A proposta de criação de um passaporte digital de vacinação da COVID-19 foi recentemente anunciada pela Comissão Europeia. Esta medida é discriminatória, devido à falta de abundância de vacinas a nível global; é perigosa, pois pode fornecer dados de saúde pessoais valiosos a entidades privadas; é duvidosa cientificamente, pois não há garantia de que as vacinas impeçam a transmissão do vírus; e, por último, desvia o foco que o esforço global deve ter - assegurar que as vacinas são acessíveis a todos os países de forma equitativa.
Esta proposta tem um lado aparentemente sedutor, imediato e legítimo: a promessa da retoma de uma vida normal, recuperação económica e de empregos, regresso à liberdade de circulação e do convívio público. Na realidade abre a porta ao corte de liberdades, ao restringir o acesso a restaurantes, eventos culturais ou até a empregos. Parece ficção distópica, mas não é. Israel avançou precisamente com esta medida, e servirá de inspiração a outros Estados, tal como já o fez o chanceler austríaco, Sebastian Kurz.
As vacinas têm sido usadas pelos Estados como armas no xadrez geopolítico
As vacinas têm sido usadas pelos Estados como armas no xadrez geopolítico. A oferta, ou venda, de vacinas tem sido usada para maximizar influências políticas e assegurar interesses nacionais. A pandemia veio colocar a saúde como um tema forte das Relações Internacionais, não como uma questão de Direitos Humanos, mas sim através da securitização e defesa dos interesses nacionais. Por sua vez, as farmacêuticas beneficiam duplamente. Desenvolveram em tempo recorde uma vacina contra a COVID-19 usando dinheiros públicos, e agora abusam das patentes secretas, transformando um bem que devia ser público e global num negócio de alto rendimento.
Não existindo um acesso universal às vacinas, será justo excluir uma esmagadora maioria da população mundial?
Olhando para o mapa cronológico da vacinação a nível global, é evidente a clara injustiça e o agravar das desigualdades internacionais.
Não existindo um acesso universal às vacinas, será justo excluir uma esmagadora maioria da população mundial?
A existência de um passaporte digital de vacinação vem expor a falta de acesso universal de vacinas, tanto a nível nacional como global. Grupos sociais mais vulneráveis nos países mais ricos e a maioria da população nos países do Sul Global são por esta via excluídos e discriminados.O insuspeito Conselho de Viagens e Turismo Mundial alerta para as injustiças criadas com uma medida deste género para com populações de países com menor acesso a vacinas. Com a implementação de uma medida deste género, as restrições à migração para a Europa podem aqui ter mais um fator discriminatório e ser pretexto de agendas racistas e xenófobas escondidas em argumentos sanitários.
A discriminação e exclusão com base numa doença não é inédita. Um dos piores exemplos foi a proibição de entrada nos Estados Unidos, entre outros países, a pessoas que vivem com VIH.Este impedimento discriminatório aconteceu durante 22 anos, medida interrompida apenas com Obama. É uma medida ineficaz que cria uma falsa ilusão de controlo e que afasta as pessoas dos cuidados de saúde. Estigmatizar com base em pressupostos sanitários deve ser evitado a todo o custo.
Do ponto de vista da eficácia técnica e científica, esta medida tem também fragilidades. A vacina desenvolvida, e atualmente existente, é contra a doença de COVID-19 e seus efeitos severos e não é ainda uma vacina que impossibilite a transmissão do vírus SARS COV-2, ou seja, a vacina protege contra a severidade da doença, não garante que o vírus não se transmita. Apesar de alguns estudos indicarem que a toma da vacina reduz a transmissão do vírus, ainda não existem certezas, levando a OMS a desaconselhar a implementação de passaportes digitais de vacinação. No limite, poderá uma pessoa ser vacinada contra a COVID-19 e transmitir o vírus a alguém que ainda teve acesso à vacina. Na falta de certeza, a prudência recomenda não arriscar.
Com a existência deste passaporte, abre-se também a possibilidade de milhões de cidadãos terem os seus dados de saúde nas mãos de entidades privadas
Com a existência deste passaporte, abre-se também a possibilidade de milhões de cidadãos terem os seus dados de saúde nas mãos de entidades privadas. Embora a regulamentação de dados de saúde ofereça algumas garantias, o caso da Pfizer em Israel deve-nos deixar atentos. Grande parte do sucesso da velocidade de vacinação em Israel resulta do acordo sórdido entre o Estado e a farmacêutica Pfizer, em que a moeda de troca para a entrega de mais vacinas a Israel foi o acesso a dados de saúde da população israelita. É nesta linha que já se perfilam grandes atores tecnológicos como a Microsoft ou a Oracle que aproveitam este capítulo da pandemia para garantir mais um filão de lucro, seguindo a linha neoliberal:cada crise constitui-se como um mar de oportunidades.
A saúde deve ser vista com um Direito Humano e não como um estigma ou como uma arma
Será este passaporte um jogo de luzes para esconder o negócio falhado da União Europeia com as farmacêuticas? Sim. Em vez disso,o foco deve estar em garantir que as vacinas chegam a todos os países de forma equitativa. Para isso, a quebra das patentes e a produção descentralizada das vacinas deve ser a solução. A saúde deve ser vista com um Direito Humano e não como um estigma ou como uma arma.