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O 1848 árabe: os déspotas cambaleiam e caem

Estamos a ser testemunhas de uma onda de levantamentos nacional-democráticos que lembram mais as agitações de 1848 – contra o Czar, o Imperador e os seus colaboradores – que varreram a Europa e foram presságios de posteriores turbulências. Este é o 1848 árabe.
Os militares declararam que não dispararão contra o seu próprio povo. Foto de Omamr Robert Hamilton, FlickR

Não pode durar muito mais porque os militares declararam que não dispararão contra o seu próprio povo, o que exclui a opção da praça de Tiananmen. Se os generais (que sustentam este regime há muito tempo) faltarem com a sua palavra podem dividir o exército e preparar o terreno para a guerra civil. Ninguém quer isso, nem os israelitas, que gostariam que seus amigos dos EUA mantivessem o seu homem-chave no Cairo tanto tempo que fosse possível. Mas isso também é impossível.

Washington quer uma “transição ordenada”, mas as mãos de Suleiman o Fantasma (ou o Senhor da Tortura, como algumas das suas vítimas o chamam), que empurraram goela abaixo de Mubarak, também estão manchadas de sangue. Substituir um torturador por outro já não é aceitável. As massas egípcias querem uma mudança total do regime, não uma operação ao estilo do Paquistão, onde um civil sem vergonha substitui um ditador uniformizado e nada muda verdadeiramente.

A infecção tunisina expandiu-se muito mais rapidamente do que se poderia imaginar. Após uma longa letargia induzida por derrotas (militares, políticas e morais) a nação árabe está a despertar. A Tunísia provoocou impacto imediato na vizinha Argélia e esse estado de ânimo cruzou então o Jordão e chegou ao Cairo uma semana depois. Estamos a ser testemunhas de uma onda de levantamentos nacional-democráticos que lembram mais as agitações de 1848 – contra o Czar, o Imperador e seus colaboradores – que varreram a Europa e foram presságios de posteriores turbulências. Este é o 1848 árabe. O Czar-Imperador de hoje é o presidente da Casa Branca. Isso é o que diferencia estas proto-revoluções dos assuntos de 1989: isso e o fato de que, com poucas excepções, as massas não se mobilizaram elas mesmas no mesmo grau. Os europeus do leste submeteram-se aos ocidentais, vendo nisso um futuro feliz e entoaram “Tomem-nos, tomem-nos, já somos vossos”.

As massas árabes querem romper com o horrível abraço. Os Estados Unidos e a União Europeia têm dado o seu apoio a ditadores dos quais (as massas árabes) querem se livrar. São revoltas contra o universo da miséria permanente: uma elite cega por sua própria riqueza, corrupção, desemprego massivo, tortura e subjugação ao Ocidente. O redescobrimento da solidariedade árabe contra as ditaduras repelentes e os que as sustentam é um novo ponto de inflexão no Oriente Médio. Trata-se da renovação da memória histórica da nação árabe que foi brutalmente destruída pouco depois da guerra de 1967. Neste aspecto, o contraste não pode ser mais vivo. Gamal Abdel Nasser, apesar dos seus erros e debilidades, viu a derrota de 1967 como algo sobre o qual teve que assumir a sua responsabilidade. Renunciou. Mais de um milhão de egípcios se reuniram no coração do Cairo para pedir que ele ficasse no poder. E ele mudou de opinião. Morreu no cargo poucos anos depois, com o coração dilacerado e sem dinheiro. Seus sucessores entregaram o país a Washington e a Tel Aviv por um prato de lentilhas.

Os acontecimentos do último mês assinalaram o primeiro renascer autêntico do mundo árabe desde a derrota de 1967. Todos os cataventos sempre alertam para não se ficar nunca no lado errado da história e evitar sempre toda experiência de derrota, mas foram surpreendidos por estes levantes. Esqueceram que as revoltas e as revoluções, formadas por circunstâncias reais, ocorrem quando as massas, as multidões, a cidadania – não importa como as chamamos – decidem que a vida tornou-se tão insuportável que não será mais suportada. Para esta gente, uma infância pobre e a injustiça resultam tão naturais quanto um pontapé na cabeça recebido na rua ou um interrogatório brutal na cadeia. Já experimentaram tudo isso, mas quando as mesmas condições ainda estão presentes e agora já são adultos, então o medo da morte retrocede. Quando se atinge essa etapa, uma só faísca pode acender um fogo na savana. Neste caso, literalmente, como demonstra a tragédia do jovem que se imolou na Tunísia.

Estamos no princípio da mudança. As massas árabes não foram sufocadas pela força, desta vez, e não sucumbiram. O que oferecerão ao seu povo os que substituirão os déspotas na Tunísia e no Egito? A democracia, por si só, não pode alimentá-los ou dar-lhes emprego...

Publicado a 2 de Fevereiro no Counterpunch

Tradução: Katarina Peixoto, da Carta Maior

Sobre o/a autor(a)

Escritor paquistanês, activista revolucionário estabelecido em Inglaterra.
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Neste dossier:

Revolução no Egipto

Ao fim de 18 dias de mobilização, de combates de rua e de centenas de mortes, a revolução egípcia teve a sua primeira grande vitória com a queda de Mubarak. Este levante sem precedentes na história do Egipto seguiu-se à vitória na Tunísia e muito provavelmente dará o sinal para a queda de outras ditaduras no mundo árabe.

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Esta insurreição foi universal: foi possível que nos identificássemos, quase de imediato, em qualquer parte do mundo, com esta revolta; ou seja, foi possível perceber imediatamente o que estava em causa sem ser necessária uma análise cultural da sociedade egípcia. Artigo de Slavoj Žižek, escrito na véspera da queda de Mubarak, para a edição electrónica guardian.co.uk

Desde 2006, Egipto vive a maior e mais sustentada onda grevista

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Sindicatos e organizações independentes criam uma Federação de Sindicatos Independentes

Os operários e empregados egípcios recusam que a “governamental” Federação Geral dos Sindicatos os represente e fale em seu nome. Por isso os sindicatos e organizações independentes declaram a fundação de uma Federação dos Sindicatos Independentes do Egipto.

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50 anos de história secreta: Washington e a Irmandade Muçulmana

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