A pandemia veio acompanhada de uma infodemia. A invenção da palavra é atribuída a David Rothkopf, em 2003, numa coluna do Washington Post, sobre o surto de SARS. A sua popularização, em tempo de Covid, chega com a utilização da Organização Mundial de Saúde que tem defendido que “as informações enganosas comportam-se como agentes patogénicos durante uma epidemia: propagam-se mais rapidamente e a uma escala maior, tornando mais complexa a conduta das intervenções de urgência.” Uma infodemia é composta por “alguns factos, misturados por medo, especulação e rumores”, tudo amplificado pela tecnologia.
A desinformação propagada junto com a pandemia de Covid-19 tem estes ingredientes mas assumiu várias formas. As teorias da conspiração sobre a sua origem são múltiplas, concorrentes, contraditórias, jogando com os mesmos medos e ansiedades. Mas convivem nos mesmos espaços. Quem nega a existência do vírus, quem minimiza as suas consequências e quem nele acredita como arma criada pelo governo, por uma potência estrangeira ou por um governo parece estar do mesmo lado.
Pegamos em duas destas teorias para conhecer alguns protagonistas e saber o que com isso ganham. Porque a infodemia é também um negócio.
Anti-vacinas, um medo inoculado por negócios
Num relatório conjunto sobre desinformação e vacinas, as instituições britânicas Royal Society e British Academy analisam a anatomia de um movimento que já vem do século XIX e da rejeição da vacinação obrigatória contra a varíola que foi forte no Reino Unido, Suécia e EUA. Então como agora, o argumentário passava pela alegação de que as vacinas causam doenças ou são ineficazes e pelas teorias da conspiração que ligavam o lucro de quem as vendia com o interesse ditatorial dos governantes.
Desde então, alguns “surtos” de crença anti-vacinas foram despontado. Mas o movimento renasce verdadeiramente depois de um estudo fraudulento ter sido publicado na revista Lancet em 1998 pelo ex-cirurgião Andrew Wakefield que ligava vacinação e autismo. Ficou provado que Wakefield agiu por interesse financeiro (foi financiado pelos advogados de pais que estavam a processar as empresas produtoras de vacinas) mas a narrativa pegou tanto que nos anos seguintes continuou a fabricar crentes.
Outros “surtos” mais pequenos foram ocorrendo depois disso. Entre fevereiro e outubro de 2019, durante um surto de sarampo, as páginas de Facebook anti-vacinas cresceram 500%, comparando com um crescimento de 50% das páginas pró-vacinas, de acordo com uma análise publicada na revista Nature. Só 317 das (bastante mais) páginas anti-vacinas chegavam então a 4,2 milhões de seguidores.
Nos últimos anos, “influenciadores” das redes sociais têm sido um veículo para passar esta mensagem. Sublinham os académicos britânicos que muitas vezes também “oferecem métodos de cura alternativos para doenças infeciosas que têm vacinas eficazes (tais como vinagre de cidra ou alho), vendendo-os frequentemente”.
Um outro grupo é identificado como potencialmente anti-vacinas. Pode ler-se neste documento que “uma variedade de estudos mostrou que atitudes negativas para com a ciência estão correlacionadas com ideologias de direita e que é mais provável que pessoas conservadoras politicamente acreditem em conspirações sobre vacinas”.
O estudo da British Academy revela que duas organizações apenas financiavam a maior parte dos anúncios anti-vacinas no Facebook: o The World Mercury Group (de Robert Kennedy Jr.) e o Stop Mandatory Vaccination. Este grupo foi fechado pela plataforma em novembro de 2020 devido à desinformação que patrocinava. Antes disso, gerou controvérsia por nele uma mãe de um menino de quatro anos ter pedido conselhos sobre como tratar a gripe do seu filho. Os conselhos dados, e que ela seguiu, foram várias habituais receitas neste tipo de grupos. A criança acabou por morrer.
O grupo era gerido por Larry Cook que ganhava a vida com falsas “curas” para o autismo. Este depois aderiu entusiasticamente às teorias anti-vacinas. Financia-se através donativos, anúncios, vendas dos seus livros e t-shirt. Em campanhas no GoFundMe, conseguiu arrecadar desde 2015 mais de 100.000 dólares antes de ser cancelado. O dinheiro recolhido em nome do grupo vai parar à sua conta pessoal.
A pandemia do novo coronavírus corresponde assim a um novo “surto” anti-vacinas que rebentou nas redes sociais e que se traduziu por uma nova oportunidade de negócio.
O movimento anti-vacinas em tempo de Covid-19 também foi analisado pelo Centre for Countering Digital Hate em vários dos seus relatórios. Identificam-se aí as principais contas das redes sociais que propagam esta mensagem e criticam-se as redes sociais por deixarem que os seus seguidores tivessem crescido, desde 2019, em pelo menos mais sete milhões de pessoas.
Apesar das redes sociais retirarem vídeos e publicações, a organização revela, no seu mais recente relatório, Failure to Act, que das 912 publicações com desinformação analisadas, apenas menos de uma em cada 20 foram atingidas por medidas das empresas.
Em março, o CCDH tinha publicado o relatório The Disinformation Dozen que identificava os doze maiores divulgadores de desinformação contra as vacinas, responsáveis por quase dois terços do conteúdo deste tipo em circulação nas redes sociais.
Uma sequela desta investigação mostra ainda que, mesmo já estando a par da sua atividade e tendo prometido pará-la, Facebook e Twitter, deixaram que publicassem recentemente 105 vezes sobre o tema gerando 29 milhões de respostas. Dez destes doze permaneciam ativos no final de abril no Facebook e Twitter e nove no Instagram.
Há 59 milhões a receber diariamente desinformação deste tipo através de 425 contas, acrescenta-se. Um número que em vez de diminuir aumentou.
Estes “12 da desinformação são:
- Joseph Mercola, que vende suplementos dietéticos e falsas curas como alternativas às vacinas;
- Robert F. Kennedy, Jr., sobrinho do ex-presidente norte-americano, e que veicula a sua posição também através de uma organização a que chama Defesa da Saúde das Crianças;
- Ty e Charlene Bollinger, um casal que gere o site A Verdade Acerca do Cancro e que é um veiculo para vender vídeos, livros, suplementos alimentares e outros “tratamentos”;
- Sherri Tenpenny, uma osteopata que para além do movimento anti-vacinas também coloca em causa a eficácia das máscaras;
- Rizza Islam, membro da Nação do Islão, famoso igualmente pelas posições anti-semitas e anti-LGBT, e que defende que as vacinas causam autismo, várias doenças e mortes e que são parte de um plano governamental para diminuir a população negra dos EUA;
- Rashid Buttar, osteopata e teórico da conspiração, particularmente ativo no YouTube.
- Erin Elizabeth, parceira de Joseph Mercola, o seu negócio é o Health Nut News, um site sobre “saúde alternativa”;
- Sayer Ji que também gere um site, GreenMedInfo.com, onde vende livros e cursos, e se declara “psiquiatra holística”;
- Christiane Northrup que era ginecologista tornada famosa pelas participações em programas de grande audiência como os de Oprah Winfrey e do Dr. Oz, antes de se dedicar às medicinas alternativas, às teorias anti-vacina e se converter à teoria da conspiração Qanon;
- Ben Tapper, quiroprático, de direita, diz que a vacina altera o DNA e é ativista anti-máscaras;
- Kevin Jenkins dedica-se a passar a teoria de que as vacinas são uma conspiração para eliminar a população negra, dedica-se agora a vender viagens sem máscara, sem quarentena, sem vacinação, através de uma empresa chamada Freedom Airway & Freedom Travel Alliance.
Da autoria do CCDH há ainda dois outros relatórios anteriores que são importantes sobre o tema. The Anti-Vaxx Industry. How Big Tech powers and profits from vaccine misinformation que mostrava como as redes sociais ganhavam mais de mil milhões de dólares através dos 58 milhões de seguidores do movimento anti-vacinas, sobretudo através de publicidade. E The Anti-Vaxx Playbook. Exposing anti-vaxxers' deadly plan to disrupt Covid vaccines, and how we can stop them que analisa as táticas e o discurso anti-vacinas a partir de uma reunião tida por alguns dos membros do movimento em outubro de 2020 e onde o CCDH se infiltrou. Segundo este, a pandemia foi vista como uma oportunidade histórica para passar a sua mensagem e aumentarem a sua audiência. A sua narrativa centrou-se em três ideias simples: “a Covid não é perigosa”; “as vacinas são perigosas”; “deve-se desconfiar de médicos, cientistas e autoridades de saúde”.
Para além disso, informa-se, estão a tentar adotar uma estratégia de minimização de danos depois de serem banidos de várias plataformas, migrando para alternativas como o Telegram e o Parler, com pouco sucesso.
O medo do 5G, um negócio nas margens da tecnologia
Outro agente infodémico é a ideia de que a pandemia foi originada pela rede de banda larga de quinta geração em implementação em vários países. A teoria de que esta é nociva para a saúde já existia antes mas ganhou impulso com a chegada da pandemia e a sua associação ao coronavírus. Levou mesmo à destruição de várias dezenas de antenas e a cerca de 50 incidentes e ataques a trabalhadores da área das telecomunicações no Reino Unido no ano passado.
No The Conversation, vários especialistas juntam-se para analisar a sua origem e difusão. Marc Tutes, professor de Cultura Digital da Universidade de Amesterdão e Peter Knight, professor Estudos Americanos na Universidade de Manchester levam a sua genealogia até ao anos 1970 e aos medos sobre microndas e linhas elétricas. Depois, nos anos 1990, já a tecnologia 2G tinha enfrentado oposição. A ideia de que os telemóveis causavam cancro chegou a ser bastante popular.
A ligação do 5G ao coronavírus seria herdeira de todas estas teorias que suspeitam “das ondas”. Aliás, esta não se limita à teoria causal de que a tecnologia teria provocado a doença (uns dizem diretamente, outros através do enfraquecimento do sistema imunitário), e que teria começado em Wuhan porque foi aí que a esta tinha sido já implementada. Há ainda, entre várias outras, a teoria de que a crise pandémica foi inventada para permitir que o 5G seja instalado enquanto as pessoas estão em confinamento.
Segundo estes especialistas, “as teorias da conspiração do 5G são particularmente desafiantes por unem pessoas de diferentes partes do espetro político”. Por um lado, atraem a extrema-direita que as vê como parte de um assalto tecnológico do governo às liberdades dos indivíduos. Por outro lado, atraem a bem estabelecida comunidade anti-vacinas, que frequentemente se alia com quem desconfia das grandes farmacêuticas”.
Por sua vez, Wasim Ahmed, especialista em Negócios Digitais na Universidade de Newcastle, e Joseph Downing, investigador do nacionalismo na London School of Economics revelam o seu estudo sobre a difusão das teorias do 5G no Twitter que começou na altura em que as antenas foram vandalizadas. Descobriam uma conta @5gcoronavirus19 com 383 seguidores mas que se tinha tornado uma fonte muito influente de difusão de desinformação. Em apenas sete dias, criou 303 publicações sobre o tema que geravam muitas republicações. Em vários, o presidente Trump era identificado o que “sublinha a ideia de que estas teorias vêm da alt-right.” Do mesmo comprimento de onda política, também o InfoWars, do teórico da conspiração de extrema-direita, negacionista das alterações climáticas e opositor às vacinas, Alex Jones, por exemplo, é identificado como tendo publicado vários artigos a fazer a ligação Covid-19/5G.
Também o documentário da BBC “A vigarice sobre o 5G que o pode fazer adoecer”, para além de analisar as falsas alegações sobre os efeitos desta tecnologia, busca alguns dos que com ela lucram no Reino Unido. À cabeça, o realizador, empresário e ex-músico de rock, Sacha Stone, autor de um filme intitulado Apocalipse 5G e que teve mais de um milhão de visualizações no Youtube.
A pressão da opinião pública acabou por fazer fechar algumas das torneiras de dinheiro dos defensores da conspiração. Plataformas de vídeo como o Youtube e redes sociais como o Facebook começaram a retirar este conteúdo devido à pressão da opinião publica, fechando páginas e grupos como o Stop 5G U.K. que tinha 50.000 membros.
Mas o negócio não se limita às redes sociais, as suas páginas continuam a funcionar, e não se limitam ao virtual. Stone, por exemplo, organizou um grande evento em setembro de 2019, no edifício da Câmara de Chelsea sobre a ameaça do 5G com entrada paga e com o vídeo das intervenções à venda por subscrição.
Nele, vários oradores entre os quais Mark Steele, um dos mais famosos teóricos da conspiração britânicos, conhecido pelas intervenções em manifestações negacionistas, por defender que a causa da Covid é o 5G e por acusar a Câmara de Gateshead de estar a testar secretamente tecnologia que causa cancro, isto devido a um novo sistema de iluminação que conteria equipamentos 5G. Para se defender do processo judicial que lhe foi movido, ou melhor nas suas palavras para levar a tribunal o suposto primeiro teste do 5G, recorreu a outra arma de financiamento de alguns destes grupos, o crowdfunding, tendo recolhido perto de 20 mil libras através da plataforma GoFundMe. Noutra destas recolhas de fundos online, para “apoiar a resistência”, conseguiu mais oito mil libras. As suas páginas neste site foram entretanto removidas.
Outro evento em que este falou sobre o seu tema de eleição, em 2018, foi numa conferência do Partido dos Veteranos e Democratas, fundado por um dissidente do partido de extrema-direita UKIP. Atualmente lidera o movimento SUN, Save Us Now, ou seja “salvem-nos agora”, que centra a sua mensagem no 5G e no movimento anti-vacinas. Enquanto partido, também se dedica à recolha de fundos.
Sacha Stone não se fica pela internet e pelas palestras pagas. Promove uma pen usb anti-5G, chamada “5g Bioshield”, que custa 370 dólares. Questionado pela BBC sobre o que seja, o seu inventor, Jacques Bauer, esclarece que funciona através da mais alta alta frequência do mundo, canalizando amor.
Outro negócio no qual está metido é no dos suplementos alimentares. Como o “Imortalis” que trata “vítimas das frequências eletromagnéticas” e, como o próprio nome indica, também dará imortalidade, ou perto disso. Por apenas cerca de dez mil dólares por ano.
Ao Reino Unido, Stone pretende trazer outro suplemento, chamado Praesidium, alegadamente também para proteger do 5G. Por detrás de ambos está Marco Ruggiero, um ex-microbiólogo italiano várias vezes acusado de promover tratamentos pseudo-científicos.
Este Praesidium é vendido na Nova Zelândia pela empresa de Jami-Lee Ross, um ex-deputado do principal partido de direita do país e que acabou por sair do partido, acusando-o de corrupção e por ser acusado por sua vez de assédio para com várias das suas funcionárias. O seu novo partido, o Advance New Zealand tem pouca expressão mas tem uma componente anti-vacinas e anti-5G.