“Há condições ideais para a esquerda reconstruir-se como alternativa”

Extractos de uma entrevista de Faruq Sulehnia a Gilbert Achcar, professor de estudos sobre o desenvolvimento e relações internacionais na Escola de Estudos Orientais e Africanos (EEOA) de Londres. Realizada ainda antes da queda de Mubarak.

13 de fevereiro 2011 - 9:20
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Quando falas de oposição, a que forças te referes? Claro, ouvimos falar da Irmandade Muçulmana e de El Baradei. Existem outros participantes, como organizações de esquerda, sindicatos, etc.?

A oposição egípcia inclui um grande leque de forças. Há partidos, como o Wafd, que são legais e constituem aquilo que podemos designar como a oposição liberal. Depois, há uma zona cinzenta ocupada pela Irmandade Muçulmana. Não estão legalizados, mas o regime tolera-os. Os membros da sua estrutura são conhecidos, não é uma organização clandestina. Sem dúvida, são de longe a principal força na oposição. Quando o regime de Mubarak, pressionado pelos EUA, concedeu um certo espaço à oposição nas eleições parlamentares de 2005, a Irmandade Muçulmana, cujos candidatos apresentaram-se como “independentes”, conseguiram 88 deputados, isto é, 20% do lugares no parlamento, apesar de todos os entraves. Nas últimas eleições de Novembro e Dezembro passados, depois de o regime ter decidido fechar o espaço concedido em 2005, a Irmandade Muçulmana quase desapareceu do parlamento, perdendo todos os lugares à excepção de um.

Entras as forças de esquerda, a maior é o partido Tagammu, que é legal e tem cinco deputados. Reclama-se do legado nasserista1 e nas suas fileiras militaram destacados comunistas. É basicamente um partido da esquerda reformista e o regime não o considera um ameaça. Pelo contrário, mostrou-se bastante complacente em várias ocasiões. No Egipto também há nasseristas de esquerda e grupos de esquerda radical, pequenos e muito activos e muito implantados no movimento de massas.

Existem ainda movimentos da “sociedade civil”, como o Kefaya, uma aliança de forças de oposição que se constituiu em solidariedade com a Segunda Intifada palestiniana em 2000. Mais tarde opôs-se à invasão do Iraque e posteriormente deu-se a conhecer como movimento democrático contrário ao regime de Mubarak. De 2006 a 2009, o país assistiu a uma onda de acções do movimento operário, incluindo algumas greves massivas. No Egipto não existem sindicatos independentes, com uma ou duas excepções muito recentes, fruto da radicalização social. O grosso da classe operária não conta com uma representação e organização independentes. A tentativa de convocar uma greve geral a 6 de Abril de 2008 em solidariedade com os trabalhadores deu lugar à criação do Movimento Juvenil do 6 de Abril. As associações como esta e o Kefaya são grupos orientados para a mobilização, não para serem partidos políticos, e nas suas fileiras militam pessoas de distintas filiações políticas juntamente com activistas sem qualquer afiliação partidária.

Quando Mohamed el Baradei voltou ao Egipto em 2009, depois de deixar a direcção da AIEA2, o seu prestígio pessoal, reforçado pelo Prémio Nobel da Paz em 2005, permitiu-lhe reunir à sua volta uma série de personalidades e grupos liberais e de esquerda, mas a Irmandade Muçulmana adoptou uma posição mais tímida relativamente a ele. Muitos membros da oposição viam El Baradei, que goza de um reputação e contactos internacionais, como um potencial candidato com possibilidades frente a Mubarak ou ao seu filho. Deste modo, converteu-se numa referência para grande parte da oposição e conseguiu agrupar tanto forças políticas como personalidades. Assim se formou a Associação Nacional para a Mudança.

Todas estas forças estão muito ligadas ao presente levantamento. No entanto, a grande maioria dos manifestantes nas ruas não têm filiação política nenhuma. É uma enorme massa farta de viver sob um regime despótico cuja fúria é alimentada pela deterioração das condições económicas devido ao forte aumento dos preços dos produtos básicos, como alimentos, combustível e electricidade, tudo isto acompanhado de um crescente desemprego. Isto não ocorre apenas no Egipto, mas sim na maior parte da região, o que explica que o fogo da revolta que começou em Tunes, se tenha alastrado tão rapidamente a tantos países árabes.

É El Baradei realmente uma figura popular, ou é de alguma maneira Mir-Hossein Musavi3 do movimento egípcio, isto é, alguém que tenta mudar as caras sem acabar com o regime?

Em primeiro lugar, não estou de acordo com essa caracterização de Musavi. Está claro que ele não queria “mudar o regime”, se por isso se entende uma revolução social. Mas houve sem dúvida um choque entre forças sociais, encabeçadas pela Pasdaran (a Guarda Revolucionária) e representadas por Ahmadinejad, e outros sectores agrupados em redor de uma perspectiva reformista liberal representada por Musavi. Houve efectivamente um confronto entre as duas concepções do “regime”, quer dizer, do modelo de sistema político.

Mohamed el Baradei é um autêntico liberal que quer que o seu país passe da ditadura actual a um regime democrático liberal, com eleições livres e liberdades políticas. Se existe um leque tão grande de forças políticas que desejam colaborar com ele, é porque vêem nele a alternativa liberal mais credível ao regime existente, um homem que não está à frente de uma organização própria e, portanto, uma figura adequada para a mudança democrática.

Voltando à analogia anterior, não se pode comparar com Musavi, que pertence ao regime iraniano e é um dos homens que liderou a revolução islâmica de 1979. Musavi contava com os seus próprios seguidores no Irão antes do erguer-se como líder do movimento massivo de protesto de 2009. No Egipto, El Baradei não pode nem quer desempenhar um papel semelhante. É apoiado por uma ampla gama de forças, mas nenhuma delas o considera seu líder.

A atitude reservada que a Irmandade Muçulmana mostrou inicialmente em relação a El Baradei, tinha a ver, em parte, com o facto de que ele não tem inclinações religiosas e é demasiado laico para o seu gosto. Além disso, a Irmandade tinha cultivado uma relação ambígua com o regime ao longo dos anos. Se tivessem apoiado plenamente El Baradei, tinha reduzido a sua margem de manobra perante o regime de Mubarak, contra o qual tem estado a regatear constantemente. O regime deu-lhe muitas concessões na esfera sócio-cultural, por exemplo, o reforço da censura islâmica em questões culturais. Era o mais fácil que o regime podia fazer para apaziguar a Irmandade. Devido a isso, o Egipto retrocedeu muito no que respeita à secularização que se tinha consolidado durante o tempo de Gamal Abdel Nasser no anos 50 e 60 do século passado.

O objectivo da Irmandade consiste em assegurar uma mudança democrática que lhe permita participar em eleições livres, tanto parlamentares como presidenciais. O modelo que pretendem reproduzir no Egipto é o da Turquia, onde o processo de democratização estava controlado pelo Exército e este continua a ser um pilar fundamental do sistema político. No entanto, este processo criou um espaço que permitiu ao AKP, um partido islâmico conservador, ganhar as eleições. Não querem derrubar o Estado e por isso cortejam os militares e preocupam-se em evitar qualquer gesto que possa indispor o Exército. Aplicam uma estratégia de conquista gradual do poder, são gradualistas, não radicais.

Os meios de comunicação ocidentais insinuam que a democracia no Médio Oriente levaria à vitória do integrismo islâmico. Assistimos ao regresso triunfal de Rachid Ghanuchi a Tunes depois de muitos anos de exílio. A Irmandade Muçulmana poderia ganhar umas eleições livres no Egipto. Que pensas disto?

Eu daria a volta à questão. Diria que a falta de democracia foi o que permitiu à forças integristas religiosas ocupar esse espaço. A repressão e a falta de liberdades políticas diminuíram notavelmente as possibilidades do movimentos de esquerda, operários e feministas de desenvolver-se perante a crescente injustiça social e degradação económica. Nestas condições, a maneira mais fácil de expressar o protesto massivo é a utiliza os canais mais facilmente disponíveis e abertos. E assim foi como a oposição acabou sendo dominada por forças que aderem a ideologias e programas religiosos.

Aspiramos a uma sociedade em que estas forças sejam livres de defender os seus pontos de vista, mas em concorrência ideológica aberta e democrática entre todas as correntes políticas. Para que as sociedades do Médio Oriente voltem à senda da secularização política, à desconfiança popular ante o aproveitamento político da religião que prevaleceu nos anos 50 e 60 do século passado, necessitam do tipo de educação política que se pode adquirir unicamente através de uma prática prolongada de democracia.

Dito isto, o papel dos partidos religiosos varia de um país para outro. É certo que Rachid Ghanuchi foi recebido por uns quantos milhares de seguidores quando chegou ao aeroporto de Tunes. Contudo, o seu movimento, Al Nahda, tem muita menos influência em Tunes do que a Irmandade Muçulmana tem no Egipto. Claro, isto deve-se em parte ao facto de que a Al Nahda sofreu uma feroz repressão desde o anos 90. Mas também tem a ver com o facto de que a sociedade tunisina é menos propensa a ideias integristas religiosas que a egípcia, graças ao seu maior grau de ocidentalização e ao seu maior nível de educação, assim como a própria história do país.

Todavia, não há dúvida de que as principais forças da oposição aos regimes existentes em toda a região são partidos islâmicos. Faz falta uma experiência democrática prolongada para mudar a direcção do vento que prevaleceu durante mais de três décadas. A alternativa é a situação argelina, onde o exército cortou um processo eleitoral mediante um golpe de Estado em 1992, que deu lugar a uma guerra civil devastadora e cujo preço ainda está a ser pago pelo país.

A impressionante eclosão das aspirações democráticas dos povos árabes nas últimas semanas têm sido realmente um alento. Nem em Tunes, nem no Egipto, nem em nenhum outro lugar, os protestos populares foram inspirados em programas religiosos ou foram principalmente encabeçados por forças religiosas. Tratam-se de movimentos democráticos que mostram um profundo desejo de democracia. As sondagens mostraram durante muitos anos, que a democracia é um valor sumamente apreciado nos países do Médio Oriente, contrariamente aos preconceitos “orientalistas” sobre a “incompatibilidade” cultural dos países muçulmanos com a democracia. Os acontecimentos em curso demonstram uma vez mais que toda a população privada de liberdade acabará por levantar-se pela democracia, qualquer que seja a “esfera cultural” a que pertence.

Quem quer que seja que se apresente em futuras eleições livres no Médio Oriente e as ganhe, terá que lidar com uma sociedade na qual a exigência de democracia adquiriu uma força enorme. Será muito difícil para qualquer partido – qualquer que seja o seu programa – hipotecar estas aspirações. Não digo que será impossível, mas um resultado importante dos acontecimentos em curso, é que as aspirações populares de democracia adquiriram um impulso formidável. Criaram as condições ideais para que a esquerda possa reconstruir-se como alternativa.

Gilbert Achcar, cresceu no Líbano, é professor de estudos sobre o desenvolvimento e relacões internacionais na Escola de Estudos Orientais e Africanos (EEOA) de Londres e é autor de vários livros, entre eles “The Arabs and the Holocaust: the Arab-Israeli War of Narratives”, Metropolitan Books, Nova Iorque, 2010, publicado recentemente.

4-2-11

Retirado de Viento Sur

Tradução de Sofia Gomes para o Esquerda.net

 

1 Gamal Abdel Nasser foi presidente do Egipto entre 1956 e 1970. Enfrentou as potências ocidentais, foi um dos líderes do movimento dos países não-alinhados e o expoente máximo do nacionalismo egípcio.

2 Organismo Internacional de Energia Atómica. Em 2003, El Baradei entrou em confronto com George W. Bush e seus aliados ao desmentir categoricamente os boatos sobre a existência de armas de destruição massiva no Iraque.

3 Ex-primeiro- ministro iraniano, concorreu às eleições presidenciais de 2009 contra o actual presidente Ahmadinejad, conseguindo muitos votos da juventude e da classe média urbana.

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