Para além das suas finalidades políticas, é conhecido que as fake news são um negócio lucrativo. As teorias da conspiração e o negacionismo da Covid-19, na sua senda, também o têm sido. Este é um fenómeno internacional com táticas e estratégias semelhantes para recolher financiamento: filmes, livros, crowdfunding, venda de merchandising e até de curas miraculosas não revertem obviamente para os bolsos de todos os que as seguem ou difundem.
As redes sociais mais conhecidas começaram por ser o seu centro mas muitas páginas foram entretanto fechadas. Mas, apesar disso, até aí o negócio continua a florescer como o mostram investigações jornalísticas.
Plandemia, a conspiração como um filme
Plandemic: The Hidden Agenda Behind Covid-19, um vídeo de orçamento baixo feito por um autor até então desconhecido, Mikki Willis, tornou-se um fenómeno. Em apenas 24 horas foi visto 2,5 milhões de vezes no YouTube. A plataforma retirou-o depois disso. Também foi retirado do Facebook depois de ter sido visto 1,8 milhões de vídeos e partilhado 150.000 vezes.
A remoção do filme, alega o Digital Forensic Research Lab, terá tido o efeito contrário do previsto, potenciando ainda mais o interesse nele. Aquilo a que é chamado o “efeito Streisand”, nome surgido depois a atriz ter tentado travar a publicação de imagens da sua casa o que, depois de conhecido, potenciou as visualizações. Para além disso, quando foi retirado já vários grupos dedicados à desinformação o tinham adotado.
Seguiu-se-lhe ainda Plandemic: Indoctornation mais caro em termos de produção mas que passou muito mais despercebido porque já não tinha a tração das redes sociais. A tese principal era que há uma conspiração para controlar o mundo e fazer dinheiro. Sendo a pandemia é parte central dessa trama.
Em ambos, surge Judy Mikovits, uma ex-investigadora afastada da ciência por acusação de conduta errada e que se tornou ativista anti-vacinas, é entrevistada e faz alegações falsas que foram desmentidas por cientistas e agências de fact-checking, por exemplo Science, Politifact e FactCheck. É também com eles que é impulsionada a teoria da conspiração que liga Bill Gates à disseminação da pandemia.
Noutra escala e região, o filme francês Holdup, Retour sur un chaos também foi um sucesso enorme. Rudy Reichstadt, diretor do Conspiracy Watch, entrevistado para um podcast da France Info, explica como este obteve seis milhões de visualizações em poucos dias, como conseguiu 300.000 mil euros através de plataformas de crowdfunding, para além da cobrança de downloads e de venda de merchandising. Ironicamente, o filme que alega que as máscaras são prejudiciais para a saúde também vende máscaras com o seu logótipo.
A Ulele, uma das plataformas de crowdfunding através das quais se financiou, depois da polémica gerada pelo filme, diz que a publicidade ao filme foi banida do seu site e que a comissão que recebeu dos donativos será doada a uma “associação para a defesa da informação”. Ao contrário do Plandemic, noticiava a EuroNews em novembro, trailers do filme continuavam acessíveis então no Facebook, Twitter e YouTube. Neste último, em cinco dias alcançou um milhão de visualizações. A Vimeo, onde estreou em novembro de 2020, apagou-o.
Reichstadt realça ainda que a sua promoção passou pelo France Soir, antigo jornal de referência tornado página de divulgação de teorias da conspiração depois de ter sido comprado pelo milionário Xavier Azalbert que se gaba de “ganhar dinheiro” com os mais de três milhões de visitas mensais que acumula.
Este filme de três horas foi realizado por um ex-jornalista, Pierre Barnérias, que antes tinha feito, por exemplo, outro também de teor conspirativo sobre uma suposta manipulação jornalística para fazer parecer com que as manifestações contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo eram menos concorridas do que seriam. Foi produzido por Christophe Cossé que defendeu que a Covid “não é pior que as outras gripes sazonais. A teoria que defende não é pois surpresa: a pandemia faz parte de um conspiração da elite mundial, nomeadamente o Fórum Económico Mundial, misturando a gosto várias das teorias da conspiração sobre a Covid. As suas alegações foram desmentidas pelo site de fact-checking do Liberátion e por vários outros: France Culture, Le Parisien, Rtbf, Le Monde, Huffington Post, Le Figaro, FranceInfo e Afp.
Nas redes, a desinformação vende produtos banha da cobra e defende governos
A verdadeira explosão da desinformação sobre a pandemia aconteceu nas redes sociais. Muitas fontes exploraram as suas formas de monetarização, algumas indo para além disso. Logo em março do ano passado, Luiza Bandeira, investigadora do Digital Forensic Research Lab descobriu uma rede sul-africana de 33 páginas de desinformação sobre a Covid-19 criadas pelas mesma empresa de marketing digital. Em causa aqui não estava o negacionismo mas a criação de pânico com o objetivo de vender máscaras. Depois disso, a mesma investigadora descobriu outra rede de páginas de Facebook e de grupos no WhatsApp que fazia o mesmo para vender geradores de ozono.
A mesma entidade não se fixa apenas na ideia de que a desinformação serve para vender produtos. Um relatório da organização, em colaboração com a Associated Press, olha, em países como a China, os EUA, a Rússia e o Irão, para as teorias da conspiração que afirmam que a Covid-19 é uma bio-arma e das outras que diziam ser um acidente laboratorial.
Nos EUA, a ideia de que era uma biológica saída de um laboratório na China, tornou-se popular, não só mas também à boleia das atoardas de Trump sobre o “vírus chinês”. Dizem os especialistas que “a especulação sobre a fonte do vírus partiu de contas não verificadas nas redes sociais e de meios de comunicação social conspirativos até governantes, influenciadores políticos e outros”. Na China, uma narrativa inversa ganhava espaço: de que tinha sido o exército norte-americano o responsável. Alguns meios afetado ao Kremlin, defende-se ainda, davam espaço a “múltipla desinformação em competição entre si de que os EUA tinham criado o vírus e tornado-o uma arma contra a China”. Terá sido aí que “algumas das primeiras narrativas” sobre este tema emergiram mas “parecem ser esforços menos organizados” do que tentativas anteriores de descredibilizar o governo norte-americano. No Irão, a narrativa falsa em voga tornava o país o principal alvo desta arma. “Em todos os quatro casos”, diz o documento, “a disseminação global de narrativas falsas ou incorretas sobre a Covid-19 deve ser vista em primeiro lugar através das lentes domésticas de cada um dos países”,
Os “empreendedores políticos”
Não são obviamente apenas empresas ou figuras mais ou menos públicas a vender descaradamente produtos mais ou menos milagrosos contra a Covid nem apenas governos nacionais que têm um interesse imediato em vender mentiras sobre a pandemia, tal como o fazem sobre outros temas.
Com eles, entre eles e para além deles, se misturam os “empreendedores políticos” que à sua volta e à volta de teorias da conspiração e políticas populistas criam um modelo de negócio baseado em instigar o medo, o ódio, a indignação.
A expressão é de Zoe Sherman, a professora no Merrimack College, em declarações à Deutsche Welle. Ela explica que “os meios de comunicação social geram mais-valia ao criar rendimento através da venda de espaço publicitário que exceda o custo da geração do conteúdo que atraiu a audiência”. E nisto são especialistas figuras da extrema-direita norte-americana como Glenn Beck, Rush Limbaugh e Alex Jones. Não será por acaso que todos eles passaram a ser aderentes de teorias da conspiração e/ou negacionismo da Covid
Este último, tinha no auge da sua popularidade, em 2017-8, 20 milhões de visitas mensais no seu site infowars e dos milhões de ouvintes semanais do seu programa de rádio. Neste site se vendeu um produto chamado “SuperSilver Whitening Toothpaste”, uma pasta de dentes que alegava, sem qualquer prova, aumentar a imunidade contra a Covid-19. Ao mesmo tempo que Jones clamava contra “elites liberais” que promoviam as vacinas por interesse. Aliás, estima-se que 80% das rendimentos da empresa são provenientes da venda de produtos publicitados nas suas páginas.
Os especialistas classificam-no, junto com os seus concorrentes neste negócio, como “conhecedor dos meios de comunicação social, oportunista politicamente atento e um homem de negócios esperto” que “explorará toda e qualquer oportunidade para ganhar atenção e obter dinheiro”, palavras de Hilde Van den Bulck, da Universidade de Drexel, ao Deutsche Welle.
O oportunismo é parte importante do seu trabalho, daí que moldem o que pensam para explorar acontecimentos, daí terem estado na crista da onda da desinformação Covid. Ainda ao mesmo órgão de comunicação social alemão, Jessica Reaves, diretora editorial do Centro sobre o Extremismo da Anti-Defamation League sublinha que apesar desta figura ser “em primeiro lugar e antes de tudo um oportunista”, isto não quer dizer “que não acredite nas coisas que diz”. Ou seja, adere mesmo às “teorias da conspiração perigosas e cruéis” mas “o seu objetivo primário é ser o centro da atenção por o maior tempo possível. E isso implica falar alto e ser controverso.”
As redes sociais, estará o berço do negocionismo a fazer o suficiente?
As redes sociais foram lentas a reagir ao surto de desinformação que as atingiu. E ficaram longe de fazer tudo ao seu alcance, continuando a permitir que surjam fenómenos deste tipo e a lucrar com alguns dos outros previamente identificados.
Depois de várias promessas das redes sociais de que deixariam de ganhar dinheiro com o negacionismo da Covid-19 e com os movimentos anti-vacinas e que passou mesmo por um comunicado conjunto do Google, Twitter e Facebook em novembro passado, a 31 de janeiro uma investigação jornalística do Bureau of Investigative Journalism encontrou 430 páginas, seguidas por 45 milhões de pessoas, que utilizam as ferramentas de monetarização desta rede social e que defendem estas causas.
As páginas recorrem a lojas virtuais ou subscrições de serviços especiais para lucrar. O que faz com que, por vezes, o Facebook ganhe diretamente uma porção e com que lucre indiretamente porque enquanto os utilizadores veem este tipo de conteúdos estão expostos a mais anúncios.
A organização de jornalistas de investigação revela ainda que mais de vinte de entre estas páginas ostentam mesmo o “selo azul” de autenticidade por terem sido “verificadas” pelo Facebook. E considera que a sua descoberta está longe de esgotar todas as páginas deste tipo que seguem o mesmo tipo de estratégias.
O Facebook responde que páginas que “repetidamente violam os nossos padrões de comunidade – incluindo as que espalham desinformação acerca da Covid-19 e das vacinas – estão proibidas de monetarizar nas nossas plataformas”, tendo, afirma removido, entre março e outubro, 12 milhões de conteúdos e colocado avisos em mais 167 milhões.
Um dos exemplos apresentados pelo BIJ é a Veganize, página brasileira que defende o veganismo e que na publicação que abre a sua página escreve “Quem quiser a pílula vermelha clique no link abaixo e descubra o quanto vc foi enganado a vida toda!”, indo essa ligação parar a documentos que veiculam teorias da conspiração. Há também páginas de “celebridades”, religiosas e de “notícias alternativas” que ganham dinheiro ao partilhar este tipo de conteúdo.
O corona-crowdfunding
Para além das redes sociais, os movimentos de desinformação da Covid-19 também marcaram presença nos sites de crowfunding, que transmitem pedidos de financiamento. Algumas vezes, como vimos, para produzir filmes ou outro material específico, outras para pedir dinheiro para lançar campanhas específicas. Em vários outros casos tornaram-se populares os pedidos de dinheiro para pagamento de multas por incumprimento das leis sanitárias, especialmente em contexto dos protestos anti-confinamento. Ou para lançar campanhas legais com o objetivo de derrubar este tipo de legislação.
No Reino Unido, escreve o Telegraph, o site CrowdJustice está a ser utilizado com essa finalidade. O teórico da conspiração sobre o 5G Mark Steele, através do grupo SaveUsNow, conseguiu obter cerca de 9.000 libras para financiar as suas atividades. Outro grupo chegou aos 80.000 com vista a ir a tribunal contestar o confinamento defendendo que a Covid-19 “não é uma doença ou um vírus reconhecido legal, médica ou cientificamente”.
Como retiram uma parte do dinheiro doado, as empresas que mantêm estas plataformas tornam-se assim não só co-responsáveis por darem espaço aos seus argumentos mas também lucram com estes movimentos. O já citado CrowdJustice fica com 3% de todo o que seja doado, por exemplo.
O EU DisinfoLab, em outubro passado, fazia a radiografia de como, apesar de algumas destas plataformas estarem a agir contra a desinformação da Covid-19 e as teorias da conspiração, continua a ser possível monetarizar este tipo de conteúdos. As ações tomadas pelas empresas donas das plataformas são classificadas como “incoerentes (ad hoc) e não aplicadas regularmente”.
Parte do esquema de monetarização pode ser indireto (através de ligações a a outros sítios que, esses sim, são alvo de moneterização). No Patreon, por exemplo, foram encontradas ligações do Qanon. Outra parte é direta e descarada, promovendo a teoria do 5G ou fazendo referência ao Plandemic. Há canais que se pretendem “noticiosos” como o “Stranger than fiction” a recolher fundos no Patreon. Ou a conta francesa Libre Penseur, vista como uma das principais fontes de desinformação em francês sobre a Covid, que recolhe fundos na plataforma francesa Tipeee.
Esta investigação encontrou “dezenas de resultados em inglês mas também em italiano, sueco e alemão” no Patreon de páginas com teorias da conspiração 5G. E no GoFundMe também se podia encontrar conteúdo do mesmo género, apesar dos anúncios da empresa de que o iria banir. Também conteúdo anti-vacinas foi encontrado no GoFundMe e no IndieGogo, apesar de ambos terem anunciado em 2019 que iriam banir conteúdo deste género. Uma delas, tinha recolhido no momento em que foi detetada pelo EU DisinfoLab mais de 80.000 dólares.
Reorganizar fora do mainstream?
O apagamento de páginas e grupos, ainda que não seja exaustivo, teve efeitos em muitos grupos que procuraram reorganizar-se em redes sociais alternativas e aplicações de mensagens encriptadas como o Telegram. O investigador David Lawrence, do grupo Hope Not Hate, que analisa os grupos de ódio, disse à Sky News que “muitos dos grupos continuam a prosperar” por estas vias e que a sua
rede permanece “organizada e forte” e manifestou a preocupação de que a “extrema-direita e outros anti-semitas” explorem esta migração e as alterações de táticas dos grupos anti-confinamento e negacionistas.