O engenho das civilizações humanas em matéria de maus-tratos exercidos contra as mulheres não tem limites abrangendo maus-tratos físicos, tanto em guerra como em paz, maus-tratos coletivos e individuais, maus-tratos económicos, sociais, políticos, religiosos, psicológicos e até linguísticos.
O dia 25 de novembro, denuncia a violência contra as mulheres procurando inscrever na nossa agenda mundial, a preocupação e a necessidade interventiva neste problema que persistente da humanidade em toda a parte do nosso globo.
Vivemos inseridas em sociedades patriarcais nas quais, o género feminino, tem sido um alvo preferencial de toda a violência. Transformar esta situação tem sido uma tarefa árdua que vai dando alguns passos em frente mas que também ameaça recuar a cada instante.
Do que estamos a falar quando falamos de violência sobre as mulheres? A violência sobre as mulheres abarca uma vastidão de agressões que não é possível caracterizar de uma forma simples. Não se trata de um tipo único de violência, trata-se de todas as formas de violência que na mulher encontram expressão.
Nas vastas regiões da Ásia, Índia, Bangladesh, Paquistão e China, os demógrafos e investigadores depararam-se com a estranha evidência de que faltavam cerca de 100 milhões de mulheres ou até mais. A razão para este desequilíbrio demográfico explica-se pela morte deste número escandaloso de mulheres, apenas por serem mulheres. Abortos seletivos dos fetos femininos, subnutrição, infanticídio e abandono foram as metodologias utilizadas originando uma sobremortalidade feminina na infância mas também na idade adulta. Nestas sociedades asiáticas o défice de mulheres está diretamente ligado a uma clara preferência pelos rapazes que é exponenciada pelo número reduzido de filhos (seja ele por oposição como no caso da China, ou por opção como nos casos da Índia, Coreia do Sul ou Taiwan).
Dados da UNICEF de 2003 denunciavam que cerca de 127 milhões de crianças em idade escolar não frequentavam a escola, dessas crianças cerca de dois terços são do género feminino, ou seja 85 milhões de raparigas não estavam escolarizadas. Não estudam porque é considerado um desperdício de recursos familiares e estatais investir na educação de uma rapariga, assim, a sua utilidade desenha-se desde cedo recaindo sobre elas a ajuda à família através dos cuidados e do trabalho como empregadas domésticas, operárias fabris ou agricultoras. A maioria de crianças trabalhadoras é também ela, do género feminino, tal como a maioria das crianças abusadas e comercializadas sexualmente. Estes abusos levam a que no continente africano cerca de 60% das pessoas infetadas pelo vírus da sida sejam mulheres ou adolescentes.
Mas a violência não termina aqui, mortas ou condenadas à morte logo desde a nascença, forçadas a trabalhar e negado o acesso a uma infância e a uma aprendizagem escolar, abusadas sexualmente, exploradas e vendidas, as mulheres têm sido vistas sempre como outras e nunca em plano de igualdade ou equivalência aos homens. Mortas por lapidação em crimes de honra, em violência doméstica, violadas em tempos de guerra persistentemente sendo usadas como veículo de humilhação de todo o povo, as mulheres são afastadas da segurança, da liberdade, da dignidade e da integridade.
Vistas como propriedade do masculino, dificilmente alcançam a sua autonomia e liberdade sem luta.
Não são apenas as violações, o tráfico para exploração sexual e a violência física e psíquica que têm recaído sobre o corpo de todas as mulheres de todo o mundo. O direito das mulheres ao seu próprio corpo é uma das questões mais problemáticas e mais difíceis de alcançar sendo muitas vezes alvo de uma tentativa bem sucedida de apropriação quer nos países nos quais os direitos humanos estão menos implantados quer em países da Europa e Estados Unidos que se dizem estados tão democráticos e promotores dos direitos humanos.
Este tipo de apropriação do corpo feminino pode ser facilmente ilustrado com exemplos de proibição da contracepção, do aborto, da sexualidade feminina, com imposições de como as mulheres se devem vestir ou apresentar e de como o não devem fazer. Parece que a visão vigente continua a ser, no século XXI, a das mulheres enquanto propriedade masculina que devem refletir sempre o que as sociedades patriarcais e machistas definiram para elas.
Quando falamos do direito ao seu próprio corpo por parte das mulheres (mas também por parte das comunidades LGBT nas quais o direito ao seu corpo é também vedado) levantam-se aqui questões mais amplas e mais profundas porque, por vezes, colocam-se as mulheres num campo de batalha entre culturas e sociedades onde ambas as facções culturais discutem regras a aplicar sobre os corpos que não lhes pertencem e onde, uma vez mais, as mulheres não têm voz, liberdade e escolha. Refiro-me, por exemplo, à questão do uso do véu e a problemática que levantou em França e noutras partes do mundo ocidental iniciando uma batalha entre as sociedades ocidentais e as comunidades e países islâmicos tentando impor uma prática, de uso ou não uso, deixando as mulheres árabes e islâmicas sem poder de decisão sobre um assunto que somente a elas deveria dizer respeito.
Culturas à parte, a verdade é que, não podemos colaborar ou cooperar com nenhuma forma de violência sobre as mulheres sob que pretexto for. Não podemos aceitar que mulheres sejam mortas em nenhuma fase da sua vida sob nenhum pretexto (modelo do filho único, crimes de honra, violência doméstica), nem que sejam violadas, traficadas, vendidas e compradas como bens de consumo, que seja desvalorizado o seu trabalho através de diferenças salariais absurdas, que sejam privadas de recursos (como o acesso à água, à alimentação e aos bens de produção), lhes seja negada a sua sexualidade, a sua vida, a sua liberdade e a sua história. Que, sobre pretexto nenhum, sejam permitidos actos como a mutilação genital feminina ou crimes de honra alegando respeito cultural. Afinal o que é mais importante afinal, as mulheres ou a cultura?
É chegada a altura de destruirmos os alicerces discriminatórios patriarcais e violentos das sociedades mundiais iniciando a construção de um novo período na história da humanidade no qual, pela primeira vez, possamos viver em igualdade de género erradicando a violência.
Dia 25 de Novembro, companheir@s, saiam à rua e marchem pelo fim da violência contra as mulheres participando na tomada de consciência colectiva e com ela no inicio de uma transformação no sentido da Liberdade.
Não somos escravas, nem submissas, nem vítimas ou objectos, não somos propriedade de ninguém, temos história escrita pelo nosso próprio pulso, somos corajosas, destemidas e queremos caminhar não atrás, nem a reboque, nem por arrasto, mas ao lado dos homens como suas semelhantes na nossa plenitude de direitos. Não pararemos de lutar até que todas sejamos livres!
Nota: Este artigo teve como referência bibliográfica a colectânea de textos organizada por Christine Ockrent, O livro negro da condição das mulheres e publicado em 2007 pela editora Temas & Debates.