máximo permitido por lei. Esse é um caso clássico. Acontecem coisas semelhantes nos estafetas, com a utilização simultânea de várias contas.

Existem imigrantes não regularizados, que não estão dispostos a falar. E existem alegações, no Porto, da existência de uma máfia que controla essencialmente trabalhadores do Paquistão. São alegações, atenção. Foram reportadas por sindicalistas. A nossa investigadora que esteve nas ruas do Porto também dizia que, quando se aproximava deles, aparecia alguém, uma espécie de controlador, e todos eles se dispersavam. Existiam também alegações de essa máfia mantinha 20 ou 30 homens num T0 ou num T1 em regime de cama rotativa, com carrinhas para os entregar e sentá-los nas motos. 

De qualquer forma, há uma sensação de que é um mercado de trabalho que está muito longe da regulação e dos mínimos que devemos exigir em Portugal. 

Isso exige uma fiscalização apertada, de realidades que são novas para as autoridades competentes, e num contexto em que não há regulação e podem proliferar todo o tipo de abusos.

Eu penso que sim. Há espaço para testar estas alegações, nomeadamente através da Autoridade para as Condições do Trabalho ou do SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras]. Aos primeiros sinais é importante intervir e tentar esclarecer todas essas situações. 

Parece-me também importante haver mais investigação nesta área, e o vosso estudo é muito importante nesse sentido, para termos uma realidade mais concreta do que se passa no terreno e responder à sua especificidade. 

Estamos 100% de acordo. Nós temos tentado financiamentos nacionais, no entanto, nunca conseguimos. Mas temos obtido financiamentos comunitários que nos permitiram liderar este consórcio internacional.

O trabalho do investigador é importante para perceber essas realidades que estão por trás e que a máquina administrativa não consegue apanhar. Nesse sentido, a investigação é um meio complementar à própria sociedade para levantar problemáticas que se podem tornar graves, como aconteceu no caso de Odemira. 

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