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“Lei Uber está muito aquém das necessidades reguladoras deste setor”

Fernando Fidalgo, dirigente sindical do STRUP - Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal, afeto à CGTP, deu a conhecer ao Esquerda.net as reivindicações dos trabalhadores. Por Mariana Carneiro.
Protesto dos motoristas TVDE em Lisboa. Foto Mário Cruz/Lusa.

A Lei 45/2018, conhecida por “Lei Uber”, veio estabelecer o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica. Que balanço faz o STRUP, nomeadamente no que concerne à adequabilidade do diploma à realidade laboral no setor?

Importa, antes de mais, referir que o STRUP só em 2019, por iniciativa de um grupo de motoristas e parceiros deste sector de atividade, organizou sindicalmente estes trabalhadores. A partir daí, deu inicio a um processo (em curso) que assenta fundamentalmente num conjunto de propostas que visam a alteração da lei em vigor, como instrumento regulador da atividade. Mas também, e para além da referida lei, a definição de um enquadramento jurídico-laboral que defina com clareza a entidade empregadora, anule o falso trabalho independente, camuflado nos recibos verdes, prestação de serviços e, inclusivamente, em empresários em nome individual.

A lei aprovada em 2018 procurou responder à necessidade de terminar com os conflitos então existentes, entre o setor do táxi e o setor agora TVDE, transmitindo o poder absoluto às plataformas digitais em todos os quadrantes da atividade. Desde a definição dos custos da atividade, passando pelo estabelecimento dos preços a praticar, incluindo o poder disciplinar em relação aos operadores e respetiva organização do serviço, tudo isto ficou no âmbito do referido poder totalmente absoluto das plataformas.

Entretanto, o crescimento desmesurado da atividade, deixado ao livre arbítrio das plataformas e da lei do mercado, veio demonstrar que a lei aprovada pelo governo em 2018 está muito aquém das necessidades reguladoras deste setor, com a agravante que resulta da total ausência de fiscalização. Só ultimamente têm sido realizadas algumas ações, particularmente pela ACT, e, ao que julgamos, já em resultado de toda a dinâmica criada pelo STRUP.

A pandemia tornou ainda mais gritantes as fragilidades a que estão sujeitos estes trabalhadores. Que impacto teve a covid-19 no que respeita, por exemplo, a horários de trabalho, preços praticados e custos de atividade?

Este setor caracteriza-se a três níveis, Plataformas, Operadores e Motoristas por conta de outrem (trabalhadores dependentes). Os preços praticados, são da inteira e absoluta responsabilidade das plataformas, cujos critérios constituem o segredo do negócio (denominado algoritmo) e arrecadam de imediato 25% do valor total do preço por si praticado. Os custos da atividade, viatura, seguros, combustível, manutenção, impostos etc. e eventualmente salários, são da responsabilidade do operador de TVDE. O operador é, na maioria dos casos, também o motorista. Neste contexto verifica-se que as comissões das plataformas incidem sobre valores que os utilizadores pagam com o IVA Incluído. Deste modo, o operador de TVDE é prejudicado em questões fiscais, nomeadamente na entrega deste Imposto à máquina Fiscal. Os operadores de TVDE estão a suportar na íntegra, pagando do seu próprio bolso a entrega deste imposto. Ainda sobre as comissões, é de salientar que estas estão igualmente a incidir sobre custos do Operador de TVDE, tais como portagens, parques de estacionamento bem como sobre as gratificações que os utilizadores oferecem ao motorista por via eletrónica. Por ultimo, o motorista cujo vínculo laboral assenta essencialmente no trabalho precário.

Ao nível do horário de trabalho, e não obstante os limites definidos pela lei nº45/2018, as jornadas diárias de trabalho rondarão, em média, as 14 horas. Dificilmente um motorista/operador fará uma receita digna se estiver um período de trabalho diário inferior ao referido. A pandemia veio agravar esta situação, causando diminuição de emprego, por um lado, e imobilização de uma parte significativa da frota, por outro. Este setor de atividade, durante o período pandémico, ainda teve algum apoio por parte da Segurança Social e APOIAR, mas nenhum dado pelas Plataformas Digitais.

Os custos da atividade mantiveram-se inalterados, enquanto os preços praticados eram diminuídos até cerca de 30% da denominada taxa 1.0, que estabelece o valor que deveria ser praticado no mínimo. Naturalmente que esta situação teve um forte impacto negativo na capacidade de gestão de negócio por parte do operador.

Uma outra consideração a ter em conta no âmbito laboral, diz respeito aos bloqueios arbitrários e unilaterais por parte das plataformas eletrónicas aos parceiros e motoristas, sem que estes tenham possibilidade de apresentar a sua defesa.

Como é do conhecimento público, desempenhar esta atividade acarreta investimentos consideráveis em veículos, seguros, manutenções, bem como o assumir responsabilidades do ponto de vista fiscal e social. Deste modo, e com estas práticas abusivas por parte das operadoras de plataforma, todo o ecossistema do serviço TVDE pode ficar severamente comprometido, bem como podem surgir ainda mais problemas pessoais para todos os profissionais do setor TVDE.

Considera que tem existido uma adequada fiscalização da Lei nº45/2018?

Como referido, e particularmente após o dia 6 de nevembro de 2020, data da realização da maior manifestação feita em Portugal por operadores e motoristas deste setor, foram realizadas algumas ações de fiscalização levadas a cabo particularmente pela ACT. Temos conhecimento que a AMT tem vindo a desenvolver algum trabalho relativamente aos custos da atividade e preços praticados, para o qual o STRUP tem contribuído com fornecimento de dados. Já quanto à outra entidade reguladora, o IMT, que tem particulares responsabilidades ao nível do licenciamento e da formação, não obstante todas as denuncias que têm sido apresentadas pelo STRUP, particularmente no que respeita à formação profissional, não observámos até hoje qualquer ação de fiscalização, ou qualquer medida que alterasse a situação caótica em que se encontra a formação e respetiva certificação.

O Governo anunciou a pretensão de levar a regulação laboral das plataformas digitais à concertação social após a publicação do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho. Que avaliação faz da análise e das recomendações presentes neste documento?

Como estrutura filiada num dos parceiros sociais, a CGTP-IN, a nossa avaliação genérica do documento apresentado pelo governo é a que a nossa central já tornou pública.

No entanto, e sem retirar a importância do referido documento, existe um conjunto de medidas que, no nosso entender, devem urgentemente ser tomadas, nomeadamente no que respeita à regulamentação coletiva de trabalho, tarifas e regulação de preços.

Em novembro do ano passado, foi entregue ao governo um caderno reivindicativo dos trabalhadores do setor. Quais as principais questões levantadas neste documento e que avanços se registaram desde então?

O caderno reivindicativo, dinamizado pelo STRUP e construído por parceiros e motoristas do sector de atividade, contém um conjunto de pontos, considerados os mais relevantes para contribuírem para a introdução de alterações à lei em vigor, e também para a resolução urgente dos principais problemas que afetam trabalhadores/parceiros: 1. Rever regulamentação da atividade; 2. Relações Coletivas de Trabalho; 3. Tarifas e Regulação de preços; 4. Estabelecimento de um contigente máximo de viaturas; 5. Revisão da idade limite das viaturas; 6. Formação Profissional; 7. Regulação do poder disciplinar por parte das Plataformas; 8. Atendimento presencial em sede própria por parte das Plataformas; 9. Revisão do sistema de avaliação feito aos motoristas; 10. Garantia de condições para transporte de crianças; 11. Criação de locais para tomada e largada de passageiros; 12. Regulação de preços por parte das companhias de Seguros; Revisão dos impostos praticados no sector.

A entidade reguladora que, até ao momento, se tem mostrado mais ativa e mais disponível para observar as matérias, no âmbito das competências que lhe estão atribuídas, tem sido a AMT. Tal como referimos, também a ACT através das suas ações de inspeção tem, pelo menos, contribuído para combater algumas violações à lei em vigor.

Num contexto em que não existem rostos, os algoritmos surgem como os novos capatazes e os trabalhadores são apelidados de “parceiros”, que desafios se colocam no que concerne ao reforço da capacidade organizativa dos motoristas de TVDE?

No nosso entender, a progressiva digitalização do trabalho traz ao movimento sindical novos desafios, resultantes desta nova forma de explorar trabalhadores. Os métodos, ainda que mais sofisticados, trazem consequências negativas mais violentas, diria mesmo que representam um retrocesso civilizacional. As entidades empregadoras sem rosto, as novas atividades sem regulação dos estados, o poder absoluto entregue aos proprietários do novo mundo digital, constitui um problema que os trabalhadores dos países da União Europeia estão a enfrentar, cada um por si, não obstante o problema estar colocado a todos.

(...)

Neste dossier:

Plataformas digitais: Quando o algoritmo se torna capataz

Num contexto em que as Plataformas Digitais de Trabalho se apresentam como os novos balões de ensaio para a precarização extrema do trabalho, afigura-se inadiável o debate sobre a regulação e regulamentação do setor e os desafios no que respeita à organização coletiva dos trabalhadores. Dossier organizado por Mariana Carneiro.

A e-corrida para o fundo

A verdadeira inovação por detrás da aplicação é um novo modelo de relações laborais que combina financeirização, evasão fiscal e falsos empresários individuais. Por José Gusmão.

Plataformas digitais: “Condições de trabalho são um problema europeu”

Leïla Chaibi, eurodeputada da França Insubmissa, que integra o Grupo da Esquerda Unitária – GUE/NGL, explicou ao Esquerda.net os objetivos da proposta de diretiva da União Europeia sobre Trabalhadores de Plataformas Digitais que apresentou em novembro passado. Por Mariana Carneiro.

Uberização: a era do trabalhador just-in-time?

A uberização refere-se à materialização de décadas de transformações políticas do mundo do trabalho, apresentando-se como tendência que permeia generalizadamente o mundo do trabalho, possibilitando-nos pensar em termos de consolidação do trabalhador como trabalhador just-in-time. Por Ludmila Costhek Abílio.

Lei “Rider”: Um passo insuficiente, pouco que celebrar

Perante o anúncio do decreto pelo qual se realiza a laboralização dos trabalhadores das plataformas digitais e, ainda que, aparentemente, vá ao encontro das nossas reivindicações, pela nossa parte não temos razões maiores para celebrar. Pela Plataforma Riders X Derechos BCN – IAC.

Transição digital e trabalho em plataformas

Vídeo com intervenções de Leïla Chaibi - France Insoumise (França), Felipe Corredor Alvarez e Nuria Soto (Plataforma Riders X Derechos BCN – IAC), Maria da Paz Lima (investigadora na área do trabalho/ correspondente Eurofound) e Fernando Fidalgo (dirigente STRUP /TVDE).

A hora dos 'emprecários'

A greve dos entregadores no Brasil é um sinal novo e importante. Os trabalhadores de plataformas como a UberEats, a Glovo, a iFood ou a Rappi têm sido essenciais durante a pandemia. Também por cá, esta realidade dos 'emprecários', dos falsos independentes e das plataformas mexe. Por José Soeiro.

“Plataformas digitais são balão de ensaio para novas formas de exploração capitalista”

O investigador Nuno Boavida falou com o Esquerda.net sobre o projeto europeu CROWDWORK - Encontrar novas estratégias para organizar trabalhadores de plataformas digitais na economia Gig (2019-2021), do qual é líder científico. Por Mariana Carneiro.

Plataformas digitais: “É preciso impedir injustiças entre países”

O investigador Giovanni Allegretti defende que é necessário criar legislação supranacional e “requerer que as plataformas contribuam mais para o bem-estar dos trabalhadores e dos cidadãos”. Por Mariana Carneiro.

Lei é um “fato talhado à medida” dos interesses da Uber

Em entrevista ao Esquerda.net, o professor universitário e especialista em Direito do Trabalho João Leal Amado frisou que o modelo de negócio das plataformas digitais não pode “assentar na exploração desenfreada” dos trabalhadores, que estão a ser disfarçados de micro empresários. Por Mariana Carneiro.

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Documentário "Estafados - Histórias da precariedade organizada"

Todos os dias vemos estafetas a circular pela cidade. Motos, bicicletas, carros, trotinetas - o transporte muda, mas a rotina é a mesma. Mochilas às costas carregam a comida quente e as infindáveis horas de trabalho que acumulam. Não se conhecem, nem estão organizados, mas há algo que os une: a necessidade de sobrevivência.