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Lei é um “fato talhado à medida” dos interesses da Uber

Em entrevista ao Esquerda.net, o professor universitário e especialista em Direito do Trabalho João Leal Amado frisou que o modelo de negócio das plataformas digitais não pode “assentar na exploração desenfreada” dos trabalhadores, que estão a ser disfarçados de micro empresários. Por Mariana Carneiro.
Foto de Stock Catalog/Flickr.

A Lei Uber - Lei n.º45/2018, de 10 de agosto - introduziu uma originalidade, ao prever a existência de quatro intervenientes nesta relação: o operador de plataforma eletrónica; o operador de TVDE; o motorista; e o passageiro. Ou seja, tal como tem vindo a referir, há aqui uma figura de permeio entre o operador de plataforma eletrónica e o motorista. Pode explicar-nos que relação prevê a lei existir entre as partes?

Esta legislação surgiu muito cedo. Devemos ter sido dos primeiros países a ter legislação relativa à atividade da Uber e de outras empresas que operam nesse setor do transporte individual remunerado de passageiros. É uma realidade relativamente recente, ligada ao desenvolvimento das tecnologias e das aplicações, que permitiu que fosse possível, através desta plataformas digitais e das aplicações, estabelecer o contacto entre a oferta e a procura de serviços. E o primeiro setor em que isso se tornou mais visível foi o setor do transporte individual remunerado de passageiros.

No que respeita à Lei 45/2018, não tenho ouvido a esse propósito opiniões dissonantes. Os textos que têm saído, de juristas ligados ao Direito do Trabalho, a refletir sobre esta lei, manifestam estranheza com esta originalidade da lei portuguesa. Assistíamos à discussão que se travava à escala global, nos tribunais, dos Estados Unidos da América ao Brasil, e a vários países europeus, a começar pelo Reino Unido, e com decisões muito díspares a respeito destas questões. Mas, em causa estavam os tais três sujeitos: a empresa que explora a plataforma eletrónica, a Uber ou a empresa congénere; os motoristas, ou seja, as pessoas que, com o seu automóvel, se disponibilizavam para transportar passageiros; e os clientes, os passageiros. Por todo o mundo, são, normalmente, estes três sujeitos que existem.

A nossa lei tem essa particularidade de considerar quatro sujeitos. Confesso que não conheço experiências semelhantes noutros países. A lei estrutura as relações, no caso do transporte de passageiros, criando de permeio entre o motorista e a Uber, ou empresa análoga, e o motorista essa nova figura, o chamado operador TVDE. 

Não é uma figura conhecida lá fora, não é uma figura indispensável, não parece ser necessária e parece ter sido criada pelo legislador, não sei se de forma velada, mas, pelo menos, esse é o efeito, de forma a tornar menos nítida a ligação contratual que existe entre o motorista e a Uber ou outra empresa que explore a plataforma. A lei estabeleceu um esquema segundo o qual os motoristas não seriam contratados pela Uber ou pela empresa de plataforma eletrónica, mas sim por outra empresa, o tal operador de TVDE. A lei prevê que até pode haver aqui um contrato de trabalho, mas apenas entre o motorista e o operador de TVDE. Desta forma, a Uber e empresas congéneres são colocadas fora da equação. 

Portanto, exclui à partida a possibilidade de um contrato entre o motorista e a Uber.

Esta lei parece ter sido feita com o propósito, ou com o efeito claro, de libertar a Uber de quaisquer compromissos contratuais laborais em relação aos motoristas. E o receio que surgiu desde a primeira hora é que esta empresa que contrata o motorista - o operador de TVDE - seja, no fundo, o próprio motorista a empresarializar-se. 

A lei criou, portanto, um esquema confuso que acrescenta uma outra entidade àquelas que parecem ser as entidades normais, que, repito, são: a Uber, o motorista e o passageiro. O diploma parece ter sido desenhado à medida dos interesses da Uber. Não posso dizer isto de outra forma. 

O que muitos tribunais têm dito, como é o caso da recente decisão do Supremo Tribunal do Reino Unido, que se pronunciou exatamente sobre um caso que envolvia a Uber, é que os motoristas têm uma relação de trabalho dependente em relação à Uber. 

A grande questão é fazer o Direito corresponder à realidade. Quem manda, quem controla, quem tem poder, a empresa que explora aquele ramo de negócio é a Uber. A nossa lei não facilita nada a clareza na forma de apreender esta relação.

O que os estudos que têm sido feitos nos indicam, e a própria realidade que encontramos no terreno, é que o operador de TVDE e o motorista são, em regra geral, a mesma pessoa. Há aqui, como já assinalou em artigos publicados, uma interposição fictícia de pessoas.

Qual é o estratagema que terá sido utilizado? Para haver um contrato, o trabalhador tem de ser sempre uma pessoa de carne e osso. Já a entidade empregadora pode ser uma entidade coletiva. A forma como a Lei Uber organizou esta relação, ao introduzir a figura do operador de TVDE, diz que a Uber não contrata os trabalhadores, a Uber estabelece uma relação contratual com outra pessoas coletiva - o operador de TVDE. Ou seja, estando em causa duas entidades coletivas é excluída a existência de um contrato de trabalho. Essa possibilidade só é prevista entre o operador de TVDE e o motorista. 

Mas a Lei acaba por colocar na empresa que explora a plataforma eletrónica deveres típicos de uma entidade empregadora.

A Lei, apesar de tudo, não pode negar a evidência de que há poderes que são próprios da entidade empregadora e que só o operador de plataforma eletrónica está em condições de exercer. 

A perceção que tenho da aplicação prática é a de que uma boa parte dos tais operadores de TVDE que se formaram ao abrigo da Lei são, na realidade, motoristas transformados em empresas. Se virmos a própria publicidade que a Uber divulgou havia esse apelo, algo do género como: “Quer trabalhar para a Uber? Crie a sua própria empresa”. É o apelo à transmutação do motorista numa empresa, que assim já não pode ser trabalhador da Uber. 

É a própria Lei que, de algum modo, está a instigar esse processo de interposição fictícia de pessoas. É isso que importa corrigir. Porque, verificando a realidade, quem tem o poder, quem manda, quem explora o negócio é a Uber, a Glovo e todas essas empresas, e não os operadores de TVDE. E as empresas exercem formas de controlo, vigilância, de avaliação, até algorítmica, sobre os trabalhadores.

Há um argumento utilizado pelas empresas que exploram estas plataformas, e que eu creio que é importante desmontar, no sentido de que são os próprios trabalhadores que querem ter liberdade e autonomia, e que a existência de um contrato de trabalho iria retirar essa autonomia, que ainda por cima é fictícia.

Quem perde alguma margem de liberdade, porventura, serão as empresas, e não os trabalhadores. O Direito do Trabalho nunca se opôs ao exercício da liberdade por parte do trabalhador. Comprimiu, isso sim, um pouco as margens de liberdade das entidades empregadoras, na forma como exploram o seu negócio. O que queremos garantir é que os trabalhadores dessas empresas tenham direitos, condições dignas, com mínimos garantidos por lei.

Considera que existem condições para rever esta matéria?

A versão do Livro Verde que foi distribuída pelos parceiros sociais assume a necessidade de rever a Lei Uber. Não diz exatamente em que sentido, mas há sinais de que a ideia é, justamente, corrigir esta situação e passar a prever aquilo que hoje não está previsto, que é a possibilidade de haver uma relação de trabalho, um contrato de trabalho, entre o motorista, ou outro trabalhador, e a empresa Uber, ou outra dessas empresas que exploram as plataformas eletrónicos e que fazem aí o seu negócio. É uma versão provisória e são indicações ainda não muito precisas, mas que apontam no sentido de existirem alterações no que a esta matéria diz respeito, também por forma a colocar Portugal no mesmo sentido que parece ir prevalecendo, gradualmente, à escala global. 

É uma questão muito discutida, muito complicada, até porque a realidade é diferente e este é um setor muito dinâmico, que vai muito à frente da lei, com o desenvolvimento das formas de trabalhar, de funcionar, das formas de prestar serviços com recurso a essas plataformas e aplicações… Às vezes é difícil a lei acompanhar a velocidade a que este setor se desenvolve. Mas eu diria que os sinais mais recentes que vão sendo dados, e, no caso europeu, em Espanha e no Reino Unido, apontam para se ir consolidando a perceção de que os motoristas, ou noutros casos, os estafetas, trabalham para a empresa que explora a plataforma eletrónica. 

A decisão do Supremo Tribunal espanhol diz respeito a um estafeta da Glovo.

Exatamente. Os estafetas são pessoas que já conhecíamos, mas que, com a pandemia, se tornaram ainda mais visíveis, porque houve um incremento muito grande desta atividade.

As últimas decisões de tribunais supremos, quer em Espanha, no caso da Glovo, quer no Reino Unido, no caso da Uber, vão claramente no sentido de entender que o Direito do Trabalho tem aqui aplicação, que essas pessoas, de uma forma ou de outra, são, preponderantemente, trabalhadores dependentes, e não trabalhadores autónomos ou micro empresários, como, muitas vezes, se invoca. 

Essa é a questão principal, do ponto de vista jurídico, que tem animado as discussões por todo o lado. É saber qual o estatuto de quem presta esses serviços através das aplicações e das plataformas, seja para transportar passageiros ou para levar comida ou outros produtos a casa das pessoas: se são autónomos, profissionais independentes, micro empresários que exploram o seu negócio ou se são, verdadeiramente, um novo tipo de trabalhador dependente, com novas formas de subordinação e de dependência em relação à empresa que, para todos os efeitos, controla o processo e explora o seu negócio recorrendo ao trabalho dessas pessoas.

É um desafio para o Direito do Trabalho?

Sim, esta não é uma questão simples, é um desafio para o Direito do Trabalho. Mesmo que cheguemos à conclusão, como eu penso que estamos gradualmente a chegar, de que, na maior parte das situações, são trabalhadores dependentes, isso não resolve todos os problemas. A forma de prestar serviço, o tipo de relação que se estabelece entre o motorista da Uber ou o estafeta da Glovo, mesmo reconhecido como trabalho dependente, é uma relação de trabalho muito distinta daquela relação de trabalho tradicional que está regulada pelas leis do trabalho. 

Vai ser preciso, como já aconteceu muitas vezes, que o Direito do Trabalho se adapte, se diversifique, crie regras próprias que respondam a estas novas formas de trabalhar, justamente dando guarida a essas novas formas de estruturar o tempo de trabalho, fazer com que certos deveres tradicionais dos trabalhadores não existam aqui neste tipo de relação.

Há relações de trabalho que têm regras muito distintas umas das outras, em função da natureza muito própria de cada relação. O Direito do Trabalho não é um Direito constituído por regras monolíticas aplicadas a todos os trabalhadores e a todas as relações de trabalho. Há casos cada vez mais frequentes de regras distintas que valem para certo tipo de atividade. 

Talvez o trabalho nessa área das plataformas vá obrigar o legislador a criar regimes com capacidade de regular fenómenos que são novos e que, em alguns dos seus contornos, escapam àquela relação tradicional de trabalho que vem do século XX. Quando se diz que se aplica o Direito do Trabalho aos trabalhadores das plataformas eletrónicas não quer dizer, por exemplo, que estes terão de cumprir um horário de trabalho rígido. Há todo um conjunto de especificidades, de particularidades que reclama que as leis do trabalho tenham de se adequar, aproveitando o que possa haver de bom nestas novas formas de prestar trabalho. 

O Direito do Trabalho tem de se ir adaptando ao progresso, às novas tecnologias, às novas formas de trabalhar e criar regras ajustadas a essas realidades, que garantam a defesa dos direitos dos trabalhadores. Essa adaptação é, por vezes, vista como um fantasma, o que não tem cabimento. O Direito do Trabalho regula a atividade do operário da fábrica como regula a atividade do Cristiano Ronaldo. E, embora haja um contrato de trabalho entre o Cristiano Ronaldo e a Juventus e entre o operário e a sua empresa, ninguém pensa que as regras devem ser exatamente as mesmas. E não são. Temos regras próprias para os atletas profissionais ou para as empregadas domésticas, por exemplo. Talvez tenhamos de ter algumas regras próprias para responder de forma equilibrada, ajustada, a essas novas formas de prestar trabalho no setor das plataformas eletrónicas. 

Mas nós estamos numa fase mais recuada, em termos históricos. Quando surgiu a Uber, todo o discurso era no sentido de que a empresa não tinha qualquer relação contratual com os motoristas e que funcionava apenas como uma intermediária.

Sabemos que existem poderosos lóbis no setor. Vimos, por exemplo, o que aconteceu na Califórnia, e o quão feroz foi a oposição por parte dos lobistas face à alteração legislativa.

Há lóbis, há pressão. Fico com ideia de que a própria lei 45/2018 também é resultado de alguma atividade de lóbi que a Uber fez na altura. Pela forma como ela foi redigida, vê-se que é um “fato talhado à medida” dos interesses da empresa.

Há uma disputa poderosíssima sobre a qualificação deste tipo de relação. A narrativa que é segregada por essas empresas é a de que, se os motoristas forem reconhecidos como seus trabalhadores, isso comprometerá o modelo de negócio desenvolvido. Esta ideia é fictícia. O que é preciso é garantir o respeito pelos direitos dos trabalhadores e que este modelo de negócio não assente na exploração desenfreada de quem presta esses serviços, sob a capa de que seriam supostos trabalhadores independentes. 

Já este mês, no dia 19, foi aprovada no Conselho de Ministros espanhol a chamada “Lei Rider”. 

A lei não é extensa, e já percebi que há diferentes opiniões sobre o seu alcance entre os juristas espanhóis. Mas, de algum modo, veio passar para a lei aquilo que era o sentido da decisão do Supremo Tribunal espanhol no caso do estafeta da Glovo. A própria lei dá um sinal de que presume-se que os estafetas têm uma relação de trabalho dependente. E a aprovação desta lei resultou de negociações em sede de concertação social. 

Mesmo que se possa discutir se é a melhor forma tecnicamente, creio que este é um marco muito importante, porque mostra um sinal político de progressivo reconhecimento de que estas pessoas são trabalhadores e de que o Direito do Trabalho tem de se ocupar delas, tem de construir regras e soluções adaptadas a essas novas formas de trabalhar.

(...)

Neste dossier:

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A verdadeira inovação por detrás da aplicação é um novo modelo de relações laborais que combina financeirização, evasão fiscal e falsos empresários individuais. Por José Gusmão.

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Perante o anúncio do decreto pelo qual se realiza a laboralização dos trabalhadores das plataformas digitais e, ainda que, aparentemente, vá ao encontro das nossas reivindicações, pela nossa parte não temos razões maiores para celebrar. Pela Plataforma Riders X Derechos BCN – IAC.

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O investigador Nuno Boavida falou com o Esquerda.net sobre o projeto europeu CROWDWORK - Encontrar novas estratégias para organizar trabalhadores de plataformas digitais na economia Gig (2019-2021), do qual é líder científico. Por Mariana Carneiro.

Plataformas digitais: “É preciso impedir injustiças entre países”

O investigador Giovanni Allegretti defende que é necessário criar legislação supranacional e “requerer que as plataformas contribuam mais para o bem-estar dos trabalhadores e dos cidadãos”. Por Mariana Carneiro.

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Documentário "Estafados - Histórias da precariedade organizada"

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