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Plataformas digitais: “É preciso impedir injustiças entre países”

O investigador Giovanni Allegretti defende que é necessário criar legislação supranacional e “requerer que as plataformas contribuam mais para o bem-estar dos trabalhadores e dos cidadãos”. Por Mariana Carneiro.
Foto de Justin Lane, EPA/Lusa.

Antes de mais, pedia-lhe que fizesse uma breve apresentação do Projeto “PLUS”, nomeadamente no que concerne à abordagem utilizada, à rede de investigação que se estabeleceu, ao universo de plataformas digitais em análise e aos objetivos a que este projeto se propõe.

O projeto PLUS (acrónimo de “Platform Labour in Urban Spaces: Fairness, Welfare, Development”: https://project-plus.eu) é um projeto de 3 milhões de euros, atribuídos pelo Horizon 2020 (programa-quadro de investigação e inovação da União Europeia) a um consórcio constituído por 15 parceiros europeus (liderado pela Universidade de Bolonha), que vai analisar os principais impactos económicos das plataformas digitais no trabalho, procurando preencher uma lacuna ao nível da compreensão e resolução dos desafios levantados pela digitalização do trabalho.

A tabela inovadora de investigação conjuga quatro plataformas disruptivas (AirBnb, Deliveroo, Helpling e Uber) e outras (diferentes nos vários países) em sete grandes cidades europeias (Barcelona, Berlim, Bolonha, Lisboa, Londres, Paris, Tallinn).

O projeto tem abordagem multidisciplinar com o intuito de promover cenários alternativos que contribuam para promover a proteção social, o desenvolvimento económico e o bem-estar associado ao trabalho digital, procurando valorizar o papel que diferentes atores poderiam desempenhar na promoção e no equilíbrio de tais transformações.

A equipa portuguesa (liderada pelo Centro de Estudos Sociais) revela esta abordagem: eu sou urbanista, e comigo trabalham um sociólogo especializado em biopolítica e relações entre ambiente e trabalho, um especialista de historia económica, administração pública e processos de digitalização, e vários jovens ligados a outras áreas do saber.

De facto, a especificidade do PLUS é ir além de uma leitura tradicional do trabalho para propor uma abordagem "urbana" da questão das plataformas, que pretende analisar as diferentes formas de produção de valor (e a sua possível redistribuição) em escala urbana, e não limitada apenas aos valores diretamente relacionados à exploração direta do trabalho.

Para nós, investigar plataformas é também adotar uma lente metodológica para analisar a interação entre tecnologia e sociedade em duas áreas privilegiadas: a cidade e o trabalho. A ideia por trás é que nem a defesa nem a demonização das plataformas são úteis para compreender a sua imensa difusão, e o seu papel de “espaços de conflito” das quais poderia finalmente surgir uma nova forma de “welfare” adequado à realidade social do século XXI.

De acordo com a vossa investigação, a que transformações tem sido sujeito o setor das plataformas digitais nos últimos anos?

Nestes dois anos de vida do projeto, usando um método principalmente etnográfico, fomos entrevistando trabalhadores e trabalhadoras para entender a sua perspetiva de leitura sobre as mudanças em curso no setor.

Os entrevistados foram principalmente trabalhadores da Uber e anfitriões de Airbnb, mas também foram feitas entrevistas a pequenos e médios empresários nos setores do alojamento e nos setores do transporte.

Apenas em Lisboa, já fizemos cerca de 120/150 entrevistas que, devidamente anonimizadas, nos oferecem perspetivas muito interessantes sobre um processo em permanente mudança (a diferença entre os números deve-se ao facto de uma parte ser referente a trabalhadores que “dependem” das plataformas, mas não têm contrato direto com ela, como o pessoal de limpeza dos apartamentos do Airbnb).

Há muitas mudanças rápidas em curso, mas a principal prende-se com o surto da COVID, que tem vindo a representar, ao mesmo tempo, um fator de crise e um potencial de mudança das relações de poder, se os trabalhadores conseguirem juntar-se devidamente para dialogar com a política para que isso aconteça.

De facto, se a pandemia for vista como “uma patologia da sociedade”, e não apenas como uma doença do corpo (assim como Horton a tem representado no livro The Covid-19 Catastrophe: What’s gone wrong and how to stop it happening again), parece indicar alguns caminhos para sair de um “beco sem saída”, em que a relação entre plataformas e trabalhadores estava a estagnar.

A pandemia tornou muito mais visível a precariedade dos trabalhadores, que vieram a ser reconhecidos como “trabalhadores essenciais” pela sociedade, como os motoristas de Uber e as estafetas, desafiando a política a dar respostas não dadas anteriormente.

Em muitos países (como Itália, Holanda ou Reino Unido), quando não atuou a política nacional, intervieram os poderes locais (propondo soluções éticas ou cooperativas para reorganizar o trabalho) ou o poder judiciário que, com sentenças que reconheceram a “dependência” de muitos trabalhadores, obrigaram a repensar as relações.

É um processo lento, e não unívoco na sua direção, porque a cada ação externa corresponde uma reação, e, muitas vezes, estas reações são diferentes nos diferentes lugares.

Por exemplo, em Londres, a UBER aceitou a imposição do Supremo Tribunal e anunciou a contratação dos 70.000 motoristas, mas porque tratava-se de uma praça simbolicamente importante, e num quadro legislativo onde se podem fazer contratos “a custo zero”, com o trabalhador a ser pago apenas pelas horas trabalhadas.

Na Califórnia, a UBER e as companhias análogas preferiram desafiar a Lei do Estado com um referendo, e gastaram 180 milhões em publicidade para que a “Proposition 22” ganhasse e permitisse o reconhecimento do modelo especial de contratação de trabalhadores formalmente independentes, mas financeiramente dependentes da plataforma.

Em Portugal, discutem-se agora fórmulas de “presunção de laboralidade”, em termos parecidos com a “presunção do estatuto de assalariado” do governo espanhol.

Em geral, pode dizer-se que a explosão do teletrabalho obrigou os governo a abordar o tema das plataformas de maneira mais estruturada, como evidencia o “Livro Verde” português, que está agora a ser discutido com os parceiros sociais.

Encontraram diferenças significativas nos países onde decorre este projeto?

Em primeiro lugar, vale a pena realçar que só poucos países têm legislação específica sobre trabalho de plataformas, e, normalmente, limitada a alguns setores (no caso da TVDE, Portugal e Estónia são exceções no panorama europeu).

Paradoxalmente, os países com leis aprovadas parecem ter uma abordagem mais neoliberal, e regulam os setores sem focar bem na questão das relações de trabalho, e nem no que respeita à invasiva presença dos algoritmos na vida dos trabalhadores.

Nos outros países, as soluções são principalmente locais (pensamos nas regulamentações sobre Airbnb em Paris, Barcelona ou Berlim, ou nas plataformas éticas de entregas em Bolonha ou Milão) e, não tendo as autarquias competências sobre a regulação do trabalho, mais uma vez, não conseguem tratar todas as questões de segurança social e de precarização.

Sem dúvida, há muita criatividade local, dado que as plataformas também funcionam de forma diferente.

Por exemplo, em Palermo (Itália), o município organiza com a Airbnb um processo-piloto de orçamento participativo chamado “Danisinni & Ballarò in transito” (https://intransito.comune.palermo.it) que, por escolha da plataforma, devolve aos territórios de duas freguesias 10% do imposto de estadia dos turistas. É uma forma de “devolution”, que quer compensar parcialmente o esvaziamento e a turistificação que a plataforma traz aos bairros. É suficiente? Pode ser radicalizada e conjugada com outras medidas? Só acompanhando estas experiências podemos imaginar medidas fortes para o futuro…

Portugal e, mais especificamente, Lisboa têm funcionado, de certa forma, como um balão de ensaio para algumas plataformas de trabalho digitais. Que características tem o país e a sua capital que favorecem o desenvolvimento do setor?

As maiores plataformas entraram no país durante a crise financeira (é o caso do Airbnb, em 2008) ou na recuperação da crise (Uber, em 2016), e entraram a fazer parte de um modelo de “rápida modernização e digitalização” de Portugal, ligado à economia das start-ups, ao investimento sobre o Web-Summit e à convicção de muitos governos (até de cores políticas diferentes) de que Portugal não vai conseguir safar-se sem uma contínua injeção de capitais globalizados.

Portanto, entraram num circuito de pensamento mais preocupado com a economia, do que com os trabalhadores e os cidadãos. Pouco importava se estas plataformas – parcialmente a serviço da monocultura do turismo - contribuíam para multiplicar trabalhos precários e de baixa qualidade ou não.

De facto, houve uma convergência da narrativa entre os patrões e os trabalhadores: ambos remarcavam a importância da “autonomia” formal das relações de trabalho, e o setor funcionava como uma plataforma giratória (por exemplo, para muitos imigrantes, para pessoas em transição de um trabalho para o outro, para quem quer complementar o rendimento com pequenas atividades no tempo livre de outros trabalhos principais).

A legalização de um setor como o transporte em veículos descaraterizados em Portugal foi possível também devido a um clima social menos polarizado, e a um ativismo menos poderoso do que noutros países. E quando a “Lei Uber” logrou ser aprovada em 2018 (apesar dos protestos dos taxistas), veio a ser um ponto firme sem volta atrás, criando novos hábitos nos clientes e nos trabalhadores. Se hoje há quase 2100 motoristas com licença de táxis inscritos entre os 29.000 motoristas registados da TVDE, quer dizer que a consolidação de novos fluxos está a mudar as coisas…

Quais foram os resultados obtidos em Portugal com a aplicação da Lei 45/2018, - a chamada “Lei da Uber”?

Primeiro: avaliar a Lei da TVDE não é fácil, porque não foi construído um sistema de indicadores adequado para ajudar a avaliar os pesos diferenciados que esta tem em diferentes grupos que investiram capitais diferenciados (pequenas empresas, motoristas auto-empregados em empresas unipessoais, trabalhadores imigrantes, mulheres, estudantes) e que impacto tem na generalidade do universo dos transporte (incluindo os motoristas de táxi).

Os dados hoje recolhidos e divulgados pelo IMT são pobres: por exemplo, há nove plataformas de mobilidade licenciadas e mais de 8000 empresas de TVDE, mas monitorizar as ativas e as dormentes não é fácil. Há fenómenos de informalidade que recebem sanções administrativas mas não são objeto de análise política, e saber quantas horas trabalha um motorista (com os riscos que o cansaço acarreta para a segurança pública e a saúde do trabalhador) é impossível, devido à difusão do fenómeno da “multi-app”, ou seja, o trabalho para muitas empresas ao mesmo tempo.

Segundo: a Lei 45/2018 (conforme escrito no art.º 31) está a ser revista, com um pouco de atraso. Mas este atraso resultou ser positivo, porque permite avaliar e emendar a lei num momento em que cresceu a capacidade de luta conjunta dos trabalhadores, e em que as plataformas estão num momento de debilidade face à política: não conseguem mais chantageá-la, porque a política começou a interrogar-se sobre se vale a pena facilitar tanto a vida a colossos comerciais que não produzem trabalho de qualidade e exploram sem produzir grande valor agregado para os territórios onde atuam.

Como escreveu Mark Graham, e muita literatura das “geografias conjunturais”, as plataformas achavam que podiam ser “extraterritoriais” (e brincar com as regras e os sistemas de fiscalidade dos vários países), mas a pandemia revelou quão poderoso é o seu papel na gestão dos “corpos” e da “qualidade de vida” de milhares de trabalhadores.

As plataformas tiveram de começar, por si só, a reconhecer alguns benefícios aos trabalhadores (como subsídios de doença, seguros), e agora a sua responsabilidade em relação às cidades e aos países em que se localizam é clara, e está a ser cobrada pela política.

Não nos esquecemos de que um relatório de 2017 do Parlamento Europeu assinalou que 70% dos trabalhadores das plataformas vivem delas como fonte principal, e que a crise económica que acompanhou a pandemia tornou esta dependência ainda mais clara.

O processo português para a construção do “Livro Verde” sobre o trabalho levou a sério a necessária reforma neste âmbito da economia, e tem muitas propostas de medidas e políticas que dizem respeito a repensar o trabalho das plataformas.

Acredito que seja o momento certo para a revisão da Lei do TVDE: mas é preciso ter ambição e reformá-la pensando não apenas no setor da mobilidade, mas num ecossistema maior, que inclua a economia urbana, a saúde dos trabalhadores, e a utilização pública dos dados recolhidos pelas plataformas, que são a marca distintiva do setor e podem servir para criar trabalho de qualidade e serviços públicos mais eficientes.

O “modelo de Plataforma de Capitalismo Intermediário” adotado em Portugal não acaba por traduzir-se numa desresponsabilização por parte das plataformas digitais no que respeita, por exemplo, aos direitos laborais? E, se sim, de que forma se dá essa desresponsabilização?

Este modelo – único na Europa – está a ser alvo de discussão neste momento, pelos diferentes potenciais e ambiguidades que contém.

Eu acho que pode ser lido de formas opostas, quer como uma multiplicação de capatazes, quer como um sistema de partilha de responsabilidades entre múltiplos atores. Para dizer qual destas duas interpretações melhor retrata a realidade, são necessários dados qualitativos desagregados, que, até agora, Portugal renunciou recolher.

Certamente, até ao momento, foi usado pelas grandes plataformas de mobilidade para desresponsabilizarem-se. Até mais: quando a UBER obrigou unilateralmente os motoristas a baixar os preços, em setembro de 2020, (aplicando um coeficiente redutores de 0.7, 0.8 ou 0,9 às tarifas) fê-lo de forma a que parecesse que os próprios motoristas ofereciam descontos, em competição entre si, quando era o algoritmo a penalizar todos aqueles que não baixassem as tarifas ao máximo nível. Ou seja: em caso de contestações legais de violação da Lei 45 (que prevê que as corridas não possam ser abaixo do custo que geram ao motorista), a UBER poderia descarregar a responsabilidade da escolha sobre os parceiros e os motoristas…

Mas, num momento em que a justiça começa a cobrar às grandes empresas/plataformas, o sistema português poderia oferecer a solução para os motoristas se organizarem de formas cooperativas. Infelizmente, trata-se de um campo onde o “divide e impera” forjou até agora as relações entre os trabalhadores – em competição entre si. Mas o ano da pandemia pareceu ter servido para uma melhor reorganização, e as siglas sindicais que vão emergindo e defendendo os direitos dos trabalhadores TVDE evidenciam novos rumos possíveis.

A própria pandemia – na divisão de responsabilidades entre trabalhadores e empresas intermediárias (por exemplo, para custear as medidas de saúde publica) – evidenciou potenciais colaborativos inesperados.

E agora o projeto PLUS está a concentrar a análise na questão das empresas pequenas e médias, para entender em que medida as plataformas oferecem oportunidades de mudança dos modelos e do espírito empresarial dos vários países (poderá o modelo familiar de gestão empresarial típico de Portugal estar a mudar?).

Qual o impacto, e que consequências tem a gestão algorítmica nos diferentes aspetos do trabalho nas plataformas digitais?

Como bem escreveram Möhlmann e Zalmanson (2017) e aponta a OIT num recente livro “As plataformas digitais e o futuro do Trabalho”, há varias áreas em que o algoritmo pesa na vida do trabalhadores: a (1) monitorização contínua do comportamento dos trabalhadores; (2) a avaliação constante do desempenho dos trabalhadores, tendo como a avaliação dos clientes, mas também a aceitação ou rejeição do seu trabalho pelo cliente; (3) a implementação automática de decisões, sem intervenção humana; (4) a eliminação de oportunidades de feedback da empresa para o trabalhador (discussão ou negociação com o seu supervisor, como seria geralmente o caso em empregos fora da Internet); e (5) o baixo grau de transparência decorrente de práticas comerciais competitivas e de natureza adaptativa (decisões que mudam com os dados recolhidos sem passar por nenhum espaço de negociação coletiva das novas regras).

Naturalmente, existiria um grande potencial dos algoritmos se os dados (ou pelos menos uma parte deles) fossem partilhados para interesse público.

Até agora, em Lisboa, nem a negociação com o município para reconhecer a “utilidade pública” das plataformas privadas de TVDE geraram um recuo nas empresas no sentido de assegurar a transparência de, pelo menos, uma parte dos algoritmos…

A situação é inquietante, ainda mais se pensarmos que, na “Carta da Boa Plataforma” (assinada por Uber e os CEOs de outras grandes plataformas em janeiro de 2020 no Fórum Económico de Davos), aparece escrito – nos pontos 7 e 8 – que a gestão transparente dos dados relativos aos trabalhadores e a cedência de dados para as instituições públicas deveria ser estratégia central de uma “boa plataforma”.

Provavelmente, a Uber e as outras empresas análogas não têm muito interesse em corresponder à imagem de boa plataforma que elas mesmas desenharam…

Que outros desafios laborais a economia das plataformas está a levantar do ponto de vista das condições de trabalho?

Hoje, os temas em maior debate dentro dos grupos TVDE nas redes sociais são relativos à segurança social e ao estabelecimento de um custo-padrão mínimo que garanta a recuperação dos custos das corridas, que hoje não é garantido.

Os motoristas comparam os preços europeus (e até entre as cidades portuguesas) e deram-se conta das injustiças. Especialmente em Lisboa (onde operam empresas que não servem o pais inteiro), a competição entre plataformas tende a baixar muito os ganhos dos trabalhadores. Inclusive porque a Uber não baixa a sua comissão de 25%, nem quando “obriga” suavemente os motoristas a baixar os preços.

No Verão de 2019, por exemplo, a Uber reduziu unilateralmente as tarifas “para os clientes irem à praia”, gerando o paradoxo de corridas cujo preço nem cobria os custos do serviço. Este é um tema onde a revisão da Lei 45/2018 deverá incidir seriamente, se quer ser um espaço “garantístico” para os direitos e a qualidade do trabalho dos motoristas.

Naturalmente, também o tema da “contratação coletiva” se põe como um farol na reforma do setor: mas isto já parece claro nas propostas do “Livro Verde para o Futuro do Trabalho”, e em muitas das afirmações da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança social, Ana Mendes Godinho.

Na ausência de um marco regulatório claro, quais as possíveis consequências do crescimento da economia de plataforma na evolução das remunerações de profissionais qualificados?

Pelo que falei até agora, parece-me claro que o marco regulatório deverá ser mais ambicioso, em falar de tabelas de preços mínimos, em considerar os pesos diferenciados que o diferente sistema de atores suporta (em função dos diferentes investimento no setor), em falar de recolha e partilha de dados que podem ajudar a melhorar as condições do serviço…

A política tem muita responsabilidade em decidir o que vai pedir às plataformas para garantir o bem-estar dos trabalhadores.

Por exemplo, em França não há uma lei clara, mas a cultura dos direitos vigente faz com que a própria Uber publique repetidamente um inquérito sobre remunerações dos trabalhadores e inquéritos de satisfação dos mesmos…

Para que isso aconteça, e sirva para gerar um clima e um ambiente de trabalho mais favoráveis aos trabalhadores, é preciso haver mais conhecimento sobre como funciona o setor. E é preciso pôr de lado uma certa postura de “submissão” que o Estado português sempre teve em relação aos grandes investidores estrangeiros, com medo que saiam do país.

Não acredito que a Uber ou a Airbnb possam sair de um pais com a reputação e o peso que Portugal hoje tem nos fluxos turísticos internacionais. E requerer que contribuam mais para o bem-estar dos trabalhadores e dos cidadãos é um dever. Tanto mais pelo facto de que, em setores como estes, não se pode contar muito com a contribuição dos clientes na luta por um trabalho melhor (eles parecem interessados apenas na descida dos preços), e o Estado é o único que pode e deve representar esta posição de garantia.

No âmbito legislativo, e concretamente no caso português, que resposta deve ser dada do ponto de vista da regulação por forma a neutralizar o risco de retrocesso nos direitos dos trabalhadores?

Partidos como o Bloco de Esquerda (Bloco) – em novembro de 2020 e, novamente, em fevereiro de 2021 – e o Partido Comunista Português (PCP) – março de 2021 – questionaram o governo acerca da descida unilateral das tarifas de TVDE, enquanto violação da lei-base do setor, e propuseram que o Orçamento do Estado para 2021 considerasse a necessidade da contratação direta dos motoristas.

Embora estas perguntas não tivessem tido uma resposta formal, testemunham a pressão sobre o governo para uma regulamentação conjunta das plataformas, que não pode apenas reduzir-se a medidas sectoriais, antes tem de incluir vários âmbitos, como a logística, a mobilidade, o alojamento local e os serviços de entrega ao domicílio.

É preciso repensar a Lei 45/2018 e leis para outros setores (como entregas, logística, alojamento local) com mais visão de conjunto, que saibam valorizar as peculiaridades do setor da economia de plataforma, para capitalizá-las no sentido da melhoria das condições de vida dos trabalhadores e cidades onde operam.

É preciso discutir algoritmos, tempos de trabalho, direito à desconexão, e fazê-lo em conjunto como uma maneira de enfrentar os desafios da nova vaga de digitalização que a pandemia acelerou.

O Livro Verde faz alguns passos importantes nesta direção. Neste sentido, acho fundamental que as novas leis possam dar maior espaço às autarquias na gestão e na governação e monitorização dos diferentes setores onde operam as plataformas.

Lisboa tem demonstrado muito ativismo modernizador, embora com os constrangimentos a que o seu papel obriga. Exemplos disso são os acordos para intercâmbio de dados com algumas plataformas, o grande trabalho para a construção de uma “platform-as-service” integradora de todos os serviços de transporte de interesse comum (públicos e privado), o manancial coordenado de dados sobre a micro-mobilidade (bicicletas, trotinetas, etc.) e, recentemente, a criação de uma Comissão de Acompanhamento de Alojamento Local , que partilhará dados com a Câmara e a Assembleia. Estes dados tornar-se-ão também de domínio público e poderão ser utilizados por movimentos sociais e organizações setoriais para as suas contrapropostas e para a redução dos fenómenos de “informalidade” nos setores turístico, da habitação e do mercado imobiliário.

Considera que é igualmente necessária a criação de legislação supranacional para enquadrar o trabalho nessas plataformas e os direitos dos trabalhadores?

Absolutamente sim. Uma certa uniformização das condições dos trabalhadores é necessária para não dar espaço a injustiças entre países. A Comissão Europeia lançou há pouco uma consulta pública para elaborar uma ação comunitária destinada a melhorar as condições de trabalho e tornar mais uniforme a proteção social dos trabalhadores das plataformas digitais entre os Estados-membros.

Realmente, o trabalho de plataforma é, ao mesmo tempo, a fortaleza da precariedade e um refúgio fácil para muitos que, no quadro da pandemia, perderam o trabalho. E é necessário enfrentar a sua regulação de forma holística e com visão comum de longo prazo.

Espero que Portugal, depois de ter lançado o tema na Cimeira Social Europeia do Porto no âmbito do debate sobre o “Pilar Social” (mas também sobre as ambições de gradual digitalização) da União europeia, contribua para soluções de alto nível, e possa decidir também entrar no Observatório Europeu da Economia das Plataformas Online (https://platformobservatory.eu), porque falta uma maior reflexão crítica e uma noção mais clara dos fenómenos ligados à transformação permanente das economias de plataforma.

Que desafios e que respostas podem surgir no que se refere à organização coletiva dos trabalhadores?

Acho que, conforme assinalei antes, o ano de 2020 foi um espaço de crescimento notável da organização dos trabalhadores de plataformas, que fica, porém, bem aquém do que poderia e deveria ser para providenciar uma justa representação dos seus interesses.

Infelizmente, campos que são “plataformas giratórias” para trabalhadores que não imaginam que lhes possam oferecer qualificação duradoura do trabalho, acabam por ser marcadas por fracos índices de sindicalização. As formas fortes de ligação entre os trabalhadores são as redes sociais (Grupos WhatsApp ou Facebook e Telegram) que, como é notório, tem fraca capacidade de difundir uma militância de alta intensidade, e são, como apontam vários relatórios da OIT, apenas espaços de autoajuda mútua para trabalhadores que, no dia-dia, sentem falta de diálogo entre si e com os empregadores. Ou seja, atuam como “câmara de compensação” de uma vida regulada por algoritmos e vivida no isolamento individualista dos seus carros, das suas motas e das suas casas…

Mas há possibilidades a explorar, e, no caso português, a própria Lei 45/2018 oferece aos trabalhadores do setor da mobilidade espaços para se juntarem, e construirem alternativas cooperativas. O que é claro, é que este potencial não resulta para quem não parece interessado em ficar nesse setor para a vida inteira, e passa o tempo a imaginar exit-strategies diferenciadas para sair dele.

Um exemplo para entender este aspeto pode vir dos muitos trabalhadores asiáticos que chegam de Dubai a Portugal para trabalhar no setor TVDE de forma intermitente, com o objetivo de passarem cinco anos no país, ganharem a nacionalidade e voltarem mais fortes para o Dubai. Eles têm uma série de empresas de contacto que favorecem esse plano de “médio prazo”, mas nenhuma forma organizacional nem diálogos com outros motoristas TVDE – que olham para eles mais como uma competição injusta do que como potenciais aliados…

(...)

Neste dossier:

Plataformas digitais: Quando o algoritmo se torna capataz

Num contexto em que as Plataformas Digitais de Trabalho se apresentam como os novos balões de ensaio para a precarização extrema do trabalho, afigura-se inadiável o debate sobre a regulação e regulamentação do setor e os desafios no que respeita à organização coletiva dos trabalhadores. Dossier organizado por Mariana Carneiro.

A e-corrida para o fundo

A verdadeira inovação por detrás da aplicação é um novo modelo de relações laborais que combina financeirização, evasão fiscal e falsos empresários individuais. Por José Gusmão.

Plataformas digitais: “Condições de trabalho são um problema europeu”

Leïla Chaibi, eurodeputada da França Insubmissa, que integra o Grupo da Esquerda Unitária – GUE/NGL, explicou ao Esquerda.net os objetivos da proposta de diretiva da União Europeia sobre Trabalhadores de Plataformas Digitais que apresentou em novembro passado. Por Mariana Carneiro.

Uberização: a era do trabalhador just-in-time?

A uberização refere-se à materialização de décadas de transformações políticas do mundo do trabalho, apresentando-se como tendência que permeia generalizadamente o mundo do trabalho, possibilitando-nos pensar em termos de consolidação do trabalhador como trabalhador just-in-time. Por Ludmila Costhek Abílio.

Lei “Rider”: Um passo insuficiente, pouco que celebrar

Perante o anúncio do decreto pelo qual se realiza a laboralização dos trabalhadores das plataformas digitais e, ainda que, aparentemente, vá ao encontro das nossas reivindicações, pela nossa parte não temos razões maiores para celebrar. Pela Plataforma Riders X Derechos BCN – IAC.

Transição digital e trabalho em plataformas

Vídeo com intervenções de Leïla Chaibi - France Insoumise (França), Felipe Corredor Alvarez e Nuria Soto (Plataforma Riders X Derechos BCN – IAC), Maria da Paz Lima (investigadora na área do trabalho/ correspondente Eurofound) e Fernando Fidalgo (dirigente STRUP /TVDE).

A hora dos 'emprecários'

A greve dos entregadores no Brasil é um sinal novo e importante. Os trabalhadores de plataformas como a UberEats, a Glovo, a iFood ou a Rappi têm sido essenciais durante a pandemia. Também por cá, esta realidade dos 'emprecários', dos falsos independentes e das plataformas mexe. Por José Soeiro.

“Plataformas digitais são balão de ensaio para novas formas de exploração capitalista”

O investigador Nuno Boavida falou com o Esquerda.net sobre o projeto europeu CROWDWORK - Encontrar novas estratégias para organizar trabalhadores de plataformas digitais na economia Gig (2019-2021), do qual é líder científico. Por Mariana Carneiro.

Plataformas digitais: “É preciso impedir injustiças entre países”

O investigador Giovanni Allegretti defende que é necessário criar legislação supranacional e “requerer que as plataformas contribuam mais para o bem-estar dos trabalhadores e dos cidadãos”. Por Mariana Carneiro.

Lei é um “fato talhado à medida” dos interesses da Uber

Em entrevista ao Esquerda.net, o professor universitário e especialista em Direito do Trabalho João Leal Amado frisou que o modelo de negócio das plataformas digitais não pode “assentar na exploração desenfreada” dos trabalhadores, que estão a ser disfarçados de micro empresários. Por Mariana Carneiro.

“Lei Uber está muito aquém das necessidades reguladoras deste setor”

Fernando Fidalgo, dirigente sindical do STRUP - Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal, afeto à CGTP, deu a conhecer ao Esquerda.net as reivindicações dos trabalhadores. Por Mariana Carneiro.

Documentário "Estafados - Histórias da precariedade organizada"

Todos os dias vemos estafetas a circular pela cidade. Motos, bicicletas, carros, trotinetas - o transporte muda, mas a rotina é a mesma. Mochilas às costas carregam a comida quente e as infindáveis horas de trabalho que acumulam. Não se conhecem, nem estão organizados, mas há algo que os une: a necessidade de sobrevivência.