Para os egípcios este é o milagre da Praça Tahrir

Esta insurreição foi universal: foi possível que nos identificássemos, quase de imediato, em qualquer parte do mundo, com esta revolta; ou seja, foi possível perceber imediatamente o que estava em causa sem ser necessária uma análise cultural da sociedade egípcia. Artigo de Slavoj Žižek, escrito na véspera da queda de Mubarak, para a edição electrónica guardian.co.uk

13 de fevereiro 2011 - 9:50
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Os acontecimentos no Egipto afiguram-se quase “milagrosos”: aconteceu algo previsto por poucos e contrário à opinião dos especialistas, como se esta revolta não fosse o resultado de dinâmicas sociais mas antes de uma misteriosa entidade, a qual, ao jeito de Platão, pudéssemos dar o nome de eterna busca da liberdade, da justiça e da dignidade.

Esta insurreição foi universal: foi possível que nos identificássemos, quase de imediato, em qualquer parte do mundo, com esta revolta; ou seja, foi possível perceber imediatamente o que estava em causa sem ser necessária uma análise cultural da sociedade egípcia. Ao contrário da revolução iraniana liderada por Khomeini, onde a esquerda teve de fazer das suas ideias contrabando, no Egipto clama-se por justiça e liberdade num contexto inequivocamente secular e universal – tanto que a Irmandade Muçulmana foi obrigada a formular as suas exigências em termos muito seculares.

O momento mais sublime, e a melhor resposta que se podia dar à violência sectária religiosa, ocorreu quando muçulmanos e cristãos coptas se juntaram em oração na Praça Tahrir (Praça da Libertação, Cairo) com este canto, “Nos somos um só povo!”. Os neo-conservadores – que tanto criticam o multiculturalismo em nome da universalidade dos apelos à liberdade e à democracia – debatem-se agora com o seu momento de verdade: vocês querem liberdade e democracia? Se é isto o que os egípcios exigem, o que temem os neo-conservadores? O facto de os egípcios exigirem, com o mesmíssimo fôlego, tanto a liberdade e a dignidade como a justiça social e económica?

A violência por parte dos insurrectos tem sido, desde o início, puramente simbólica, trata-se de um acto de desobediência civil colectivo e radical. A autoridade do Estado foi suspensa. Não se trata apenas de uma libertação individual, trata-se de partir as correntes da servidão. A violência física, essa foi empregue por bandidos a soldo de Mubarak, os quais invadiram a Praça da Libertação, a cavalo e a camelo, agredindo os manifestantes aí reunidos – estes limitaram-se a defenderem-se.

A mensagem dos insurrectos não é sanguinária, embora seja combativa. Exige-se que Mubarak se demita, abrindo assim caminho à liberdade, uma liberdade que não seja recusada a ninguém: os manifestantes não gritavam “Morte” ao exército – ou mesmo à odiada polícia – mas antes “Juntem-se a nós! Somos irmãos!”. Este facto permite estabelecer a distinção entre um movimento emancipador e um movimento populista, uma vez que a mobilização da direita proclama a unidade orgânica do povo egípcio num apelo a aniquilação de um inimigo há muito eleito (Judeus, traidores).

Em que pé estamos? Há dois caminhos que podem ser seguidos sempre que um regime autoritário se abeira da sua dissolução. No primeiro dos casos, dá-se uma ruptura ainda antes de o regime ruir de todo: quando, por exemplo, e de um momento para o outro, a população se apercebe de que já não receia nada e de que, para todos os efeitos, o regime acabou. Não é apenas a legitimidade do regime que se esfuma, é o próprio exercício de poder que é interpretado como uma reacção de pânico e de impotência. Todos conhecemos a famosa cena dos desenhos animados em que o gato se aproxima do precipício e continua a correr sem reparar nele – só cai quando se apercebe que nada há sob as suas patas. Os regimes são como o gato quando perdem a autoridade: para precipitá-los basta fazê-los olhar para o precipício...

Em “O Xá dos Xás”, o famoso relato da revolução liderada por Khomeini, Ryszard Kapuscinski precisa o momento desta ruptura: um manifestante, um único manifestante, num dos cruzamentos de Teerão, recusa-se a mover-se quando um polícia lhe grita para seguir; o mesmo polícia, embaraçado, acabaria por se retirar. Horas depois já Teerão inteira estava a par deste incidente: nesta altura já todos intuíam que o regime estava por um fio, apesar das escaramuças com a polícia terem continuado durante mais algumas semanas.

Está o Egipto a passar por uma situação semelhante? Nos primeiros dias parecia que Mubarak já estava na pele do conhecido gato. Seguiu-se uma operação bem planeada de rapto da revolução, cuja obscenidade era patente: o novo vice-presidente, Omar Suleiman – um antigo chefe dos serviços secretos responsável por torturas em massa –, apresentou-se enquanto a “face humana” do regime, aquele que iria dirigir a transição para a democracia.

A luta de resistência travada no Egipto não é um conflito de perspectivas, é antes um conflito entre uma determinada noção de liberdade e um cego que procura se agarrar ao poder e esmagar a vontade de ser livre – mesmo que para isso esteja disposto a empregar todos os meios possíveis: o terror, a falta de alimentos, o simples cansaço, o suborno na forma de aumentos salariais

A confusão foi absoluta quando o presidente Obama saudou a revolta egípcia enquanto a expressão legítima dos anseios populares, aos quais o governo deveria corresponder. Mas as multidões do Cairo e de Alexandria não queriam que o governo correspondesse aos seus anseios, era a própria legitimidade do governo que foi posta em causa. As multidões não queriam ter Mubarak como parceiro de diálogo, queriam que o mesmo se demitisse. Assim como ninguém desejava que o novo governo tomasse em consideração as exigências dos manifestantes, era o próprio Estado que necessitava ser refundado. As multidões não têm uma opinião, as multidões são a verdade do momento que se vive no Egipto. Mubarak, ao contrário de Obama, entende o que está em causa: não há margem para compromisso, tal como não a houve quando os regimes comunistas foram desafiados nos anos oitenta. Ou o regime de Mubarak cai, ou a revolta é apropriada politicamente e traída.

E o que dizer acerca dos receios que se adivinham após a queda do regime em torno da questão israelita: irá o novo governo ser hostil a Israel? Não haverá nada a temer se tal governo constituir a expressão autêntica de um povo que frui orgulhosa e jubilosamente a sua liberdade: o anti-semitismo só poderá aumentar onde existe desespero e opressão. (A CNN, em reportagem no interior do Egipto, noticiou o rumor que o governo estava a espalhar acerca dos líderes dos protestos e dos jornalistas estrangeiros, segundo o qual estes mesmos líderes e jornalistas estavam a ser enviados pelos judeus para minar o Egipto – aqui se comprova quão ‘amigo dos judeus’ era Mubarak).

Uma das ironias mais cruéis destes eventos é a preocupação ocidental em relação ao “carácter legal” da transição – como se o Egipto tivesse tido um estado de direito. Não estaremos nós a esquecermo-nos de que, durante muitos anos, o Egipto viveu num estado de emergência permanente? Mubarak suspendeu o estado de direito e imobilizou o país ao sufocar qualquer movimento político genuíno. Faz todo o sentido, então, que os inúmeros egípcios entrevistados nas ruas do Cairo confessem que, pela primeira vez nas suas vidas, se sentem vivos. Aconteça o que acontecer, é muito importante que esta sensação de “estar vivo” não venha a ser sepultada sob as lápides da cínica realpolitik.

10 de Fevereiro 2011

Slavoj Žižek é co-editor de The Idea of Communism, publicado pela Verso Books.

Tradução de Pedro Sena para o Esquerda.net

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